Ainda estamos pasmados com aquilo a que acabámos de assistir no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Muitos disseram que seria o concerto do ano, para Sam The Kid terá sido o concerto da década. Entre a plateia não duvido que há quem tenha tido o concerto de uma vida. Há muitos anos que o rapper português não atuava a solo e o regresso não podia ter sido melhor.
A expetativa era grande mas a confiança no trabalho de Sam The Kid também. Nos últimos 20 anos de carreira (1999 foi quando lançou o primeiro disco), o rapper e produtor tem conquistado uma enorme e dedicada legião de fãs e tem-os habituado ao seu perfecionismo. Às vezes até pode demorar (e muito), mas quando sai, quando acontece, está perfeito.
Foi o que voltou a acontecer neste concerto no Coliseu dos Recreios, que esgotou em menos de uma semana. Demorou para que STK regressasse aos palcos em nome próprio, mas quando o fez, não houve uma única falha.
A grande entrada coube a Napoleão Mira, pai de Samuel, com a intro de “Entre(tanto)”, o primeiro trabalho do filho. Um poema poderoso na voz hipnótica de Napoleão Mira, suportado por uma orquestra e pelos músicos dos Orelha Negra (banda da qual Sam The Kid faz parte). Uma ovação em pé para todos eles e para receber o herói da noite.
O formato manteve-se durante todo o espetáculo. Uma orquestra e os músicos dos Orelha Negra foram tocando os instrumentais que ao longo dos anos Sam The Kid foi criando com a sua MPC no seu “quarto mágico” em Chelas. Desta vez, a magia foi transportar esse ambiente tão íntimo e tão próprio para uma das maiores e mais conceituadas salas de espetáculo do País. Os arranjos mostraram o ótimo trabalho de casa que foi feito. Canções com 20 anos pareceram atuais e os instrumentais não perderam força ao serem adaptados.
O alinhamento atravessou os vários discos e projetos de STK, sem seguir uma cronologia específica, e foi pensado para ter picos de euforia e temas mais calmos, como um bom (e longo) concerto deve ser. As transições, o scratch de DJ Cruzfader, as vozes de apoio de Mundo Segundo, a orquestra, os Orelha Negra, os efeitos de luzes, tudo estava em sintonia para que Sam brilhasse na frente de palco e com uma técnica irrepreensível.
“A Partir de Agora”, “Decisões”, “PSP”, “O Recado”, “À Procura da Perfeita Repetição” ou “Hereditário” foram algumas das canções que interpretou a solo — com um fôlego impressionante que prova que a experiência pode superar quaisquer desvantagens que eventualmente a idade possa trazer. Está em topo de forma.
Vimos um Sam The Kid generoso, a entregar tudo de si perante uma plateia que correspondeu (e acreditamos que ultrapassou) às suas expetativas, pelo que vimos das suas reações genuínas. Foi um público em constante sintonia com quem estava no palco, foram mais de duas horas de momentos mágicos e irrepetíveis que simplesmente não acontecem todos os dias em concertos.
A sensação de se saber que aquele era um momento especial estava bem presente, pairava no ar e notou-se ao longo da noite, em cada letra gritada, que ecoava pela sala, em todos os braços estentidos no ar, ou nas várias ovações emocionadas e de pé num Coliseu dos Recreios esgotadíssimo, com pessoas em todos os lados, qualquer que fosse a direção para que olhássemos. Estava uma energia contagiante.
O rapper e produtor não perdeu a oportunidade de celebrar esta ocasião com amigos — amigos esses que o têm acompanhado na música ao longo da carreira. Foi o caso de Xeg e Sanryse, rappers históricos que interpretaram pela primeira vez ao vivo “Xeg e Sam”, faixa do disco de estreia de STK que nunca tinha sido ouvida numa sala de espetáculos.
NBC apareceu para o refrão de “Juventude é Mentalidade”, Amaura e David Cruz foram as vozes soul de apoio, Carlão e SP Deville foram cantar “Crime do Padre Amaro” (da banda sonora do filme), e o mesmo SP ficou para interpretar “Negociantes”.
Mundo Segundo, rapper e produtor do Porto que tem sido o grande parceiro de Samuel Mira na estrada, e com quem tem estado a fazer um álbum, também teve um momento de destaque na performance com “Gaia Chelas” e “Tu Não Sabes”, sendo que também ficou para “Não Percebes”, um dos grandes hinos da noite.
Por muito bonita e prolífica que seja a história de Sam The Kid, ela também está envolta em acontecimentos trágicos, como a morte de vários dos seus companheiros na música do bairro lisboeta que sempre representou, Chelas.
Snake OG, GQ e Beto di Ghetto foram bem lembrados e homenageados em vários momentos durante o espetáculo, seja através de pequenos excertos de voz que foram incluídos — ou mesmo em imagens de vídeo. Sam The Kid tem usado a sua plataforma digital TV Chelas para lançar conteúdos inéditos (e incríveis) do seu arquivo, que se confundem com a própria história do hip hop em Portugal, e ao vivo mostrou algumas fotografias e gravações que são autênticos tesouros nesta arqueologia do hip hop tuga.
O alinhamento, que também incluiu temas de Orelha Negra, foi delineado com uma precisão clínica e Sam The Kid terminou com “16/12/95”, o seu grande tema de storytelling; “Poetas de Karaoke”, aquele que é provavelmente o seu maior single de sempre; e encerrou definitivamente com “Sendo Assim”, a mais recente faixa a solo, incluída no álbum “Mechelas”, editado no ano passado, que STK produziu. O rapper interpretou “Sendo Assim” sentado na sua cadeira, em frente da secretária, como forma de simbolizar o seu quarto, e o ambiente tão pessoal e privado em que criou aquela e tantas outras canções.
Eram necessárias muito mais palavras, frases, parágrafos e páginas — além de reflexões e tempo — só para começar a explicar a importância deste momento e da própria figura de Sam The Kid. Certo é que Samuel Mira é já há muito tempo uma lenda da música portuguesa, uma figura incontornável na cultura nacional, e, muito provavelmente, a referência maior do hip hop português.
No final, depois de mais uma ovação e de muitos agradecimentos a todos os participantes, os músicos abandonaram o palco. O chão do Coliseu dos Recreios estremeceu com o público a bater com os pés, enquanto gritava “Sam The Kid!” “Sam The Kid!” “Sam The Kid!” O pano acabou por cair e a música de fundo começou a tocar — foram os indícios suficientes para todos perceberem que não haveria encore. E não foi preciso: foi perfeito do início ao fim. Porto, a 8 de novembro têm a vossa oportunidade, também no coliseu da cidade. Esperemos que o concerto seja tão bom como este. Vão, porque é um marco imperdível.