Música

“A nível espiritual, a forma como o açoriano gosta de receber é bastante singular”

Cristóvam é o mais recente convidado da Embaixada dos Açores. O cantautor foi elogiado internacionalmente graças aos seus temas.
É um dos grandes talentos dos Açores.

Se pudesse ser bem-sucedido na música, se uma entidade mistério, toda-poderosa, me garantisse isso, trocaria tudo por tal oportunidade. E se o milagre viesse com bónus — escolher que talento possuir —, seria o do meu convidado de hoje. Cantautor de eleição, a navegar o folk com mestria a partir do centro do Atlântico Norte, o terceirense Cristóvam tem a sua música no cinema, na publicidade, nas novelas, nas ondas hertzianas, e até nos ecrãs portáteis do mundo inteiro (quando a sua “Andrà Tutto Bene” deu várias voltas ao planeta no auge da pandemia).

“Hopes and Dreams”, do seu primeiro (e homónimo) álbum, venceu o International Songwriting Competition, entre milhares de candidatos. Daí para cá tem atuado por todo o País e em tours internacionais com gente como Stu Larsen, Tim Hart, Scott Matthews, entre muitos outros. Nos próximos tempos poderão vê-lo no Festival Monte Verde (9 de agosto) ou a 23 no Parque da Devesa, em Famalicão. “Songs on a Wire” é o título do seu novo álbum e o mais recente single é o belo “Crooked Lines”:

Alma indie e das ilhas para o mundo, o meu amigo e conterrâneo é tratado assim pela Earmilk: “Cristóvam encontrou a medida perfeita entre cantor/compositor e indie/folk, misturando os dois para criar algo que tenha, ao mesmo tempo, fascínio e autenticidade.”

Um produtor de Hollywood está louco para fazer um filme sobre a tua vida, mas falta convencer o estúdio, que só avança se for o Spielberg a realizar… ora sucede que dás por ti num elevador com o sôr Steven. Como venderias o teu peixe?
Ora viva shôr Esteves, como está? Era mesmo consigo que queria falar… Antes de mais, muito obrigado pelo “Jurassic Park” que é sem dúvida o filme que eu e o meu irmão mais vezes vimos na nossa infância. Gostava muito de convidar o senhor a vir à minha casa nos Açores passar uns dias. Vamos tomar uns banhos de mar, comer umas lapinhas grelhadas, beber um bom vinho branco e uma nêveda que tenho lá em casa… (Guardaria o resto da conversa para o final de um desses jantares longos, já depois do tal vinho e da tal nêveda).

O dia profissionalmente mais feliz da tua vida foi quando e porquê?
Talvez o dia em que comecei a digressão europeia com o Stu Larsen. Estava à beira dos 30 e foi a materialização de um sonho numa altura em que já tinha feito muitos sacrifícios pela música e os resultados tardavam em chegar. Foi um momento importante onde finalmente pude sentir que ter abdicado da estabilidade de uma vida normal nas diversas oportunidades de trabalho que tive, estava finalmente a fazer algum sentido. De repente tudo valia a pena porque estava em Paris, com um dos meus artistas preferidos ao lado, prestes a entrar em palco para tocar para 400 ou 500 pessoas numa sala de sonho. Era real, palpável e estupidamente gratificante. Curiosamente, uma semana e meia depois, regressei a Portugal para fazer um showcase numa Fnac onde só estava presente a senhora que trabalhava no café… Doeu de verdade porque tinha a cabeça em altas de tudo o que tinha acabado de viver e de repente tive aquele reality check. No final do dia, talvez tenha sido importante ter esse choque para não entrar em devaneios e estar preparado para dias desses também. Porque ser artista é isso mesmo, tanto estás lá em cima como logo a seguir estás cá em baixo e no final do dia, tens sempre de te agarrar ao amor que tens por aquilo que fazes e perceber que as coisas são mesmo assim.

O que poderia Portugal continental aprender com os Açores?
A nível espiritual, penso que a forma como o açoriano gosta de receber é bastante singular. O modo como temos sempre a porta aberta e lugar na mesa para mais um, acaba por ser o reflexo de um espírito de partilha e de entreajuda bonitos, dos quais me orgulho muito enquanto açoriano. Acho que essa é uma característica que nos define um pouco enquanto povo e que acaba por ser transversal às 9 ilhas.
Gastronomicamente, vou aproveitar para mencionar algo que é muito pouco falado quando se fala da comida dos Açores e em particular da ilha Terceira – Falo da arte de fazer uma boa bifana. Em lado nenhuma de Portugal comi uma bifana tão boa como as que se encontram nas nossas tascas ambulantes. Já agora, para quem nos visitar e as quiser experimentar: procurem a tasca mais feia, aquela que normalmente tem um mestre barrigudo com a camisa toda suja de farinha e óleo e uns dedos largos de quem trabalhou na terra a vida toda. São eles os reis da boa bifana.

De que forma o carácter atlântico, a açorianidade, o seres ilhéu influencia o teu processo criativo?
É sempre um pouco estranho perceber o que nos move artisticamente naquilo que nos rodeia, porque a nossa realidade é a nossa realidade e de certa forma, sempre esteve lá a condicionar involuntariamente a maneira como pensamos, agimos, etc. Ainda assim, acho que nascer e viver com os olhos postos no mar, olhando para lá como quem olha para uma autoestrada gigante que nos pode levar a qualquer canto do mundo, tem certamente a sua magia, e é sem dúvida algo que sempre me puxou pelo imaginário e que, se calhar de uma forma até um pouco paradoxal, fez-me encarar o mundo como um todo, sem pensar tanto em fronteiras. Quando tento olhar para aquilo que faço de uma forma o mais desconectada possível, consigo perceber que talvez a minha ligação à natureza e à pureza dos Açores seja uma das razões para gostar de me exprimir de uma forma também ela natural, sem grandes fogos de artifício.

Qual foi o maior disparate que já ouviste sobre as ilhas?
Quando andava na faculdade em Lisboa, chegaram-me a perguntar (de verdade) se tínhamos luz e internet nos Açores. Depois tens os clichés de ir a pé de uma ilha para outra ou da “ilha de Ponta Delgada”. Cá na ilha (Terceira), houve uma senhora do Norte de Portugal que estava meio perdida pelos lados da freguesia de São Mateus e que me perguntou para que lado ficava Angra dos Reis (risos).

Que crime cometerias se não houvesse castigo?
O ativista que há escondido em mim provavelmente afundaria barcos de pesca de arrasto, já eu, enquanto ser mais ou menos racional, não sei bem o que faria…

Como reage a tua família à tua profissão?
Com uma naturalidade muito grande. Sinto-me verdadeiramente privilegiado nesse aspeto. Os meus pais, penso que por serem também eles apaixonados pela música, e pessoas que criaram o seu próprio caminho fugindo de um padrão de vida standard, sempre me apoiaram no sonho de tornar-me artista/músico profissional – e isto numa altura em que não tínhamos assim tantos exemplos de sucesso de pessoas que tivessem construído carreiras na música.

Aquele sonho por realizar é?
Tocar na minha sala de concertos preferida: a Paradiso, em Amesterdão.

Qual é o sentido da vida?
Assumindo desde já que percebo bastante pouco do assunto, cá vai a minha melhor tentativa: penso que o sentido da vida é procurar por essa resposta de uma forma um pouco descomplexada, assumindo desde logo que nunca a vais ter, puxando para perto de ti as melhores pessoas que encontrares pelo teu caminho, estimando muito as que sempre lá estiveram, e dando o teu melhor para que a jornada de todas elas seja a melhor possível enquanto procuram pelas mesmas respostas que tu. No final do dia, se tudo correr bem ao longo desse trajeto, penso que o sentido da vida será amar e ser amado.

Restaurante?
Búzius.

Vista?
A “Manta de Retalhos” na Serra do Cume.

Banhos/zona balnear?
Serretinha.

Ritual/tradição?
Aquele mergulhinho de fim de tarde em qualquer parte da ilha.

Artista referência ou que admires (nas ilhas, vivo ou morto)?
Zeca Medeiros, Lúcia Moniz e Augusto Fraga.

Obrigatório de visitar (museu, associação, teatro, bar, whatever)?
Algar do Carvão.

 

ÚLTIMOS ARTIGOS DA NiT

AGENDA NiT