Passava das 21 horas deste domingo e começaram-se a ouvir — bem alto — os ruídos de uma poderosa mota a chegar. Era o anúncio de que vinha aí Rosalía, a “motomami”, pronta para passar a noite na Altice Arena, em Lisboa — dois dias após ter atuado em Braga.
A última vez que Rosalía se tinha apresentado em Portugal acontecera no festival Primavera Sound, no Porto, em 2019. Na altura, a artista espanhola estava a apresentar “El Mal Querer”, o seu segundo disco, o álbum criado em Barcelona que a fez conquistar o mundo — com a sua fusão entre a tradição do flamenco e sonoridades contemporâneas eletrónicas ou pop.
Agora, Rosalía está noutra fase. Mais ousada e segura de si mesmo, parece estar no auge da sua confiança. Daí se assumir como “motomami” no álbum que lançou este ano — um termo ligado às motas que descreve uma mãe, ou uma mulher, forte e independente. E a cantora cresceu mesmo com uma forte ligação ao mundo das motas.
Em palco, fez-se acompanhar por oito extraordinários bailarinos, que a foram acompanhando durante todo o espetáculo — que se prolongou durante quase duas horas. Tal como C. Tangana havia feito no verão naquela mesma sala — ele que é ex-namorado, antigo colaborador artístico e outro espanhol que se tornou um fenómeno ao reinventar a tradição — houve uma enorme preocupação com o espetáculo visual, com uma forte componente teatral. Nem são precisos instrumentos em palco.
Rosalía não pôs a mesa nem criou uma autêntica peça de teatro, mas fez aquilo que já se pode considerar como o futuro dos espetáculos. Mais do que hologramas, projeções ou atuações em realidade virtual, Rosalía fez uma performance para os ecrãs gigantes. Em vez de existir uma filmagem normal da sua interpretação musical ao vivo, tudo foi coreografado e pensado para as câmaras que a seguiam em palco, ora com um diretor de fotografia, ora com telemóveis que os próprios bailarinos (ou a própria Rosalía) empunhavam. O resultado? Uma espécie de videoclip gravado em direto, com uma estética impressionante que só reforçou a sua atitude audaciosa e irreverente de “motomami”.
Ao longo das décadas, habituámo-nos a ver espetáculos pop envoltos em efeitos pirotécnicos, dezenas de bailarinos em palco e inúmeros artifícios. Não foi o que aconteceu aqui. Apesar dos bailarinos e do autêntico espetáculo visual, a equipa que produziu esta tour optou pela simplicidade e pelo minimalismo — eram poucos os elementos que distraíam em palco. Pelo contrário: todos os focos estavam em Rosalía, a estrela de 30 anos — ainda que, como canta em “LAX”, “Se siente heavy/Los focos pa’ mí/Antes que quemen me dejen salir”, o que demonstra bem uma consciência sobre as adversidades da fama e do sucesso.
A grande diferença de “Motomami” é que foi construído enquanto Rosalía andava pelo mundo em digressão, numa fase de estrelato internacional. Daí que seja um disco mais aberto e onde cabem inúmeros mundos. É um álbum mais influenciado pela América Latina, mercado cada vez mais dominante no circuito mainstream mundial, mas onde Rosalía também arriscou — o resultado são canções com rasgo criativo e vanguarda, além de combinarem elementos mais seguros, sejam pop ou mais próximos do flamenco.
Numa Altice Arena completamente esgotada, a celebração foi ibérica. Na multidão ouviam-se tantos espanhóis como portugueses. E Rosalía é uma das artistas que melhor representam o fenómeno que tem sido a democratização de outras línguas e sonoridades face aos artistas anglo-saxónicos — eternos dominantes do mainstream, mas a perder força e protagonismo a nível mundial. E Rosalía até aludiu ao poder do fado, elogiando a tradicional canção portuguesa. Em Braga chegou mesmo a fazer uma cover de Carminho, em Lisboa não repetiu a façanha. Mas esteve nos bastidores com Ana Moura e Pedro Mafama, que têm trilhado um percurso na linha de Rosalía, C. Tangana e outros artistas interessados em inovar, reinventar e resignificar a tradição.
Em palco, a expressiva e magnetizante Rosalía esteve sempre com um brilho nos olhos perante os milhares de fãs. Alguns deles até tiveram a sorte de subirem ao palco. O alinhamento foi estruturado com inúmeros altos e baixos, oscilando entre temas fervorosos carregados de energia e momentos mais tranquilos e solenes, autênticas baladas. Rosalía tem música para todos os momentos e aguardamos ansiosamente pelo que irá fazer após esta digressão de “Motomami”. Seja como for, vimo-la no auge da sua carreira, aparentemente feliz enquanto faz o seu caminho disruptivo, ainda que o seu novo disco possa não ser tão coeso quanto “El Mal Querer”. Foi um privilégio ter estado na Altice Arena para este serão de domingo à noite — invulgarmente, até o som da sala, que habitualmente não está nas melhores condições, não conseguiu travar o furacão Rosalía.
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