Em 2020, Laura Varges foi uma das concorrentes que se destacaram em “The Voice Portugal”, na RTP1. Conseguiu virar as quatro cadeiras dos mentores, ficou na equipa de Mariza e interpretou temas como “Can’t Help Falling in Love” ou “Feeling Good”. Tinha 24 anos.
Hoje, a jovem cantora do Cadaval dá pelo nome de Serena Kaos. Desde novembro de 2021 que vive em Londres, a capital britânica, onde trabalha como artista de rua. Canta covers de músicos conhecidos, claro, mas também temas originais. Prepara-se agora para apresentar o primeiro EP.
Além de conquistar os turistas nas ruas londrinas, tem construído um público diverso nas redes sociais, nomeadamente no Instagram e no TikTok. Cruza música pop com sonoridades indie e mais alternativas. A NiT falou com Laura Varges para conhecer o seu percurso e perceber como é viver enquanto artista de rua na capital britânica.
Como é que a música entrou na sua vida?
Acho que foi pouco depois de começar a falar, comecei desde logo a inventar canções só com sons… Tanto que perguntava à minha mãe: “As pessoas na rádio cantam com sons, não é? Elas inventam o que estão a dizer, não é?” E a minha mãe: “Não, não, elas dizem mesmo coisas, decoram letras inteiras”. Fiquei mesmo chocada [risos]. Depois, aos seis anos, ela pôs-me nas aulas de piano, onde fiquei durante 10 anos. E depois a coisa começou a rolar.
Participou no “The Voice” em 2020. Foi a sua grande experiência musical antes de ir para Londres?
Sim, fui ao “The Voice” um ano antes de ir para Londres. E foi no concurso que percebi que tinha ainda muito caminho para percorrer. Às vezes quando não nos rodeamos de muitos artistas não temos ainda a noção de quanto é que ainda podemos crescer. E o “The Voice” trouxe-me esse conhecimento e mais confiança. Há uns anos um amigo disse-me: “Tu cantas bem, mas cantas bem para Portugal, se fores lá para fora vais ser só mais uma…” Porque eu já andava a magicar um bocadinho ir para Londres. E com o “The Voice” comecei a acreditar que, se calhar, não era só mais uma. E não me tenho sentido só mais uma. Essa confiança que ganhei foi uma maravilha.
Já estava a magicar ir para Londres, mas como é que surgiu a ideia de se mudar para lá?
Nunca magiquei de forma realista. Falava vagamente… No fundo não tinha coragem. E uma semana depois do “The Voice”, outro amigo meu — eu presto atenção ao que me dizem, como podes verificar [risos] — disse-me: “porque é que não vais para Londres? Era um bom passo para a tua carreira”. Concordei e, uma semana depois, estava a tratar do visto. Concordei automaticamente porque já o desejava há vários anos.
Qual era o grande benefício, em termos profissionais na área de música, de ir para Londres? Agora já pode responder tendo em conta a sua experiência, claro.
Tendo em conta que sou música de rua, a motivação para melhorar a minha arte e a minha maneira de cantar é maior do que alguma vez poderia ser. Porque quanto melhor cantar, mais dinheiro faço. Portanto, isto foi ainda melhor do que ir para a faculdade tirar um curso de canto. Acho que a motivação que ganhamos aqui… Estamos rodeados de tantos artistas a fazer tão diferente de nós que andamos sempre em modo inspiração. Acho que qualquer pessoa que venha para Londres, mesmo que não venha de cá com fama nenhuma, concerteza que vai com uma espécie de licenciatura tirada através das experiências que vive cá.
Mas já tinha a intenção de ser artista de rua quando se mudou para Londres?
Admito que não. Tinha pensado sobre isso, em jeito de experimentar. Embora pareça que não tenha vergonha nenhuma na cara, até tenho [risos]. Então sentia-me muito envergonhada e com muitas reservas em fazê-lo. Mas, por obra e graça do espírito santo, de forma mesmo sortuda, logo na primeira semana em que vim para Londres tive a oportunidade de conhecer um grupo de músicos de rua. Asseguraram-me que não era assim tão mau, que dava para fazer vida daquilo, que dava para pagar a renda. E, olha, encheram-me de coragem e depois experimentei. Não foi assim tão mau como eu pensava — e comecei a adorar.
Tem vivido exclusivamente das atuações enquanto artista de rua?
Também dou algumas aulas e às vezes toco nalguns espaços ou eventos, mas é para aí 80 por cento daquilo que ganho.
Como é que funciona? Atua sempre no mesmo sítio ou vai variando?
Vou variando — e até podia variar todos os dias, porque existem vários locais onde os músicos de rua vão dizendo “olha, aqui faz-se bom dinheiro”. Mas tenho locais favoritos: Chinatown, onde alguns dos meus vídeos mais populares foram filmados; Leicester Square; Trafalgar Square ou Piccadilly Circus. Existe uma preferência ali mais para o centro, para a zona de Westminster. Mas há quem goste mais de Camden. Existem várias opções. Mas normalmente, quanto mais turística for a zona, melhor.
Como é que fazem a gestão dos músicos de rua? Porque não podem estar 50 artistas a tocar em simultâneo numa única praça. É uma gestão muito natural, como é que funciona?
Em localizações mais centrais, isso às vezes realmente torna-se um problema. Porque o que nós fazemos é: cada músico de rua tem 45 minutos para tocar. E à medida que vão chegando vão-se pondo na fila, por assim dizer. É por ordem de chegada.
Mas existe algum acordo legal?
Não, não. A música de rua, embora seja super necessária para trazer um certo brilho às ruas da cidade — e os turistas gostam muito — na verdade é das profissões do mundo menos regulamentadas. Isto é só um acordo amigável entre músicos de rua, que não está escrito em lado nenhum. E nalguns dias, principalmente sextas e sábados, aparecem 10 músicos num local mais central. Fica um bocadinho difícil fazerem todo o dinheiro que gostariam porque só conseguem tocar uma vez, a fila demora imenso tempo a dar a volta e para chegar à vez de teres um segundo concerto… Às vezes é um bocadinho difícil. E nesse caso os músicos começam a pesquisar novas localizações.

Todos os músicos que tocam regularmente na rua estão a par dessa regra informal, é isso?
Exatamente. Qualquer músico de rua novo, que chegue a uma localização típica de músicos, é logo informado.
Tem funcionado sempre bem? Ou já teve algum tipo de problema nesse sentido?
Temos uma conversa de grupo, as pessoas mais antigas da localização. Às vezes há discussões, existe um certo grupo de músicos que não gosta do outro, e às vezes há alguém que fica a tocar mais 10 minutos do que era suposto… Claro que, como não é regulamentada por lei nenhuma, existem nuances para possíveis discussões. Mas, no geral, a malta dá-se bem e aceitam perfeitamente a regra.
O que é que costuma cantar na rua? Tem um alinhamento pensado ou depende muito?
São 45 minutos incluindo o tempo de montagem do material. Portanto, no fundo é um concerto de 35 minutos. Se calhar num dia em que as pessoas estão com pouca vontade de dar gorjetas, fica um bocado mais difícil… Mas se for um dia assim com mais generosidade, até costuma ser suficiente. Dá mais ou menos para sete músicas, enfio um ou dois originais meus, e as restantes são covers de música indie… Mas convém que sejam músicas loucamente conhecidas. Essas é que fazem parar uma multidão de pessoas. As músicas pouco conhecidas, por mais bonita que seja a nossa voz, as probabilidades de criar uma multidão são menores. Era uma coisa que não sabia [risos]. Quando comecei a pensar em ir tocar para a rua, pensava: “ah, na rua faço o que quiser, o show é meu”. “Vou cantar músicas que ninguém conhece mas que canto muito bem.” Depois, comecei a trabalhar na rua e percebi… ah, não, afinal é tal e qual como num bar. Vamos ter muito mais sucesso junto do público se for uma música muito conhecida.
Que músicas conhecidas é que costuma tocar?
Os meus maiores sucessos na rua são a “Summertime Sadness”, da Lana del Rey; a “Everything I Wanted”, da Billie Eilish; e a “Titanium”, da SIA.
Quanto dinheiro é que um artista de rua consegue fazer em Londres?
Depende imenso. Mas é mais ou menos uma média de 100 libras [114€] por dia — tendo em conta dois concertos de 45 minutos por dia. Mas, malta que vende CD a 10 libras cada um; que toca Ed Sheeran e Adele, que são as músicas mesmo mais conhecidas; malta que tem concertos de rua já com 10 anos de estrada e estão ali já com tudo pensado para conseguir mais gorjetas; esses se calhar conseguem 200 ou 300 libras por dia. Antigamente — antes do Brexit, da Covid e da crise — era melhor. Provavelmente, no mínimo, o dobro para toda a gente. Mas não sei porque já cheguei tarde à festa [risos].
Gostava de tocar mais em clubes e bares, só que não há tantas oportunidades? Ou, pelo contrário, é apenas um complemento para as atuações na rua, que é aquilo de que gosta realmente de fazer?
Gostava de fazer mais, até porque tocar na rua é cansativo. Neste primeiro ano em Londres decidi focar-me mesmo em tocar na rua, porque é uma oportunidade para milhares de pessoas passarem à minha frente. Enquanto num bar só existe uma certa audiência — se calhar só 20 pessoas é que me vão ver. Por isso quis focar-me em tocar na rua, porque chegava aos olhos de muito mais gente. Neste segundo ano, há que admitir que fazer música de rua no inverno é muito chato [risos]. Porque, à espera da minha vez posso ficar oito horas ao frio e o nosso corpo fica muito cansado porque tem que estar ali a trabalhar durante essas horas para manter a temperatura, por mais agasalhados que estejamos. Neste momento gostava de arranjar mais concertos em espaços, até porque gosto muito de tocar com o meu piano a sério. Dou sempre concertos onde me divirto muito. Só que ainda vou ter que meter muitas mãos à obra, naquela de visitar os bares… E todos eles recebem imensas propostas todos os dias. É a lei da concorrência, há muita concorrência. Portanto, não creio que vá ser fácil, mas ao mesmo tempo também há a lei da oferta — quase que existem mais bares do que pessoas [risos].

Vê-se a manter este registo nos próximos anos?
Diria que vou começar cada vez mais a procurar ser artista de originais e menos de covers. Procurar não basear o meu ordenado só na música de rua. Mas não me importo nada que o meu plano seja isto durante mais uns anos, porque sou feliz. Sinto-me bem, está tudo bem, não faz mal nenhum que isto continue durante mais uns anos. Mas obviamente que sou muito ambiciosa e estou sempre a meter mãos à obra para ver se a minha carreira evolui. Neste momento, a ver se evolui para ser artista de originais, ser artista “a sério”, como costumo dizer [risos].
Tem estado a trabalhar em música nova?
Sim, lancei três singles em 2022, que serviram de teaser para o meu primeiro EP, que sai em maio.
Tem algum plano em relação ao lançamento? Vai haver um concerto especial de apresentação, vem apresentá-lo cá a Portugal?
Os meus planos é fazer um concerto de lançamento num dos espaços parceiros onde costumo tocar, uma tour — quiçá europeia — e vou a Portugal em junho, onde também vou ver se apareço por aí nos media para falar sobre o EP.
Que oportunidades faltam em Portugal para se ser artista?
O que falta em Portugal é o que falta em qualquer país sem ser o Reino Unido ou os EUA. São maioritariamente os países que lançam artistas de maior dimensão. Em qualquer outro país é difícil ser um artista de música alternativa. Se for em música mainstream, é possível; mas na alternativa, acredito que enquanto estiver na berra, a banda dá dinheiro. Mas depois isso passa… Não é uma questiúncula que eu tenha em relação a Portugal. É uma que qualquer país pequeno tem — é pequeno demais para haver oportunidades suficientes para quem não faz música mainstream. É esse o meu medo e a minha reserva em voltar para Portugal. Mas estou muito grata porque o meu País me tem reconhecido, tem-me acarinhado, é só comentários positivos nas redes sociais… Continuo a ter essa reserva em relação ao mercado musical, mas no que toca ao apoio do País, estou mesmo grata.
Como é que a sua família reagiu quando se tornou artista de rua? Suponho que a apoiem, mas também podem ter considerado que era uma profissão de risco, de precariedade…
A minha família criou-me para ser muito independente, muito livre. Procuraram guiar-me enquanto estava na idade de ser guiada, mas educaram-me para, naquilo que eu quiser fazer, “vai e faz”. Sinto que sempre duvidaram um bocadinho, “será que ela está a fazer bem?” Nunca disseram isso por palavras, mas por atos ia sentindo que eles tinham algumas dúvidas. E ser música de rua também levantou algumas dúvidas, principalmente dos meus avós. Estavam assim um bocadinho reticentes [risos]. Mas agora que está a correr bem, já não há dúvidas nenhumas [risos]. Mas é compreensível. Enquanto não der certo, a própria pessoa que está a lutar tem as suas dúvidas.
Enquanto artista de rua, teve episódios caricatos com o público? Reações diferentes do habitual? Ou sempre foi tudo muito normal?
A rua é sempre interessante e mantém a vida num ponto muito excitante porque tudo pode acontecer. Já aconteceram coisas negativas. Um músico de rua tem que ter uma alma de ferro para com bêbedos, pessoas mal educadas… Mas também já me aconteceu meterem poemas na minha mala das gorjetas, ou um desenho muito bonito de mim a dizer “melhoraste o meu dia”. Já me aconteceu eu estar a cantar um dos meus singles e uma rapariga chegar para meter uma gorjeta e apareceu a chorar… “o que é que se passa?”, perguntei. “A tua música emocionou-me, são lágrimas de alegria, obrigada”. E no fim dos concertos por vezes vemos que as pessoas chegaram com uma cara trancada mas vão-se embora com um sorriso. Por isso sinto que estou a fazer um serviço mesmo útil. Não é só entretenimento.