Semana após semana, MARO tem estado a desvendar as canções do seu novo disco, “Hortelã”, a conta-gotas — para a artista de 28 anos, é como se fosse a temporada de uma série, em que todas as semanas apresenta um novo episódio ao público. Aos poucos, a narrativa do álbum vai ficando mais completa.
Este é um disco triste, uma vez que foi escrito e composto durante uma fase em que MARO esteve mais melancólica e atravessou momentos difíceis. É também o trabalho que vem na sequência de “saudade, saudade” e da sua vitória no Festival da Canção no ano passado. A artista nacional venceu, inclusive, na semana passada, o prémio da NiT para Melhor Tema Original de 2022.
Esta quinta-feira, 23 de março, apresentou mais um single de “Hortelã”, “something bout tomorrow” — só faltam duas faixas para fechar o alinhamento do disco. Foi o pretexto para anteciparmos já o lançamento definitivo e falarmos com MARO sobre o novo álbum. Leia a entrevista.
Como é que surgiu a ideia deste formato de uma canção por semana? É uma forma de o ir apresentando aos poucos, de cada música ter mais destaque e de o projeto ter uma longevidade maior?
Sim, na realidade foi porque o álbum foi pensado numa altura em que estava a sair de uma época um bocadinho mais difícil. Tive dois anos mais difíceis. E pensei no álbum quase como uma maneira de juntar algumas das canções escritas nesses dois anos, quase fechá-los numa espécie de série, numa temporada, para fechar este capítulo, seguir em frente e começar um novo. Como já tinha este conceito da temporada… As temporadas têm episódios. Acabou por ficar uma canção por semana porque cada uma é um episódio e vai-se seguindo até chegar ao último.
E é uma série com mais temporadas ou os próximos discos vão ser diferentes e não estarão necessariamente envolvidos nesta narrativa?
Exato, os próximos serão diferentes. Este projeto é bastante isolado. Foi pensado exatamente para fechar este capítulo e daqui para a frente é uma nova vida.
Focando-nos então nesta temporada, ainda falta desvendar alguns episódios mas a maior parte já está cá fora… O que é que este disco, olhando para ele como um todo, representa para si?
Resolução, aceitação de certas coisas da vida, crescimento e vulnerabilidade. Este disco foi muito isso, foi quase olhar para dentro, perceber o que mudar e a partir daí seguir em frente. Às vezes é fácil deixarmo-nos cair num lado confortável de vitimização, da tristeza e da dor. Este álbum para mim foi um bocado essa porta para a ação. É quase uma maneira metafórica de resolver as coisas todas da minha vida e fechar essa porta. E daqui para a frente começo de novo.
Escrever canções numa altura mais difícil foi terapêutico?
Foi, concerteza. Mas a música para mim é sempre terapêutica. Sempre que escrevo uma música é porque tenho alguma coisa aqui dentro e que ainda não sei muito bem que estou a sentir — ou sei que estou a sentir, mas não a percebo — e quando pego numa guitarra ou num piano parece que é quando consigo organizar os pensamentos e os sentimentos. Acaba por ser uma terapia, porque as canções têm sido quase todas autobiográficas. Este álbum em específico é todo autobiográfico. Claramente isso serve de terapia.
E pode ser uma forma de refletir sobre aquilo que está a sentir.
Exatamente — e sem filtros. É isso e quando escrevo no meu diário, aquela coisa de organizar os pensamentos. Mas na música meio que entro em transe. Qualquer filtro que pudesse haver cai. Só digo, canto, escrevo. E quando a música está terminada, consigo distanciar-me e penso que a posso lançar, embora seja algo que saiu de um lugar muito fundo.
Não tem receio de expor as suas vulnerabilidades.
Por agora não. Lá está, depois de estar escrito quase que consigo afastar-me. E as outras pessoas que ouvem pensam na experiência delas quando ouvem a música. Não vai ser uma história sobre a minha vida. OK, eu escrevi sobre coisas que vivi, mas acho que no segundo em que sai uma canção deixa de ser só minha. As pessoas também tornam as canções delas.
Estava a referir o diário que escreve. Existem letras que vêm daí, ou nem por isso?
Não, por acaso não. Nunca fiz muito bem essa coisa de escrever uma letra e depois ir fazer a melodia, ou ter uma melodia e depois ir escrever a letra. Todas as minhas canções surgiram lado a lado, melodia e letra. Quando estou a tocar parece que já sei o que dizer e sai-me a melodia. O diário é mais uma prática que tenho. Acordo, lavo os dentes, pego no diário e fico só a escrever, de preferência ao ar livre. Até porque acho que me dá mais vontade de ter um dia mais organizado. É mais uma prática que tem a ver com a maneira como funciono e para me manter mais produtiva.
A própria capa do disco demonstra vulnerabilidade e também remete para alguma tristeza. Foi por isso que escolheu este tipo de imagem?
Exato. É engraçado porque não foi uma sessão fotográfica. Não foi planeado. Eu estava com uma amiga brasileira que é uma fotógrafa absolutamente fenomenal. Estávamos numa quinta no interior de São Paulo. Tanto eu como ela não estávamos num lugar muito bom na vida e houve uma amizade muito forte, de cada uma se puxar para cima e poder desabafar. E eu até estava numa fase em que não me apetecia ser fotografada por ninguém, por isso foi giro como isto aconteceu. Eu estava a falar do álbum, a pensar em ideias de capas, mas ainda não sabia. E ela disse-me para tentarmos umas coisas. Fomos lá para um lago e acabaram por sair essas fotografias, que foram muito… Claramente havia uma tristeza. Foi quando cheguei ao mais fundo de tudo e depois comecei a ir para cima. As fotografias foram muito nesse momento de viragem. É giro porque a fotografia apanha esse lado mais triste.
Estava a comentar o facto de estas músicas expressarem aquilo que sentiu ao longo destes dois anos. Sente que a tristeza ou os sentimentos mais negativos acabam por contribuir para a sua criatividade? Ou, se estiver feliz, consegue ser igualmente criativa e prolífica? E simplesmente as canções são diferentes.
Acho que é mais isso, porque se estiver muito feliz também me apetece escrever e tocar. Quando estou triste elas vêm de um lugar mais dorido. Às vezes é mais fácil, porque quando estás a sofrer queres deitar para fora. E quando estás feliz se calhar queres ligar a alguém, conversar, ir correr ou dar um mergulho. Quando estás triste se calhar não queres fazer coisas, mas se calhar queres tocar. Portanto, percebo isso. Se calhar saem-me mais coisas na tristeza e na dor. Mas, ao mesmo tempo, não sou uma pessoa que só escreve sobre coisas tristes. A felicidade também me inspira muito.
Uma coisa que é sempre inevitável nestes casos: já está num momento diferente, mas ao mesmo tempo está a apresentar estas músicas que representam uma fase mais triste e anterior da sua vida. Obviamente, nos concertos há-de tocá-las bastante e não vai ser propriamente uma coisa rápida. Como lida com isso? Porque são canções mais tristes, melancólicas, que não representam necessariamente aquilo que está a sentir neste momento mas que também a levam para aí.
É engraçado porque o processo de “cura” começou quando gravámos o álbum no início de dezembro. E senti a coisa a fechar quando acabei de o misturar no início de janeiro. Parece que, no segundo em que o álbum se fechou e ficou pronto, as coisas todas dentro de mim que eu entretanto fui resolvendo e trabalhando também ficaram resolvidas. É engraçado porque agora acontece uma espécie de celebração. Quase que ouvir as músicas e tocá-las em tour… Não é que me vá puxar para um lugar triste. Acho o contrário até. Porque estou tão feliz agora e tão resolvida e a sentir-me leve e calma que parece que tocar estas músicas vai ser uma celebração de: olha onde eu já estive e onde estou agora. Que bom poder tocar estas coisas. Até é bem positivo. Estar constantemente a ser relembrada de que as coisas podem mudar e que quando estás em baixo também podes ir para cima… É aprendermos a lidar com os ciclos da vida.
A própria MARO também cancelou alguns concertos…
Não cancelei, isso foi uma falácia que as pessoas criaram. Eu estava era a começar a organizar uma tour, mas não tinha nenhum concerto confirmado, se não acho que não tinha cancelado. Sempre levei muito a sério os meus compromissos. Na altura estava a ser falada uma tour na Europa, mas ainda não estava fechada — daí eu ter tomado essa decisão. Já que não está fechada e que eu não estou bem, não vou andar para a frente com estes planos e vou tirar um tempo para mim. Não é como se as pessoas já tivessem bilhetes.
Certo, o plano em si é que foi cancelado ou adiado. Tem acontecido com muitos artistas, porque se calhar a saúde mental é também cada vez mais falada e valorizada, e talvez no passado isso não acontecia tanto e as pessoas iam mais para a frente independentemente do que fosse acontecer. Sente que também é uma característica positiva desta fase do mundo?
Concerteza. São coisas que se têm de falar. A quantidade de pessoas que se mataram por coisas que poderiam ter sido descobertas e medicadas… Ou só por haver esta abertura de se falar de depressões, esgotamentos ou bipolaridade. Essa coisa do ser tabu… Houve tanta gente que não se sentiu apoiada e que inclusive escolheu ir embora deste mundo. Acho absolutamente maravilhoso estarmos a abrir este diálogo nesta fase, nesta geração, de as pessoas estarem conscientes de que estas coisas são muito mais normais do que se pensa e não deve ser tabu. Ninguém deveria ter vergonha de estar a sentir o que seja. Como a bipolaridade… Muitas coisas podem ser tratadas e seguidas de forma cuidadosa, com carinho, e de repente a pessoa fica bem e vive uma vida feliz. Se não houvesse este diálogo que está a acontecer, isto poderia continuar a ser um problema muito maior. Felizmente estamos a conseguir tratar deste assunto de uma maneira mais saudável. Quando percebi que não estava bem, não tem como eu tentar dar aos outros o que não tenho para mim. Não há dinheiro ou oportunidades que paguem isso.
Tem estado a internacionalizar-se e a viver e trabalhar fora de Portugal já há vários anos. Até esteve em Los Angeles.
Sim, agora estou no Brasil mas em setembro vou voltar para Los Angeles. Vivi lá em 2018, e entretanto fui em tour. Em 2020, quando ia voltar de vez e procurar casa de novo em Los Angeles, foi quando começou a pandemia, então tenho estado mais entre Portugal e Brasil.
Muitas vezes fala-se das dificuldades de os músicos portugueses se internacionalizarem. No seu caso, certamente tem encontrado públicos que não o português que gostam de ouvir a sua música e pontos de ligação, até porque vivemos num mundo mais globalizado. Sentiu esse desafio e dificuldades ou no seu caso até foi uma surpresa agradável, no sentido em que conseguiu chegar a públicos internacionais?
Levar as coisas para fora, para outros lugares, não tem como não ser bom. Um dos meus artistas favoritos é o Rajery, de Madagáscar, que canta numa língua em que eu não sei uma palavra. E, no entanto, moldou a minha vida inteira. A minha musicalidade, a forma como vejo a vida… É uma música que me toca num sítio tão astral. Para isso acontecer, para essas trocas existirem, tem de haver essa internacionalização. No meu caso, como vivi nos Estados Unidos e trabalho com malta inglesa, comecei a escrever em inglês e isso facilitou. Mas acho que, mesmo quando a pessoa não quer escrever noutra língua… Só o Instagram já é uma porta incrível.
E obviamente existem oportunidades que antes não eram possíveis. Estava a comentar que planeia regressar a Los Angeles. Porquê neste ano? Qual é a sua expetativa?
É lançar o “Hortelã”, depois vêm mais uns projetos… Daqui a um mês vou lançar uma surpresazinha. Vou voltar a trabalhar com este produtor para lançarmos umas coisas no verão e no outono. Muitos projetos e música a nascer. E estamos a organizar algumas tours deste novo álbum, com dois guitarristas. Em relação a Los Angeles, eu estava num sítio de que gostei muito. Estava a trabalhar com muita gente, havia oportunidades giras e como é uma cidade muito grande vivia mais focada. Menos um café aqui, um almoço aqui, família aqui… Acho que acabo por conseguir viver um pouco mais focada. E estou numa fase em que é agora ou nunca. Na altura adorei, estava numa fase de início de carreira, e o que sinto agora é que mais um ano e não ia ter vontade nem energia nem coragem de estar a ir. Portanto, vou agora, fico uns aninhos e… também não é que eu queira viver lá. É aproveitar esta fase, estes anos que ainda tenho para poder saltar de cabeça e mergulhar sem medo.
Para terminar, a MARO venceu o prémio da NiT para Melhor Tema Original. Foi eleita pelos nossos leitores. Para si é importante este reconhecimento do público?
Concerteza. Eu fiz o Festival da Canção porque o meu trabalho já começava a ser conhecido fora de Portugal, mas nunca foi muito em Portugal. Era — mas mais num nicho. E o que senti com a “saudade, saudade” foi que se abriu a porta para o público português — e a canção foi muito acarinhada. E agora ver uma forma mais formal de se confirmar isso, que é este prémio… Sinto uma gratidão, é muito especial, é uma celebração do que foi a “saudade, saudade” para o País.
E vê-se certamente a continuar a visitar Portugal e a tocar por cá.
Claro, Portugal vai ser sempre onde tenho a minha família. Deverá ser onde quererei viver depois, quando estiver mais estável e quiser arranjar casa e assentar. E agora, mesmo que eu esteja fora, há sempre uma vontade de voltar. Não só para fazer concertos, mas para viver o meu País, a minha família e tudo.