Música

Manel Cruz: “Tinha medo de estar sozinho em palco. De ter tudo a depender de mim”

O receio já lá vai e o vocalista dos Ornatos Violeta corre agora o País para dar concertos intimistas a solo com novos temas.
(Foto: Alberto Almeida)

A porta abre-se e é preciso percorrer os estreitos corredores da casa, em ziguezague entre mobília e instrumentos, para chegar ao escritório de Manel Cruz. Ao relento, num largo terraço, deixado à mercê da chuva e do vento, está um pequeno casebre de dois por dois metros. Lá dentro, o músico de 49 anos dedica-se à labuta das nove às cinco.

“Hoje conseguir ter tempo para me fechar sozinho e tocar é um problema. É o telemóvel, os miúdos”, comenta, sobre a dificuldade em conseguir recolher-se no mini estúdio (improvisado durante a pandemia) para produzir. Garante ter mais de vinte músicas em carteira, à espera de ficarem eternizadas num novo trabalho.

Recebeu a NiT no pequeno casebre, entre gravações e concertos um pouco por todo o País — diferentes daqueles a que estava habituado. Se os grandes palcos e festivais foram, nos últimos anos, local de festas ribombantes com o regresso entusiasta dos Ornatos Violeta, a nova digressão tem sido marcada pelo oposto.

A vida artística a solo não é propriamente uma novidade para Cruz. Já a conhecia do projeto Foge Foge Bandido e, em 2019, lançou “Vida Nova”. Porém, ultrapassado o medo de estar sozinho em palco, agora sente estar a atravessar uma fase diferente. Os temas novos, garante, foram pensados para uma experiência “mais intimista e crua”.

A 9 de dezembro, Manel Cruz irá a Viseu apresentar este leque de músicas. Em 2024, tem encontro marcado com os fãs no Porto, na Casa da Música, a 28 de fevereiro, e no dia seguinte, 29, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

Após o bombástico regresso dos Ornatos Violeta, há uma espécie de regresso à vida a solo. Porquê?
Já tinha o Foge Foge Bandido, um pouco a antítese daquilo que estou a fazer agora. Era um projeto de soma absoluta de arranjos, de experiências sonoras. Depois, em 2019, fiz o­ [disco a solo] “Vida Nova”, que funcionou um pouco ao contrário: tentei simplificar as coisas, manter as músicas na sua essência e só colocar os arranjos que as músicas fossem pedido; dar-lhes esse tempo, antes de partir imediatamente para encher. Nessa altura comecei a tocar mais a solo. No início, era só um concerto ou outro, até porque não tinha músicas que se prestassem a isso, que tivessem um arranjo para serem tocadas a solo. Depois fui fazendo músicas, só com guitarra. Algumas delas têm anos. Fui tocando e comecei a perceber que tinha ali um formato diferente de vivo que me agradava, no sentido de ser uma experiência mais introspetiva. Assustava-me um bocado tocar sozinho, mas depois comecei a gostar e passou a fazer sentido. Decidi começar a gravá-las, sem grandes expectativas. É isso que estou a fazer agora. Nem sequer tinha a ideia de fazer um disco, mas sei que vai desaguar aí. Quero fazer a coisa ao contrário: quero ir lançando as músicas e, depois, quando tiver um leque que sirva para fazer um trabalho, faz-se. Agora, quero ir editando e tocando nos concertos a solo.

Acabou por fazer uma carreira aos ziguezagues, entre projetos a solo e outros em banda, mas regressando sempre aos Ornatos Violeta. É inquieto por natureza?
Os Ornatos são um caso à parte. São uma espécie de instituição. É um bocado como a cena do Batman, acendem a luz no céu e lá vamos nós. Contudo, damos muito poucos concertos. Tem sido mais um apelo externo, estão sempre a chamar-nos. Achávamos sempre que os últimos iam ser os últimos, mas está sempre gente a nascer (risos). No caso dos Pluto, há um espírito de banda, vontade de fazer algo em conjunto. O espaço musical que temos ali tem mais a ver com isso, com essa continuidade da vontade de tocar em banda. A questão a solo é como se fosse o meu emprego, no melhor dos sentidos. É um trabalho que gosto de fazer, mas é algo que levo mais a título pessoal. É uma viagem pessoal, um compromisso individual.

O que distingue os temas criados em grupo das músicas que faz nessa viagem solitária?
O que sempre me ligou à música foram as pessoas. Esta vibração que existe entre os sons, entre o som das pessoas. Essa vibração entre pessoas foi o que sempre me ligou à música, a fazer música, ter esse retorno, essa partilha, a vivência comum. Tocar a solo é algo mais recente, no sentido em que sentia que era um bocado solitário tocar sozinho. Tinha medo de estar sozinho em palco, de ter tudo a depender de mim. Isso fez coisas boas por mim, o ter de superar esse medo. E é outra experiência estar ali com o meu público, poder criar ali uma bolha. É algo que me agrada cada vez mais. Tenho aprendido a gostar.

Estamos neste minúsculo estúdio caseiro. É aqui que tudo acontece?
Na altura da pandemia, o meu miúdo tocava bateria e eu ensaiva no Centro Comercial STOP. Depois, aquilo fechou e, de rompante, decidi comprar uma daquelas casitas de dois por dois metros, para pôr a bateria. E para conseguir gravar quando estávamos todos confinados. Acabámos por não a usar muito, andámos mais nos jogos, nos filmes, nos cozinhados. Acabava a fazer músicas com a guitarra, na sala. Entretanto, o tempo passou, as músicas começaram a acumular-se e houve aquele problema com o STOP. Tirei de lá o estúdio e decidi tocar os novos temas ao vivo. Depois, percebi que tinha de os gravar para fazer avançar o projeto. Tinha 20 ou 30 músicas para gravar e pensei onde o poderia fazer. Não tinha mais sítio nenhum, só este. Limpei o anexo, deixei tudo prontinho e aqui estou eu.

Disse que acaba sempre por esbarrar nos apelos externos para regressar aos palcos com os Ornatos Violeta. Contava com esta receção? Ver tanta gente a vibrar com temas com mais de duas décadas?
Nunca gostei de contar com o ovo no cu da galinha. Sei que as coisas são muito voláteis. Voltámos e foi muito fixe, mas pensava que no ano seguinte a coisa iria esmorecer. Contudo o tempo ia passando e os pedidos acabavam sempre por surgir, até hoje. Há essa vontade nova de que voltemos e que me deixa muito feliz. Ainda agora na Latada de Coimbra demos um concerto incrível, fora de série. E, depois, ali estou eu, um cota, a ver miúdos de 15 e 16 anos a curtirem o concerto. Sinto que ainda temos muito para transmitir, muita celebração para fazer, muita emoção para passar. Não sei será no futuro, lá está, não conto com o ovo no cu da galinha. Estas coisas são mesmo muito voláteis, a música está a sofrer mudanças muito grandes, há esta explosão do hip-hop… Não podemos estar a contar com os fãs, porque as coisas mudam. Ninguém pede licença para deixar de gostar e temos de estar preparados para isso. Tenho de estar preparado para, um dia, ter de fazer música como hobby e começar a fazer trabalhos gráficos. Até hoje, as coisas têm corrido surpreendentemente bem e, enquanto assim for, continuaremos a fazer música. Quando sentir que não há retorno, deixo de o fazer. Por enquanto, vamos vivendo e curtindo.

Os últimos meses e concertos ficaram ensombrados com a morte do Elísio. Pararam para pensar se valia a pena continuar sem ele?
Nesse aspeto fomos um bocado pragmáticos. Ele gostaria que nós continuássemos. E, enquanto continuarmos a tocar as músicas, vamos estar a tocar o trabalho que ele fez, a contar toda uma história, a poesia. As coisas continuam a fazer sentido. Depois havia a questão técnica, de quem o poderia substituir. Nunca seria possível substitui-lo mas queríamos quem pudesse representar o trabalho dele e agora temos o Sérgio Alves e o Miguel Ferreira — estamos contentíssimos, são duas joias e dois músicos excelentes. Agora há que continuar e perpetuar as coisas boas.

Isso inclui temas novos dos Ornatos?
Sim. Para ser muito sincero, e sem querer alimentar expectativas, a vida é muito complexa, principalmente nas nossas idades, em que já temos montes de compromissos, somos pais… Temos vontade de fazer coisas novas, falamos disso, embora não fiquemos ansiosos com isso. Sempre fomos muito entusiastas relativamente ao nosso percurso, sem colocar o carro à frente dos bois. Sem falsas modéstias, a nossa identidade na música portuguesa é sólida, porque sempre esteve assente na realidade do grupo. Nunca desenhamos grandes estratégias, deixámos tudo correr, somos até um bocado baldas (risos). É um pouco estranho os Ornatos serem o marco que são na música, porque deixamos as redes sociais um bocado à balda. Nesse aspeto, não somos propriamente um paradigma de profissionalismo. Mas o que nos ligou sempre foi a música. É o que continua a ligar-nos, isso e a amizade, a vontade de criar. E isto depende da naturalidade com que fazemos as coisas. Feitas as contas: não podemos garantir que haverá músicas novas, mas digamos que o impulso é positivo nesse sentido.

Mas, entretanto, há temas a solo para gravar, lançar e tocar ao vivo. O que podem esperar os fãs? Quando é que há novo tema lançado?
Estou a tentar gravar uma música para lançar e, depois, ir gravando outras para ir lançado de dois em dois meses, algo assim. Quero ver se gravo e registo as mais de 20 músicas, investir nisso. Agora tenho investido mais nos concertos, até porque pela primeira vez sinto que tenho um concerto feito mesmo para este formato. Não acontece o que acontecia antes e que me chateava, que era tocar e depois sentir que faltavam sempre os outros instrumentos, porque as músicas tinham sido feitas para ter uma banda. Agora decidi focar-me nestas músicas que podem compor um concerto de cariz intimista, quase como uma bolha, uma coisa muito crua — tanto que lhe dei o nome de Cru nesse sentido. É um concerto que vive dessa viagem, muito calmo, melancólico, imersivo.

É um processo quase invertido. Começa nos concertos e vai para o estúdio e só depois para um potencial disco.
Agora que investi nessa parte ao vivo, quero ver se consigo uma repercussão disso em termos editoriais, registar as músicas. É nisso que estou a trabalhar agora, nesse lado a solo que nem no “Vida Nova” estava tão assumido. No fundo, é quase um novo início de carreira, porque estive quase sempre ligado a bandas. E sempre gostei de dar nomes a projetos sem lhes colar o meu nome, sempre gostei mais do lado artístico, desse lado mais plástico das coisas. Agora sim, estou a assumir uma carreira individual. Isto, claro, paralelamente a outras coisas como os Pluto, que estão a trabalhar em coisas novas, que são uma banda pura e dura de rock. E depois tenho os Ornatos, que é algo muito mais celebratório. E, claro, tenho este trabalho a solo. Em termos musicais, sinto-me muito realizado e completo.

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