Em fevereiro de 2010, a tratadora Dawn Brancheau estava à beira da piscina em mais um espetáculo do SeaWorld, em Orlando, um dos maiores parques aquáticos do mundo. As bancadas estavam cheias, tal como a esplanada do restaurante, com vista para a piscina central. A estrela do momento era Tilikum, a maior orca ali residente.
Dawn trabalhava há vários anos com Tilikum. Numa das rotinas, estava debruçada sobre a piscina enquanto Tilikum espreitava. A tratadora acariciava o gigante dos mares na cabeça como fizera em tantos outros espetáculos. De um momento para o outro, cai violentamente para dentro da piscina.
O SeaWorld argumenta que foi puxada pelo rabo de cavalo. Mas testemunhas divergiram desta versão, referindo que as mandíbulas de Tilikum a puxaram pelo braço ou ombro. O que é certo é que Dawn se vê submersa pela força de um animal que sempre conhecera. Em pânico, outros tratadores tentam que Tilikum liberte Dawn. O animal, com as suas 5,7 toneladas de peso, mantém a tratadora submersa, mesmo quando a conseguem transferir para outra piscina, mais pequena e longe do público, para a acalmar.
Passam 45 minutos até que Dawn é libertada por Tilikum. Só horas depois o corpo é retirado do tanque. A autópsia revelou morte por afogamento e traumatismo. A coluna de Dawn estava fraturada, tal como os ossos do queixo e costelas. O joelho e o cotovelo estavam deslocados. O animal arrancara-lhe o escalpe por inteiro. A notícia chocou o mundo mas a vida no parque prosseguiu.
Aquele podia ser um incidente isolado. Porém, quando Gabriela Cowperthwaite começou a investigar, percebeu que havia mais notícias de outros ataques, alguns processos nunca esclarecidos e um padrão que se começava a notar no SeaWorld. E havia mais: aquela não tinha sido a primeira morte causada por Tilikum. Era, na verdade, a terceira.
A pesquisa de Gabriela Cowperthwaite foi o princípio daquilo que viria a ser “Blackfish” (“Orca – Fúria Animal” em português), documentário lançado em 2013 e que faz atualmente parte do catálogo da Netflix. Entre as mil e uma novidades que vão chegando à plataforma, vale a pena abrir o baú e explorar o que mais há para descobrir. “Blackfish” é um desses tesouros escondidos, um documentário daqueles que abrem a conversa sobre o impacto que um filme poderá ter para lá do ecrã.

Tilikum foi capturado ainda novo, em 1983, junto à costa da Islândia, As orcas são animais habituados a percorreram grandes distâncias nos mares mas Tilikum cresceu praticamente sempre em cativeiro. Foi em 1992 que chegou ao SeaWorld de Orlando e tornou-se um animal sinónimo de terror quando Blackfish revelou o seu passado.
É importante perceber que, embora conhecida como baleia assassina, não há praticamente registos de ataques das orcas a humanos no seu habitat natural. O animal é um predador mas costuma ter em focas um dos seus pratos favoritos. É um caçador dotado de inteligência, capaz de programar o ataque surpresa junto à costa (usando a corrente para voltar aos mares) e de atacar em grupo, desfazendo blocos de gelo até que a vítima, encurralada, não tenha mais por onde fugir. Ainda estamos a aprender mais sobre estes animais, ainda assim sabemos que os humanos, felizmente, não são o seu alvo.
Impressiona por isso o cadastro de Tilikum. Durante anos sem nada que chamasse particularmente à atenção, o animal foi protagonista em três mortes. Segundo o documentário, 19 anos antes de matar Dawn, Tilikum esteve envolvido numa outra morte num parque aquático canadiano. Foi em fevereiro de 1991, antes ainda de se mudar para Orlando.
Keltie Byrne era bem menos experiente do que Dawn. Tinha apenas 21 anos e trabalhava em part-time no Sealand. Tropeçou à beira da piscina e caiu lá dentro. Quando tentou sair, uma das orcas puxou-a. Não foi uma morte rápida. As diferentes orcas agitavam-se e uma delas ia-a mantendo submersa durante alguns segundos. Quando voltava à superfície, Ketley gritava por ajuda mas voltava a ser submersa. Acabou por não sobreviver ao que aconteceu no tanque onde Tilikum e outras duas orcas se encontravam. Embora sem certezas de testemunhas, acredita-se que terá sido Tilikum o responsável.
“Blackfish” conta com diversos testemunhos e especialistas, antigos tratadores e caçadores que apanhavam as orcas ainda crias para parques aquáticos. É com eles que montamos uma biografia de um animal que durante anos ficava fechado todas as noites, com as duas outras orcas, numa piscina de seis por nove metros, às escuras e sem qualquer espaço ou estímulo. Por diversas vezes havia marcas de dentaduras nos animais na manhã seguinte. Tilikum tinha dois anos quando, ainda dócil, foi levado para este ambiente. Foi ali que cresceu até se mudar para Orlando. Após o ataque, o Sealand fechou. Tilikum foi vendido.
Já no SeaWorld, voltaram a acontecer episódios que deviam ter dado o alerta. Tilikum surgia mais uma vez mais como protagonista na maior parte desses episódios. Em alguns casos, o parque aquático destruiu imagens que apontavam para comportamentos potencialmente perigosos. Mas a 6 de julho de 1999 outro caso virou notícia. Um homem de 27 anos, Daniel P. Dukes, decidiu esconder-se e ficar no parque para lá das horas de encerramento. O seu corpo nu foi encontrado no dia seguinte na piscina de Tilikum. A causa de morte? Hipotermia. Mas a versão parece curta para explicar tudo.
Nem câmaras nem vigilantes terão detetado o homem. E o relatório do médico legista apontava para mais ferimentos, incluindo dentadas em todo o corpo. Os órgãos genitais terão sido arrancados. Não se sabe se isto aconteceu com ele ainda vivo ou se o animal se entediou e divertiu com um cadáver. O que é certo é que Daniel não foi encontrado morto a boiar. Estava no dorso de Tilikum, como se o animal exibisse o que fizera com a sua presa.
O efeito Blackfish
A maior parte das orcas que crescem em cativeiro veem a dada altura as suas barbatanas dorsais colapsar, algo raro de acontecer no mundo selvagem. Como só são recolhidas crias, a captura é muitas vezes acompanhada de famílias a fazerem sons vocais enquanto as crias são levadas. “Era como raptar uma criança da mãe”, ouvimos a dada altura do comentário por parte de um dos caçadores, a recordar arrependido o trabalho que fazia.
Ao expor tudo isto, o documentário levou àquilo a que se chamou “o efeito Blackfish”. Durante os anos seguintes, o SeaWorld viu as suas receitas caírem. Tiveram de alterar alguns procedimentos e trabalhar a área de relações públicas. A organização sempre acusou o filme de ser propaganda. Mas entre os testemunhos que ouvimos e vídeos que vemos percebemos que já há muito se instalava uma narrativa: sempre que algum tratador era ferido, a culpa era do tratador. E isto era quando se admitia que algo acontecera.
Em 2018, o SeaWorld já voltava aos números de receitas de antigamente. Apesar de tudo, o documentário é ainda hoje um marco, com uma história sombria de como as coisas podem correr mal em cativeiro com animais enormes que, sem a nossa intervenção, teriam quilómetros e quilómetros de mar à sua volta para escapar quando algum momento de tensão aconteça.
Após a morte de Dawn, em 2010, Tilikum foi participando cada vez menos em espectáculos públicos. O que não quer dizer que já não fosse valioso para o parque aquático. Durante a sua vida, Tilikum foi pai de 21 crias. Cerca de metade ainda está viva, em cativeiro. Os seus genes atravessam diferentes gerações de orcas do SeaWorld.
A 6 de janeiro de 2017, o SeaWorld anunciou a sua morte: uma infeção bacteriana. Trata-se de uma causa de morte que não é incomum entre baleias. Mas é mais comum entre as que vivem em cativeiro. Especialmente entre orcas, cuja esperança média de vida em cativeiro anda à volta dos 30 anos. Nos oceanos, à solta, podem viver cerca de 80 anos, tanto como a esperança média de vida de seres humanos em países desenvolvidos.