Este ano, quem esteve perto do Palco Mundo e do Galp Music Valley no Rock in Rio Lisboa pode ter reparado nos intérpretes de língua gestual que estavam, literalmente, a traduzir o concerto para pessoas surdas. Foi a primeira vez que um grande festival de música proporcionou este serviço em Portugal.
Desta forma, pessoas com vários graus de surdez conseguiram assistir aos espetáculos com muito mais informação do que à partida conseguiriam ter — puderam perceber as letras e as variações rítmicas das músicas, enquanto sentiam as vibrações emanadas pelas enormes colunas dos palcos.
É uma forma de tornar uma visita de uma pessoa surda a um festival de música numa experiência recompensadora. Nesta edição do evento, seis intérpretes dividiram-se entre os dois principais palcos do Parque da Bela Vista e asseguraram a interpretação de todos os concertos.
A NiT falou em simultâneo com Cidália Jesus e Sofia Figueiredo, duas das intérpretes que trabalharam nos quatro dias de Rock in Rio Lisboa. Estiveram no festival através da empresa Hands Voice, numa iniciativa com o apoio da Santa Casa da Misericórdia.
A empresa pediu aos artistas que enviassem antecipadamente o alinhamento com os temas que iriam tocar. “Outros recebemos um bocadinho antes de o concerto começar, uns 10 minutos antes. Trazemos algumas letras impressas e verificamos se as temos em papel quando recebemos as setlists”, explicam.
“Em concertos maiores, ou noutros — não pela dimensão, mas por serem mais complexos —, tentamos fazer com uma equipa de duas pessoas”, acrescentam. Ou seja, há um intérprete sentado com as letras na mão e que as vai traduzindo para língua gestual portuguesa — e um intérprete visível que vai copiando os movimentos que vê do colega e dirigindo-se às pessoas surdas.
“O colega que está a fazer apoio é tão importante ou mais do que aquele que, aparentemente, está no ativo. Somos seis pessoas, mas somos uma só [risos], praticamente. Não funciona se não for assim.”
Quando possível, utilizam também um sistema de auscultadores in-ear, que permite que recebam o som nos ouvidos diretamente do palco, para que seja mais percetível e não falhem a tradução.
“Há concertos em que fazemos de ouvido, mas obviamente fizemos um trabalho antecipado, porque andámos a ver concertos na Internet destes artistas. Ajuda imenso, não só a conhecermos as letras, para quando ouvirmos algo já sabermos antecipadamente… Mas, por outro lado, é importante conhecer o artista, não só as letras mas também a sonoridade, porque temos que passar isso para a pessoa surda.”
O trabalho é ainda mais exigente, claro, quando é necessário, por exemplo, traduzir do inglês para língua gestual portuguesa. As longas horas de trabalho, o calor e a dificuldade que pode ser circular entre palcos são outros dos desafios que estes intérpretes enfrentaram ao longo de quatro dias de festival.
“Temos recebido pessoas surdas. Por vezes gostam de estar fora da estrutura, noutras vezes vêm cá para dentro”, explicam, sobre o facto de existir — do lado esquerdo dos dois palcos principais — uma área reservada a estas pessoas, onde podem estar olhos nos olhos com o intérprete. Não era necessário fazer qualquer inscrição, bastava aparecer.
“As pessoas têm aderido, têm cantado connosco em língua gestual portuguesa, tal como as restantes pessoas cantam consoante o que estão a ouvir. Tem sido incrível, isto nunca foi feito. O Rock in Rio é um dos grandes festivais a ter, pela primeira vez, tradução em língua gestual portuguesa, é algo fantástico para que estas pessoas possam estar em pé de igualdade com as pessoas ouvintes.”
Cidália Jesus e Sofia Figueiredo comentam ainda que, por vezes, o seu trabalho pode ser percecionado de forma errada por quem ali passa e não entende o que está a acontecer.
“Por exemplo, este domingo esteve uma equipa a fazer o concerto da MC Rebecca, que tem uma linguagem com muito calão e na língua gestual há muita coisa que é icónica, é muito visual, e portanto as pessoas estavam a olhar para nós como quem diz ‘que gestos obscenos são aqueles?’ Nós não temos culpa, estamos só a fazer a interpretação [risos]. O artista é que sabe aquilo que quer dizer.”
Este ano, além dos intérpretes de língua gestual portuguesa, houve audiodescrição espalhada por vários locais do festival — para as pessoas cegas, que também puderam trazer os seus cães-guia. E havia plataformas no Palco Mundo e no Galp Music Valley para as pessoas com mobilidade reduzida poderem assistir aos concertos num local com vista privilegiada.
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