Leram aqui primeiro, no início do ano, acerca do potencial impacto que o OVNI da Inteligência Artificial (IA) poderia ter, ao aterrar no mundo da música. Poucos meses depois, parece que já passou uma eternidade e a IA está aqui em força. O impacto na indústria musical já é imenso.
Em abril, a imprensa esteve ao rubro devido a um suposto “disco perdido” dos Oasis criado graças à IA. Até o próprio Liam Gallagher comentou o assunto. Tudo não passou de uma (excelente) manobra publicitária dos Breezer, uma banda virtualmente desconhecida do grande público, que assim ficou nas bocas do mundo por umas semanas. Resultou em cheio, mas aquilo não é Oasis. Por outro lado, é só ir ao YouTube pesquisar por faixas escritas pelo Noel Gallagher e “cantadas” por uma ferramenta de IA com a voz do Liam e perceber que, isso sim, é Oasis. A manobra acabou por realçar as limitações da IA na música — a ferramenta pode imitar partes, mas não pode, pelo menos ainda, substituir o compositor, sem que a música soe a uma cópia da loja dos 300.
Em contrapartida, temos o caso recente dos Nirvana, que usaram uma ferramenta IA para remisturar fitas de gravações ao vivo, agora lançadas na caixa “In Utero”. Ou antes, numa altura que ainda nem se falava em IA na música, quando Paul McCartney fez um “dueto virtual” com John Lennon nos seus concertos, em “I’ve Got A Feeling” (aqui em Glastonbury). O feito foi possível devido a um processador de IA, utilizado para isolar a voz de John, e era essa a faixa que era reproduzida em palco, enquanto a banda tocava, e Paul cantava com John. É mais ou menos isto que vamos ouvir na nova, e última, faixa dos Beatles, que está na iminência de ser anunciada, “Now And Then”.
Um pouco de contexto. “Now And Then” é uma composição original de John Lennon, gravada numa cassete em sua casa durante 1979, e que não conseguiu terminar antes de morrer. Anos mais tarde, em 1994, quando Paul, George, e Ringo reuniram-se para o projeto “The Beatles Anthology”, Yoko entregou a Paul uma cassete com maquetes de quatro temas de John, onde figuravam “Now And Then”, “Free As A Bird”, “Real Love”, e “Grow Old With Me”. “Grow Old With Me” já tinha saído na compilação “Milk And Honey”, por isso a atenção dos “Threetles” virou-se para as outras três canções. “Free As A Bird” e “Real Love” viram a luz do dia na época, mas George não gostou do resultado de “Now And Then” e o tema foi posto na gaveta indefinidamente. Até agora.
Talvez inspirado pelo resultado notável da experiência em “I’ve Got Feeling”, talvez inspirado pelas recentes remisturas de Giles Martin em “Revolver”, ou talvez apenas porque, como Ringo sugeriu, estava a ter um dia aborrecido, Paul decidiu ir ao arquivo recuperar “Now And Then” e usar toda a tecnologia existente para dar os toques finais ao tema. Espera-se que a versão de “Now And Then” que vamos ouvir muito em breve junte elementos novos, com elementos antigos, “reciclados” por Inteligência Artificial. Começando pela faixa vocal de John, que será isolada da maquete original e “enriquecida” pelo algoritmo da IA. Não será o John a 100% que vamos ouvir, mas será “close enough”, como dizem os ingleses (será mesmo?). Supostamente, Paul gravou uma nova faixa vocal e essa também terá sido tratada por IA, para soar mais novo, como o Paul dos anos 80. É certo que a voz de Paul mudou muito nos últimos anos (a idade não perdoa), por isso o que vamos ouvir será IA, ou uma reciclagem da faixa vocal de 1994. Ou uma amálgama de ambas. É esperar para ver, e ouvir.
George Harrison, que havia descartado o tema nos anos 90, terá a sua guitarra e voz de 1994 recuperadas (com a anuência da família, imagino) para a versão final de “Now And Then”. Ringo tinha gravado bateria na época, mas regressou ao estúdio recentemente para fazer mais um take, como o próprio confirmou à NME. Ringo também confirmou que o tema terá nova orquestração, gravada no último ano em Los Angeles. Não fazendo por menos, “Now And Then” será promovido como “a última canção dos Beatles”. Vai ser difícil estar à altura das expectativas.
Lançados os dados para “Now And Then”, resta saber qual o projeto ao qual o novo tema dos Beatles será associado. Cogita-se que as clássicas compilações vermelha (“1962-1966”) e azul (“1967-1970”) vão ser remisturadas e expandidas para lançamento na quadra natalícia. Estas remisturas podem ser também muitíssimo interessantes, uma vez que podem utilizar a mesma tecnologia IA para isolar partes instrumentais em temas como “Love Me Do” e “She Loves You”, os quais existem unicamente em Mono, e criar as primeiras versões Stereo destas canções. Quem sabe, “Free As A Bird” e “Real Love”, produzidas à moda antiga nos anos 90, pode ser também reconstruídas por IA? As possibilidades do maravilhoso novo mundo da Inteligência Artificial são infinitas.
A discussão sobre a validade e utilidade da AI é das temáticas mais interessantes dos últimos meses, anos, décadas, e por que não, de toda a existência humana. Como disse no início do ano, este avanço tecnológico é uma forma de vida alienígena que ainda não compreendemos e que vai revolucionar tudo. E é entusiasmante e assustador em doses iguais. Para já, vamos ter um tema novo dos Beatles, em dueto com IA. Não será bem o mesmo, mas será close enough. Pelo menos assim esperamos. É o futuro e já cá estamos.
P.S.: Para ouvir um aperitivo do que nos espera, fiquem com uma versão produzida por um fã de “Now And Then”: