Música

O psiquiatra de 65 anos que se prepara para lançar uma carreira na música

Há 40 anos, José Salgado teve hipótese de gravar um disco com a Valentim de Carvalho. Agora recupera a sua paixão.
José Salgado tem 65 anos.

Aos 65 anos, José Salgado é um psiquiatra conceituado e reputado, tendo trabalhado sobretudo entre o Hospital de Santarém e o Centro Hospital Psiquiátrico de Lisboa, onde foi diretor clínico durante quatro anos. Mas agora está a apostar noutra faceta sua, que até há pouco tempo era desconhecida da maior parte das pessoas, sobretudo os seus colegas psiquiatras: a música.

Foi durante a adolescência que José Salgado, natural de Lisboa, começou a escrever poemas. “Achei natural musicar alguns e foi daí que as coisas começaram. Foi uma certa necessidade que senti por ter começado a escrever. Mas não havia nenhuma ligação prévia, nem a escritores nem a músicos. É algo que veio de mim, pelo menos que tenha dado por isso não houve nenhuma influência externa”, explica à NiT.

Ouvia sobretudo música anglo-saxónica dos anos 60 e 70, mas também clássicos da música francesa como Jacques Brel ou a geração dos cantautores portugueses da música de intervenção. Entre o final dos anos 70 e o início da década de 80, quando tinha 20 e poucos anos, chegou mesmo a ter hipótese de gravar um disco com a Valentim de Carvalho. 

“Fui à Valentim de Carvalho apresentar algumas coisas que tinha e o produtor na altura gostou e ficou alinhavado poder gravar um LP”, explica. “Estava tudo mais ou menos encaminhado, só que o produtor com quem estava acertado [Mário Martins] acabou por ser promovido e subiu na hierarquia da empresa.”

A partir daí, as coisas não correram como esperado. “O produtor que me calhou depois era uma pessoa diferente e acabou por não se concretizar, porque ele queria alterar muito daquilo que tinha sido combinado, e eu acabei por lhe dizer que não, que qualquer dia pensava nisso. Até porque estava a fazer o curso de medicina na altura e as coisas eram difíceis de conciliar. Então resolvi adiar — só que foram muitos anos [risos].”

Na altura, chegou a ter os temas escolhidos para o disco — eram entre 10 e 12 —, mas acabou por nunca os gravar. Curiosamente, coincidiu com o início da carreira de Carlos Paião, colega de José Salgado no curso de medicina. “Mas uma coisa não influenciou a outra, eram coisas independentes.”

Como se costuma dizer, a vida foi acontecendo, os desafios profissionais na área da medicina foram-se acumulando. “E fiz uma opção clara pela profissão de médico e deixei um pouco a outra parte.”

Ainda assim, José Salgado continuou a compor canções de forma esporádica e a cantar temas em convívios familiares ou de amigos. “E também tive algumas aulas de canto, embora não de uma forma continuada. Por isso nunca me afastei completamente. Mas durante muitos anos não pensei em concretizar isto de forma mais consistente. Ponderava a hipótese de ‘qualquer dia, ver se volto a fazer isto’. Mas nunca houve nenhum plano traçado. Era um ‘qualquer dia’ porque nunca tinha propriamente muito tempo, e fui adiando as coisas.”

O gatilho de que José Salgado precisava para voltar à música surgiu através da rádio, em 2017. “Foi uma questão curiosa. Eu vinha a ouvir a Antena 1 no carro e havia um programa que era o ‘Masterclass’ em que diziam aos ouvintes para enviarem as suas composições para serem avaliadas. E eu disse: já agora, é capaz de ter piada… Até porque o mentor do programa na altura era o João Gil, que tem uma obra que admiro muito. Por isso pensei que talvez fosse a altura. E enviei para lá duas músicas. Eles gostaram e depois fui apresentá-las num programa na Antena 1 e foi assim. Já que comecei, vou continuar. Foi um pouco por aí”, conta o psiquiatra.

José Salgado tinha aulas de canto com o músico e maestro Manuel Rebelo, que curiosamente havia trabalhado com João Gil ou nomes como Luís Represas e Maria Ana Bobone. Foi Manuel Rebelo quem acabou por trabalhar nos arranjos das músicas de José Salgado — que foi recuperar letras ou melodias ao seu espólio criado nos anos 70 e 80.

“Peguei nalgumas dessas músicas, recriei-as, mudei algumas coisas dos textos, fiz acrescentos. E outras são novas, não são dessa altura. Mas eram dentro desta linha, o tipo de música que gosto de ouvir. Foi com a ajuda muito importante do Manuel Rebelo que as coisas se começaram a desenvolver, e contactámos alguns músicos. A pandemia atrasou um pouco tudo isto, mas de qualquer maneira continuámos sempre nesse caminho e neste momento estão programadas 10 músicas.”

Só falta gravar duas e a ideia é que vão sendo lançadas nos próximos meses, para que culminem no lançamento do álbum “Cais de Memórias” por volta de julho. Por agora, já se conhecem os temas “Noite na Cidade” e “Novo Fado de Lisboa”.

“Este disco tem a ver com memórias musicais minhas, e tem coisas que vão desde o rock, passando por uma música que tem o ritmo de uma marcha de Lisboa, até às canções mais clássicas. Até há um ou outro toque jazzístico nalgumas composições. Transmite um pouco a música de que gosto, tem muita variedade. Cada texto precisa de uma música diferente, por isso não há um estilo que se possa dizer que seja comum. Varia muito consoante aquilo que me parece que é mais interessante para cada uma das músicas.”

José Salgado assume que não tem propriamente expetativas e sublinha que não deseja lançar uma carreira à séria na música. “Obviamente, pela minha idade, pelas minhas ocupações profissionais, não quero propriamente fazer uma carreira musical. Mas quero fazer um espetáculo de apresentação, numa sala em Lisboa de média dimensão, e a partir daí logo se vê. É um livro aberto. Poderei fazer espetáculos ou não, depende de como as coisas se proporcionarem. Não há propriamente um plano estabelecido.”

Perguntamos-lhe se a família ou os amigos ficaram surpreendidos com o facto de José Salgado estar a apostar num percurso musical nesta fase da sua vida. “Os meus amigos e a família sabiam deste meu plano que não se concretizou e de vez em quando era normal tocar para eles. Mas ficaram surpreendidos por ter decidido nesta altura fazer isto. E as outras pessoas que me conheciam da área da psiquiatria, algumas desde há muitos anos, ficaram perfeitamente surpreendidas. Até me disseram: ‘nunca pensei’. Foi uma surpresa para a maior parte das pessoas”, revela.

Habituado a lidar com “a parte feia da vida” no seu trabalho, vê a música como um bom complemento. “Se calhar na música fui um pouco à procura das partes mais bonitas da vida. Não foi por acaso que escolhi psiquiatria, foi a questão das emoções, o conhecimento do comportamento humano, são coisas que têm a ver comigo. Não que haja uma influência direta entre as duas áreas, mas têm ambas a ver com isto.”

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