Música

O dia em que Sara Tavares soube que podia perder a voz (e que tinha cancro)

A cantora e compositora morreu este domingo, aos 45 anos. Passou a última década a lutar contra a doença.
A artista começou a carreira aos 16 anos.

Aos 16 anos, Sara Tavares apanhou um barco de Cacilhas para atravessar o Tejo em direção ao Terreiro do Paço, em Lisboa. Pela frente, tinha ainda um autocarro para os estúdios da SIC, no Alto de São João. Era lá que estava a ser gravada a primeira edição de “Chuva de Estrelas” e, sem saber bem para onde ia, a miúda tímida e insegura arriscou. Tudo por causa de um sonho.

Nessa mesma noite, subiu ao palco e cantou o tema “Greatest Love of All”, de Whitney Houston. Apesar das inseguranças — já confessou várias vezes acreditar que não tinha noção do seu nível vocal — conquistou o primeiro lugar na final da primeira edição do talent show. A voz passou de um mero brinquedo para um instrumento fundamental.

Depois do triunfo, foram quase 30 anos a cantar, a compor e a construir o seu legado no mundo da música. A cantora morreu este domingo, 19 de novembro, no Hospital da Luz, em Lisboa. Tinha 45 anos e lutava há mais de uma década contra um tumor no cérebro. Apesar de se acreditar que estava totalmente recuperada.

Em 2017, regressou à música após uma ausência prolongada dos palcos, precisamente por causa do diagnóstico que recebeu oito anos antes. A verdade é que, mesmo sem ter publicado nada em nome próprio, continuou a escrever, a ensaiar e a dar uso à sua voz.

“Surge muito esta afasia quando falo, então o meu léxico ficou muito diminuído. Estou com uma recidiva [do tumor no cérebro a que foi operada em 2009] e com as mazelas que tenho há certas coisas na música que não consigo fazer”, revelava numa entrevista concedida ao “Expresso”, no final de 2022.

Quando o médico lhe revelou que tinha um tumor benigno, disse-lhe também que havia a possibilidade de ficar muda. Aquele que é, provavelmente, o maior medo de qualquer intérprete.

Porém, ao mesmo tempo que sentiu que vários dos seus planos lhe fugiam, Sara Tavares tentou manter-se racional. “Acreditei muito que não iria ser nada. E a tecnologia da medicina está muito avançada”, recordou numa entrevista ao “Sol”, em 2017, a propósito do seu regresso.

Sara Tavares estava numa altura da vida em que se sentia esgotada, devido à agenda cheia de concertos e aos contratos que tinha que cumprir. Era esse sentimento de exaustão que a levava a refugiar-se noutros interesses, e que a ajudou a relativizar a perspetiva de perder a voz. Ela encarava a música como um vício e afastar-se temporariamente acabou por se revelar saudável.

Perante a hipótese de não voltar a cantar, conseguiu ainda encontrar conforto noutros locais, nomeadamente na religião. “Tenho a criação da igreja, tenho um contacto espiritual muito forte, uma relação com as coisas que não são pragmáticas muito forte, então não me assusto facilmente”, revelou, à mesma publicação.

E acrescentou: “Para já foi um grande alívio porque pude cancelar a agenda com justa causa, não tive que pagar nada a ninguém e ninguém ficou chateado comigo. Tinha uma agenda nas costas enorme para os dois ou três anos seguintes.”

Na altura, o tumor ficou aparentemente resolvido em apenas uma operação. Mas a doença haveria de voltar, para frustração da cantora que nunca perdeu a voz. Mesmo quando o corpo foi sofrendo alterações e teve de mudar alguns dos seus hábitos para iniciar um novo ciclo.

Neste período, teve, sobretudo, que aprender a perceber quando precisava de descansar ou de ficar sem falar, por exemplo. Sara nunca escondeu que era uma pessoa introvertida. E passar mais tempo com a família, sobretudo com a mãe, foi uma das maiores mudanças na rua rotina — talvez a mais significativa.

Ainda assim, o receio de um dia ter de deixar de cantar nunca desapareceu. “Não foi um tumor extraído completamente e por isso tenho que lidar com o problema”, revelou, ao “CM”, em 2017. “Eu acho que as coisas também são muito psicossomáticas e quando as pessoas abusam de si há sintomas”,

Além disso, usou o seu talento para refletir o momento menos bom, transformando-o em arte. Foi assim que surgiu “Fitxadu”, lançado em 2017. É o seu último disco de estúdio e foi fruto desta pausa, em que se dedicou à recuperação. O trabalho representou, desde o início, uma paixão renovada por aquilo que a fazia feliz: a música. Prova disso são as várias colaborações com outros artistas nesse trabalho: Princezito, Paulo Flores e Toty Sa’Med.

Desde que regressou aos palcos, em novembro de 2022, sentia-se com uma energia renovada. Nos últimos 12 meses, lançou mais três canções: “Presensa”, “Mumentu” e “Kurtidu”. Voltou a fazer música com prazer e fugiu das pressões que são impostas pela indústria. Estava numa fase da sua carreira em que não havia mais nada a provar.

Entre tantas dúvidas nesta década demasiado complicada, havia uma certeza. Quando lhe perguntavam sobre “Coisas Bunitas” — como o nome de uma das suas canções — Sara Tavares não hesitava em responder que pensava logo nos seus sobrinhos. Eram eles uma das razões pelas quais ela cantava. Até porque nunca teve filhos.

Um dia, ao ouvir um tema da artista a tocar, um dos sobrinhos exclamou surpreendido: ‘Essa voz que está aí na rádio é da minha tia. Não sei como é que ela faz para sair da rádio, mas ela está a sair da rádio’”, contou ao “Sol”.

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