É uma história de improbabilidades: era baixinho, o nariz maior do que era suposto, a origem humilde, deixou a escola cedo demais e o apelido era quase impronunciável. O próprio ao início admitia que a crítica não gostava lá muito dele em França. Mas cantou e a música nunca mais foi a mesma.
É certamente algo invulgar para as gerações mais novas, mais habituadas a crescer com músicas em inglês. Mas houve um tempo em que o francês era a língua estrangeira privilegiada em Portugal e talvez nenhum outro a tivesse cantado aos nossos ouvidos como Charles Aznavour.
Em 2016, uma Altice Arena enchia-se para o ouvir no regresso a Portugal, País pelo qual se apaixonou ainda nos anos 1950 e 1960. Houve refrões acompanhados pelo público e Aznavour deixou até a promessa de que ainda haveria de cantar fado quando voltasse. Dois anos depois estava marcado o tal concerto, em dezembro, na mesma Altice Arena, mas a promessa ficou por cumprir. A 1 de outubro de 2018, aos 94 anos, Charles Aznavour morria.
Depois de ter passado pela edição deste ano do IndieLisboa, “Aznavour por Charles” chega esta quinta-feira, 29 de outubro, aos cinemas nacionais. É um documentário perfeito para o reencontrar ou dar a conhecer. E não apenas pelo lado informativo. Há aqui algo de muito íntimo.
Em 1948, Edith Piaf, uma das suas grandes amigas, ofereceu-lhe uma câmara de filmar. De então em diante o cantor andou um pouco por todo o mundo, aproveitando sempre para gravar algo. As bobinas acumularam-se para um dia serem vistas. E há agora este lado inédito para o ver, num filme que é tanto do realizador Marc Di Domenico como do próprio Aznavour.
Em 2016, ao “Expresso”, o cantor recordava a sua eterna amizade por Amália Rodrigues. “Conheci-a na Bélgica, no fim dos anos 50, ela cantava numa sala do primeiro andar e eu no rés do chão”. Ao longo dos anos viram-se em Portugal, França e noutros países por onde atuaram e se cruzaram. “Para mim, era a Santa Amália. Falávamos de música, de arte…”
Quando Amália lhe confessou que gostaria de cantar em francês, surgiu “Ay, mourir pour toi”, canção de Aznavour a que Amália deu voz. A fadista, que era como uma irmã para o cantor, terá achado que era sobre a morte, mas não. A sonoridade lembrava uma das suas muitas paixões portuguesas, a Mouraria.
Nas décadas de 1950 e 1960, enquanto Aznavour construía o seu legado que o levaria a ser eleito “artista do século” em 1988 pela “CNN”, vinha praticamente todos os anos a Lisboa. Adorava o fado, a calçada portuguesa, os azulejos e as gentes. Portugal foi mesmo “o primeiro país de língua estrangeira” onde atuou. “Estive sempre apaixonado por Lisboa, gosto dos portugueses, são boas pessoas, bons trabalhadores, e sempre gostei das pessoas que trabalham bem.”
Nascido em 1924, Shahnour Vaghinagh Aznavourian era filho de imigrantes que haviam partido para França, deixando uma Arménia que tinha sido palco de um genocídio. O cantor a quem chamaram de Frank Sintra francês nunca chegou a conhecer o lado turco da sua família. Desapareceram para nunca mais serem vistos durante o genocídio arménio que ainda hoje a Turquia nega.
Aznavour deixou a escola aos nove anos e nunca saberemos se teria tido a sua grande oportunidade, não fosse o facto de um dia Piaf o ter visto cantar. Gostou tanto do que ouviu que o levou em tournée. As décadas seguintes seriam um testamento à vitalidade do cantor.
Não cantou em português mas fê-lo em italiano, inglês, espanhol e alemão, além de francês. O seu mais inesquecível sucesso será sempre “La Bohème”. Ao longo da carreira lançou mais de mil músicas e uma centena de álbuns, com centenas de milhões de cópias vendidas. Aparecem também em dezenas de filmes. A última vez que atuou em Portugal, em 2016, mostrou em palco clássicos mas também canções mais recentes.
O próprio admitia que já precisava de ajuda de um teleponto em palco e que não ouvia tão bem quanto antes. Mas as críticas da altura falam de um espectáculo de 99 minutos. Mais minutos do que os anos que já levava de vida, o que impressiona. E tudo num ritmo frenético, perante uma plateia muito maior do que as que tivera décadas antes, em concertos como na histórica discoteca Tágide.
Acabou por ser aquele o seu adeus a Portugal, que até mereceu os parabéns do cantor pelo tal jogo em Paris no verão daquele ano, em que um golo de Éder deixou o Stade de France em silêncio e valeu a Portugal o Euro 2016. Chegou a confessar que gostaria que o seu conterrâneo Gulbenkian tivesse deixado parte da sua fortuna à Arménia natal, mas compreendia a decisão. Era uma Arménia sob domínio soviético a de então e Portugal o lugar onde Gulbenkian se sentiu bem. Um amor que Aznavour compreendeu.
“Aznavour por Charles” chega esta quitna-feira aos cinemas. Vai estar em exibição em Lisboa, nos cinemas El Corte Inglés e Cinema City Alvalade, e no Cinema da Villa, em Cascais. No Norte pode ser visto no Arrábida Shopping, em Vila Nova de Gaia.