O sorriso tímido mostrava algum nervosismo, a voz rouca estava perfeitamente justificada. Depois de dez anos e 11 meses de exílio em Paris, França, José Mário Branco estava de volta a um Portugal em pleno pós 25 de abril. Aquele 4 de maio de 1974 foi o primeiro dia em José Mário Branco se apresentou em televisão, na “RTP“, ainda a recuperar do primeiro 1.º de maio de um País com uma liberdade recuperada ao fim de meio século de ditadura.
“A tua voz hoje infelizmente não será a mais pura, como não é a minha e não é a de milhares de portugueses que neste célebre 1 de maio gritaram em plenos pulmões pela primeira vez na vida”, disse Luís Filipe Costa antes de dar a palavra ao músico português para interpretar a “Ronda do Soldadinho”.
José Mário Branco concordou com o jornalista, mas não quis deixar de cantar. Afinal, a música, que pertencia a um álbum editado clandestinamente em França, acabara de ser adaptada às condições do Portugal de então e ele queria dedicá-la a três grupos de pessoas: “às crianças da nossa terra que vão construir o nosso Portugal socialista, aos soldados do exército e aos desertores”.
Nascido a 25 de Maio de 1942, no Porto, o músico passou os primeiros anos de vida entre essa cidade e Leça da Palmeira. Filho de dois professores do ensino básico (António Branco e Sara Monteiro) e com um tio padre, foi educado segundo a religião Católica e os costumes da vila piscatória.
Desde muito cedo mostrou aptidão para a música. Aos quatro anos, conforme recordou numa entrevista ao site “Buala“, foi apanhado a chorar agarrado a um rádio que tocava “Minuetto”, de Boccherini. Mais tarde, na adolescência, os seus padrinhos inscreveram-no no Conservatório do Porto. De lá seguiu para a Universidade do Porto onde frequentou o curso de Economia, que acabou por não correr bem “por causa da Matemática”.
À paixão pelas artes, José Mário Branco juntou uma forte ligação com a política. Em 1958, aos 16 anos, envolveu-se ativamente na campanha do general Humberto Delgado e acabou por tornar-se militante do PCP em 1961. Foi quando se recusou a entrar no exército português que os seus problemas começaram: após ser preso pela PIDE, decidiu fugir para França.
“Fui vítima como muitos outros camaradas foram ao longo do governo fascista. Houve a minha chamada para a tropa e eu, como 107 mil jovens portugueses, recusei a participação. Queriam que combatesse contra as justas lutas dos pobres das colónias”, contou à “RTP”.

A decisão custou-lhe quase 11 anos de exílio. Regressou ao nosso País poucos dias depois do 25 de abril de 1974 para continuar a defender tudo aquilo em que acreditara nos últimos anos. “A primeira coisa que fiz foi definir-me como militante anti-fascista, anti-colonialista e anti-imperialista consequente. A minha maior preocupação, seja em que domínio for e em todos os segundos e minutos da minha vida será pôr-me ao serviço das lutas do povo português”, confessou na mesma entrevista.
À parte disso, teve um percurso artístico brilhante em áreas como a música, cinema e teatro. Da sua extensa obra destaca-se o álbum “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”, de 1971. Fundou ainda o Teatro do Mundo; fez parte da companhia de teatro A Comuna; colaborou com músicos como Camané, Amélia Muge, Sérgio Godinho e Kátia Guerreiro; e editou o último álbum de originais, “Resistir é Vencer”, em 2004.
José Mário Branco morreu esta segunda-feira, 19 de novembro, aos 77 anos. A NiT juntou três histórias que marcaram a vida do músico, cantautor e produtor português. Leia-as a seguir.
A detenção e o dia em que fugiu para França
Eram sete da manhã de 28 de abril de 1962 e José Mário Branco ainda dormia profundamente. A mãe acordou-o para avisá-lo que estavam dois homens à porta a perguntar por ele. Enquanto se levantava, os indivíduos entraram no quarto e um deles, num tom ameaçador disse: “Considere-se preso. Polícia Internacional e de Defesa do Estado.” O outro, sem pedir autorização, já estava a revistar o casaco do músico, enquanto lhe pedia para entregar a pistola — que não tinha.
Depois de uma busca à casa, os dois homens apenas encontraram uma cópia da carta do bispo do Porto ao ditador Salazar. O material que estava a organizar há um ano, uma espécie de célula comunista de estudantes liceais, estava escondido debaixo da banheira e não fora encontrado.
Contudo, não foi preciso mais para que José Mário Branco fosse detido e levado para Coimbra. No dia seguinte seguiu para a sede nacional da PIDE, em Lisboa. Segundo a biografia partilhada na página de Facebook “Antifascistas da Resistência”, e escrita pela autora Helena Pato, “estavam lá todos os seus camaradas da organização de Coimbra, denunciados pelo responsável daquela organização, militante que muito admiravam”.
José Mário Branco saiu da prisão a 29 de setembro de 1962, ao lado da mãe que o foi buscar e o levou para o Porto. Lá, inscreveu-se no curso de História, que frequentou até ser chamado para o serviço militar obrigatório de onde, inevitavelmente, seguiria para a Guerra Colonial. Embora o PCP defendesse que os seus militantes deviam servir a nação, esta era uma opção completamente sem nexo para o jovem José Mário.

Foi nesse momento que viu aquela que considerou ser uma saída possível: fugir para outro país. O 10 de junho de 1963 parecia-lhe o dia perfeito. Os governos fascistas de Portugal e Espanha tinham aberto as fronteiras para os cidadãos se movimentarem apenas mostrando o bilhete de identidade. José soube que Ana Maria Pinto e Joaquim Alves da Costa, primos da namorada Isabel Alves Costa, iam aproveitar para ir até Vigo e decidiu ir com eles.
“Tive que pensar a quem pedir dinheiro, quem ia saber que eu ia fugir. Nem a minha namorada, nem os meus pais, ninguém soube que eu ia fugir naquele dia 10 de junho de 1963. Dois amigos emprestaram-me um conto de reis, para apanhar o avião de Vigo a Madrid e daí o comboio para Paris onde cheguei com 50 francos no bolso”, disse numa entrevista à “Blitz“.
Consigo, o músico português levou apenas um pequeno saco com pijama, uma camisola, cuecas, meias e um livro: “Poesia III”, de José Gomes Ferreira. Durante alguns dias dormiu debaixo das pontes do Sena até que encontrou Mário Clinton, um angolano que acabou por levá-lo para uma residência de estudantes onde ficou instalado.
Foi lá que encontrou dois dos seus melhores amigos, Rui d‘Espinay e Manuel José Claro, que também tinham fugido. Com sorte, José conseguiu legalizar-se e arranjar emprego como operário. Nesse verão, Isabel Alves Costa foi fazer um campo de férias para Paris e acabou por ficar com o namorado. Foi lá que nasceram os dois filhos do casal: Pedro e João.
A primeira vez que pegou numa viola e nunca mais a largou
Conta a biografia feita por Helena Pato, que numa noite de convívio em Paris, um primo de Isabel Alves Costa deixou em casa de José Mário Branco uma viola meio partida e enferrujada. Sem experiência, mas com vontade de aprender, o jovem começou a fazer alguns acordes.
Influenciado por Zeca Afonso, Fernando Lopes Graça e Michel Giacometti e pela música francesa da época, conforme contou ao site “Buala“, o artista português começou primeiro por cantar e tocar temas de outros músicos para depois passar a compor canções originais.
Nessa altura, as músicas escritas em francês contavam histórias daquele país e de pessoas que tinham de trabalhar duramente para sobreviver. Alguns meses depois, convicto de que já sabia o suficiente para atuar em público, José pôs-se à disposição do movimento associativo para atuar em vários espetáculos, como a festa anual de L’Humanité, órgão do Partido Comunista Francês. Entretanto conheceu Sérgio Godinho e foi com ele que ganhou o primeiro cachet por um espetáculo.
Em 1971 editou o seu primeiro álbum de originais. “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades” foi inspirado no célebre verso de Luís de Camões. O disco, com músicas como “Queixa das Almas Jovens Censuradas”, “Mariazinha” e “Cantiga do Fogo e da Guerra” (algumas delas cantadas com Sérgio Godinho), começou a tocar em países como Suíça, Alemanha Holanda ou Itália.
A 27 de novembro de 1971 aconteceu algo inédito. A produtora Sassetti apresentou o álbum no Cinema Roma em Lisboa numa sessão transmitida em direto pelo programa “Página Um” da Rádio Renascença. A seguir, a editora mostrou ainda uma entrevista feita pelo jornalista Adelino Gomes a José Mário Branco e Sérgio Godinho em Paris.
“Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades” esgotou em poucos dias — foram vendidos cinco mil exemplares.
Manuela de Freitas, a mulher por quem se apaixonou
Foi no caminho para Groupe Organon em Saint-Quentin-en-Yvelines, onde trabalhava, que o músico português recebeu a notícia a 24 de abril de 1974 de que estava a haver um golpe de estado em Portugal. Seis dias depois, voltou para o seu País na companhia da mulher, no mesmo avião que Álvaro Cunhal, Luís Cília e o historiador Cláudio Torres.
Instalou-se em Lisboa onde continuou a compor música. Foi nessa altura que a sua vida artística esteve muito centrada no teatro, com vários trabalhos ligados à A Comuna.

Passados cinco anos, e depois de se separar da mulher, “num ato de solidariedade para com um grupo de atores expulsos por divergências de estratégia e de repertório”, lê-se na biografia, José Mário Branco afastou-se da companhia.
Uma dessas colegas era Manuela de Freitas, com quem o músico iniciou uma relação amorosa. Contudo, no início, a atriz não gostou dele. “Era uma pessoa muito desagradável. Fazia-me confusão que uma pessoa tão extraordinária artisticamente, tivesse um comportamento politicamente tão duro e sectário”, contou ao site “Buala”.
Divergências esclarecidas, José e Manuela viveram uma bonita história de amor. Aliás, foi ela que o fez apaixonar-se pelo fado, com o qual até ali não se identificava. Era mesmo contra do ponto de vista ideológico, considerando que aquele estilo não era uma canção nacional.
“Em 1979 conheci a Manuela, começámos a conversar e ela explicou-me que o fado é como tudo o resto: tem o bom, o assim-assim e o mau. A maior parte é assim-assim, depois uma grande parte é mau e uma pequena parte é bom. Mas, sobretudo, a Manela explicava-me o porquê de ser bom ou não. Os grandes fadistas têm uma coisa que tem a ver com o desplante, olhar as pessoas nos olhos. O fadista é um contador de histórias, é uma pessoa que exprime emoções, como o ator”, confessou numa entrevista à “Sábado“.
A opinião do músico mudou tanto que em julho de 2018 acabou por produzir o disco de Katia Guerreiro — Manuela também ajudou. Até aos últimos meses, o casal, entre tantas outras atividades, costumava ir ouvir fado juntos. A partir desta segunda-feira, 19 de novembro, restam à atriz as boas e eternas recordações.