Em casa de Rita, ninguém era músico profissional nem particularmente talentoso de instrumento na mão. Ouvia-se muita música, é certo, mas a escolha saltitava entre os artistas de abril e os grandes nomes da indústria musical anglo-saxónica.
A música chegou tímida ao percurso da conimbricense. Primeiro no canto, depois nas aulas do conservatório, até assumir a flauta na tuna da faculdade. O cenário mudou quando fez as malas e zarpou para o Rio de Janeiro.
Aos 19 anos, a música brasileira, cantada e tocada pelos mestres como Chico Buarque, entrou como uma avalanche na vida de Rita Dias. O que era um hobby passou a uma certeza de futuro. E, de regresso a Portugal, o curso de Gestão passou a mera ferramenta para chegar à paixão: a música.
Acontece que nem tudo é assim tão simples. Hoje, Rita tem dois discos na mão, livro de poesia editado — e outro a caminho — e encontro marcado com o palco do Festival F, em Faro, onde irá atuar a 9 de setembro. Isto após ter sido também uma das convidadas para atuar na gala dos Prémios NiT 2023. Mas o percurso foi feito a pulso, exigiu dores, sacrifício e, naturalmente, mais uma peregrinação revitalizante ao Rio de Janeiro.
“A gestão foi sempre uma espécie de passaporte de emprego, a expressão que usámos na altura, em 2007, marcada pela crise e pela falta de trabalho”, recorda à NiT. O programa Sócrates levou-a até ao Brasil, numa experiência vivida por tantos estudantes. No bloco levava o nome de artistas imperdíveis, ajuda de Filipe Almeida, conhecedor e amigo que haveria de ser mão útil no primeiro disco.
“O que me fascinou lá foi a forma de cantar, porque ia habituada a um canto tecnicamente perfeito. Quando cheguei lá, percebi que os cantores não precisavam de ser muito expansivos para interpretarem bem um tema. Era uma interpretação certeira, sem ser exibicionista.”
Quando voltou, trouxe “enormes saudades” do Brasil, mas também uma vontade tremenda de cantar o que tinha aprendido. Começou por interpretar versões de temas conhecidos com o seu projeto Seis em Ponto, o primeiro passo para perceber que não sabia apenas estar em palco — também sabia compor. “Foi esse o impulso para o primeiro disco.”
Como em todos os processos de aprendizagem, este “não foi fácil”. “Custa perceber as nossas limitações, ver que temos muito a aprender, que não sai logo (…) Esse primeiro disco fez-me não ter medo de coisas difíceis.” “Com os Pés na Terra”, lançado em 2013, foi uma edição independente na qual empenhou todo o esforço, tempo e dinheiro.
Só que quando o lançou, já não tinha meios para o apresentar ao público. Após “dois anos de criação com muita coisa às costas”, chegado o momento da recompensa, “não foi possível marcar quaisquer concertos”. Com alguma frustração à mistura, agarrou-se à carreira.
Rita estava então a trabalhar na Caixa Geral de Depósitos, já com diploma na mão e outro a caminho, um mestrado em Ciência Política. Queria seguir investigação e, por momentos, a música parecia apenas uma miragem.
“Sabia que queria fazer algo na música. Sempre quis cantar, representar, mas atirei a ideia para debaixo do tapete. Depois vi-me adulta e percebi que o que fazia não me preenchia. O queria mesmo fazer era cantar”, conta sobre o raciocínio que a levou a interromper a tese de mestrado, deixar o emprego no banco e assumir que, para singrar na música, teria que dar tudo de si — sem compromissos.
Primeiro veio um ano sabático, onde se dedicou à música, à composição de um segundo disco, mas também às aulas de teatro. A poesia, essa sempre escreveu, mas começava então a ponderar tirá-la da gaveta e mostrá-la ao mundo.
A sua primeira grande oportunidade surgiu nessa altura. Nos blocos tinha um tema sobre as personagens e figuras históricas que marcaram a televisão nacional. Arriscou cantá-lo e enviá-lo para Nuno Artur Silva, à época à frente da RTP.
“Ligou-me mais tarde a dizer que a RTP Memória estava precisamente nesse momento à procura de um hino. Não fazia ideia e foi uma coincidência brutal, um alinhamento de astros. Andavam à procura e cai-lhes aquilo no colo”, explica sobre o tema “Se Bem Me Lembro”, lançado em 2016.
Essa “tábua de salvação” foi uma das peças que a ajudou a chegar ao segundo disco, não sem antes ter que ultrapassar mais uma série de obstáculos. Com o final do subsídio e do ano sabático, Rita conseguiu um estágio de diplomacia económica no AICEP, que a levou mais seis meses para a sua cidade musa, o Rio de Janeiro.
“Fiquei muito próxima do embaixador, que preparava as comemorações do 10 de junho. Como sabia que estava ligada à música, passou-me a pasta. De repente, fiquei muito próxima da produtora do evento e convidaram-me para fazer um dueto com uma das artistas”, conta. “Quando regressei a Portugal vinha com uma garra maluca.”
Sem hesitações, compôs um novo tema, gravou-o e enviou-o para o Festival da Canção, onde foi um dos temas escolhidos pela submissão pública. Não chegou ao lote dos finalistas, mas nem era esse o objetivo.
“A pontuação interessava-me pouco. Já tinha conseguido passar à frente de muita gente para chegar até lá, já tinha tido o meu primeiro grande reconhecimento público”, conta. Começou a estabilizar a vida, a trabalhar em vários projetos e a montar as bases para poder trabalhar de forma segura no novo disco. Pelo caminho, um dos seus amigos emprestou-lhe a verba necessária para gravar os temas.
Com o disco na mão, tudo parecia encaminhado, até que chegou a pandemia. “Quando já estava estável, fiquei sem trabalhos, perdi tudo, tive de voltar para casa da minha mãe. Fiquei a pensar o que poderia fazer da minha vida.”
Sem possibilidade de pedir mais dinheiro emprestado, os amigos convenceram-na a lançar um crowdfunding. Conseguiu angariar mais de cinco mil euros e o apoio de Fábia Rebordão que “facilitou um encontro com a Valentim de Carvalho”.
“Morremos Tanto Para Crescer” foi então lançado em 2022. “Foi um processo suado. Tive que penar, mas acabou por ser bom. Vi as pessoas entusiasmadas e ainda bem que o fiz. E desta vez pude fazer os concertos de divulgação e até arranjei uma agente.”
É essa a mensagem que deixa pelas letras do disco. “Chama-se assim porque foram necessárias muitas mudanças para chegar até aqui”, conta sobre o disco que vai dar também origem a um livro ilustrado. “Passa a mesma mensagem: de que nos podemos transformar, podemos crescer (…) Queria que o disco não fosse só um disco. Que fosse uma mensagem passada pela música, pelo livro, junto de adolescentes em escolas, para poder aliviar um bocado a pressão a que estamos sujeitos desde novos.”