Música

O baterista português que participou nas tours frenéticas de Tina Turner

A cantora americana morreu esta quarta-feira, 24 de maio. Recorde a entrevista da NiT com Luís Jardim, que tocou com a diva.
Tina Turner começou a carreira nos anos 50.

O mundo artístico parou com a notícia da morte de Tina Turner, ou Anna Mae Bullock, a rockeira negra que marcou uma era na música e que morreu esta quarta-feira, 24 de maio. Reformada há vários anos, abdicou da cidadania americana e vivia na Suíça, onde morreu, ao lado do marido Erwin Bach — o grande amor da sua vida que lhe salvou a vida ao doar um rim.

“The Best”, “What’s Love Got To Do With It”, “Private Dancer”, “Proud Mary” ou “I Don’t Wanna Lose You” são apenas alguns dos temas que tornaram Tina Turner uma estrela mundial. Vendeu milhões e milhões de discos por todo o planeta e ganhou 12 Grammys, entre tantos outros prémios e condecorações.

Nos anos 80 estava no auge da sua carreira e foi nessa altura que se cruzou com um português. O músico e produtor Luís Jardim — que nos últimos anos se tem dedicado a ser jurado de programas de televisão como “Ídolos”, “Uma Canção para Ti” e “A Tua Cara Não me é Estranha” — tocou na banda da cantora durante alguns anos. Em 2019, por altura do 80.º aniversário da artista, falou com a NiT sobre a artista.

Luís Jardim viveu durante muitos anos em Londres, no Reino Unido, e trabalhou com vários artistas históricos, como os The Rolling Stones, David Bowie, Duran Duran, Robbie Williams, Cher ou Grace Jones, entre outros.

Já era conhecido no meio e era amigo do baterista de Tina Turner — que até já o tinha levado a ver concertos da cantora. Quando o baterista teve de ser substituído (porque tinha um problema num braço), Luís Jardim foi convidado para gravar algumas sessões de estúdio.

“Ela gostava de gravar nos Mayfair Studios e o dono era meu amigo. A primeira sessão que gravei foi de uma música com ela e o Rod Stewart”, conta Luís Jardim à NiT. “Gravámos vários temas e até fizemos um álbum especial para o campeonato do mundo no Brasil, penso eu.”

Em estúdio, Jardim tocava bateria, outros instrumentos de percussão e baixo, além de fazer alguma programação com máquinas eletrónicas, que começavam a instalar-se no mercado.

“Quando trabalhas com pessoas muito conhecidas, não fazes uma grande festa quando as conheces, não pedes para tirar uma fotografia. Chegas ao estúdio e dizes olá, é tudo muito normal”, explica o português sobre o momento em que conheceu Tina Turner.

Descreve-a como “uma pessoa muito direta, muito franca”, o que deixava o ambiente à vontade para todos os que estivessem no estúdio. Não era introvertida, apesar de ser “muito séria” no trabalho, ainda que com alguns momentos de descontração pelo meio. Em resumo, levava as coisas muito a sério e tinha um enorme profissionalismo.

“Não quero dizer que fosse agressiva, mas as experiências que tinha tido com o primeiro marido deixaram-na desconfiada com as pessoas, só chegava até certo ponto. Mas ao mesmo tempo dizia graças e asneiras.”

Luís Jardim recorda-se de ouvir uma vez Tina Turner a dar conselhos amorosos a Rod Stewart, que estava (em mais) um processo de divórcio. “Estava quase a dar-lhe na cabeça, do quão frontal ela é.”

Além disso, Tina Turner bebia muitas vezes chá preto no estúdio — sempre Earl Grey. “Ela ofereceu-me uma vez, perguntou-me se eu queria, e desde essa altura que bebo chá Earl Grey todos os dias.”

Depois, Luís Jardim foi convidado para ser o bateria em várias tours da cantora americana — esteve com ela na estrada entre dois ou três anos durante a década de 80. Atuaram nos EUA, na Europa, na Ásia ou na América do Sul. “Aceitei logo, nem sequer sabia quanto é que me iam pagar.” Aí acabavam por ter momentos mais descontraídos, mesmo que fosse tudo super profissional.

Luís Jardim tem 69 anos e tem sido regular na televisão portuguesa.

No total, a equipa de Tina Turner rondava as 50 ou 60 pessoas. Não era permitido beber em trabalho, a pontualidade era obrigatória e Luís Jardim explica que a cantora ficava mais reservada, com o namorado da altura, e que os músicos acabavam por ter uma vida própria — mesmo que viajassem todos juntos.

Juntavam-se nos concertos, claro. Atuaram no estádio Maracanã, no Rio de Janeiro, para 180 mil pessoas. “Muito raramente marcávamos um concerto e era só isso. Normalmente a data esgotava rapidamente e marcava-se mais até chegar à meia dúzia. Lembro-me de uma vez, em Israel, em que demos 16 concertos de seguida.”

Durante os concertos havia uma interação forte entre a estrela e os seus músicos — Jardim recorda que antes de subirem a palco juntavam sempre as mãos e desejavam sorte uns aos outros.

“Havia alturas em que nós, entusiasmados, fazíamos algumas modificações nas músicas durante os concertos e depois do espetáculo íamos para aquilo a que chamávamos ‘sala de aula’. Ela perguntava-nos porque tínhamos feito aquilo naquela música e dava-nos um pouco na cabeça, e limávamos as arestas todas.”

Depois dos espetáculos, Luís e os outros músicos gostavam de ir sair para bares ou discotecas. Tina Turner raramente os acompanhava — até porque não era fácil estar em público. O que normalmente acontecia é que a equipa ia toda jantar junta. “Era preciso fechar o restaurante de propósito, mas éramos 50 ou 60 pessoas.”

Tina Turner era fã de comida oriental, como indiana, chinesa ou tailandesa e gostava de ir a restaurantes desse género. “De vez em quando, em países que não tinham grande coisa, ela mandava um jato privado ir buscar o jantar a um restaurante indiano que ela adorava em Londres. Aconteceu algumas vezes. Mas tirando isso, ela não era uma pessoa excêntrica, não andava aí a esbanjar dinheiro.”

Luís Jardim diz que foi das tours mais bem pagas que fez na sua carreira — sendo que, pouco tempo depois, com duas filhas bebés, decidiu abandonar a vida de estrada para se especializar como músico e produtor de estúdio, o que lhe permitia ter uma vida mais calma, sem tantas viagens.

O português lembra-se bem do momento em que foi pago pela primeira vez, após três ou quatro meses de tour. “Estava sentado ao lado do pianista e diretor musical, no avião, quando me vieram dar um envelope. E reparei que tinha uns 400 dólares a mais. Comentei com o diretor musical e ele disse-me que era o normal. Então fui ter com a Tina, avisei-a mas ela disse-me para eu guardar e comprar algo para as minhas filhas. Quando regressei ao lugar e disse o que ela me tinha dito, ele disse: ‘Ainda bem. Se não tivesses ido ela tinha-te posto a andar daqui para fora quando aterrássemos’. Parece que ela fazia este teste com todos os músicos que trabalhavam com ela.”

Ou seja, se não tivessem a honestidade de ir devolver o dinheiro extra, deixavam de trabalhar ali. “Ela tomava conta da banda, tratava-nos bem. Fazíamos no máximo quatro ou cinco concertos por semana, porque ela não deixava mais. Era uma senhora, uma artista especial. Naquela altura ela e a Aretha Franklin eram as grandes cantoras mundiais. Nunca trabalhei com alguém que percebesse tanto de música, ela sabia e controlava tudo.”

Tina Turner não gostava, porém, de motoristas. “Porque durante os concertos iam beber copos. Então, nas viagens grandes que fazíamos de carro, ela pedia-me a mim ou a outro colega que conduzíssemos.”

Desde os anos 80 que Luís Jardim se afastou de Tina Turner, depois de deixar de fazer digressões. No entanto, o português disse que continuava a receber todos os anos um postal de Natal com um cartão a desejar felicidades e “uma brincadeira qualquer para as miúdas”.

Recorde também a história da morte trágica dos filhos da artista — e o vestido que lhe salvou a vida. A carreira de Turner está também relatada no documentário da HBO que está disponível em streaming.

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