Em 1988 Jerry Seinfeld era um comediante em ascensão. No final de um dos seus espetáculos, saiu na companhia de Larry David, ator, argumentista e produtor. Acabaram a noite num supermercado asiático a discutir por que raio é que os sul-coreanos idolatravam uma espécie de geleia de bolota.
“Porque é que tinha que vir em forma de geleia? Será que existia noutros formatos? Espuma? Num spray?”, questionou David. “Era esse tipo de discussão que não se via na televisão.”
A ideia absurda de um par de amigos a discutirem disparates mostrou ser valiosa quando Seinfeld foi convidado a apresentar a ideia para uma nova sitcom. Socorreu-se de David e juntos imaginaram “Seinfeld”, o programa que revolucionaria a comédia nas décadas que se seguiriam.
Entre as personagens imaginadas para a série estava, claro, Jerry, que teria um amigo inspirado no próprio David, que seria George Costanza. Faltava um vizinho.
À época, David vivia em Nova Iorque numa relação bizarra com o vizinho com quem partilhava carro, televisão e um par de calças de fato pretas para quaisquer ocasiões importantes. Esse vizinho era Kenny Kramer, “um chico-esperto desempregado”.
“O David e o Kramer deixavam as portas de casa abertas para que pudessem entrar e sair sem chatices. O Kramer aparecia muitas vezes de robe para tirar algo do frigorífico, enquanto o David via as partidas dos Knicks e dos Yankees. O Kramer perguntava como estava o jogo e ia-se embora”, conta Jennifer Armstrong, autora de um livro sobre as origens do programa.
“O David costumava convidar amigos comediantes para jantar e prometia-lhes sobremesa, que normalmente eram gelados, mas acabava sempre a gritar ao Kramer quando reparava que já tinham desaparecido do frigorífico.” Tal e qual a bizarra relação que aproximava Jerry do vizinho, neste caso batizado de Cosmo Kramer na série.
Foram estes pequenos pormenores que transformaram “Seinfeld” numa série especial que, mais de 20 anos depois do último episódio, continua a dar origem a negócios milionários. Em 2019, a Netflix pagou 427 milhões de euros pelos direitos de transmissão — e desde 1 de outubro que os assinantes da plataforma podem finalmente ver ou rever todas as temporadas da sitcom.
Vinte anos depois do sucesso, ninguém esquece as caras da sitcom. Jerry Seinfeld é o inevitável Jerry Seinfeld, Elaine Benes lançou Julia Louis-Dreyfus numa carreira fulgurante e George Costanza colocou Jason Alexander no mapa. Com carreiras mais ou menos bem-sucedidas, todos entraram para o hall of fame da comédia.
Apesar de não ter produzido mais sitcoms, Seinfeld regressou aos espetáculos de stand-up comedy e criou outros formatos como “Comedians in Cars Getting Coffee”. Mas explicou também o motivo pelo qual nunca mais arriscou num projeto do género.
“Não gosto de ver velhos na TV. Não quero impingir-me a mim próprio às pessoas num estado deteriorado”, referiu numa entrevista a Howard Stern. “Pode dizer-se que sou um perfecionista e é por isso que nunca fiz outra série televisiva. Não vou tentar bater ‘Seinfeld’. Não é possível fazê-lo.”
Alexander passou a ser uma escolha rotineira nos elencos de comédia e o ator vencedor de um Tony acabou por fazer vários papéis no cinema e na televisão, de “Dream On” a “Curb Your Enthusiasm”. Dreyfus, por seu lado, lançou-se numa carreira brilhante com séries como “The New Adventures of Old Christine” e “Veep” que lhe valeram muitas nomeações para os Emmys e onze estatuetas.
Para o invulgar papel de Kramer, David resgatou um antigo colega num programa de sketches cómicos, talvez pelo seu comportamento igualmente peculiar. Michael Richards tornou-se assim no quarto elemento da fórmula de ‘Seinfeld’ e encarnou literalmente a personagem.
Richards era, até então, mais conhecido pelo incidente em direto num sketch de “Fridays”. A meio de um episódio, Andy Kaufman, um dos atores, recusou-se a ler as suas falas. Irritado, Richards levantou-se, agarrou nos cartazes com as deixas e atirou-os para cima da mesa.
Kaufman despejou um copo de água no colega e tudo descambou. As outras atrizes na mesa irritaram-se, a produção ficou sem saber o que fazer e um membro da equipa partiu mesmo para agressões físicas, entre gritos de “corta” e “vai para o intervalo”.
Foi este espírito indomável que Richards levou para as interpretações de Kramer. Elas eram de tal forma repentinas e intensas que a produção guardava sempre dobradiças sobresselentes, caso as suas entradas de rompante partissem de vez a porta. A sua prestação era tão convincente que Seinfeld, Alexander e Dreyfus tinham dificuldade em manter a compostura.
“Quando o [Jason] Alexander se ria durante uma cena, o Richards implorava-lhe que não o fizesse. ‘Não sabes quão duro isto é para mim’, dizia-lhe”, recorda Jennifer. Inevitavelmente, as cenas tinham que ser repetidas vezes sem conta, para frustração do ator, que mesmo a vociferar, nunca saía da personagem.
Entre 1993 e 1997, Richards foi cinco vezes nomeado para o Emmy de Melhor Ator Secundário em Série de Comédia — venceu por três vezes. A personagem tornou-se de tal forma famosa que nem nos locais mais remotos de Bali, na Indonésia, conseguia evitar ser reconhecido.
De visita a uma antiga tribo budista e de forma totalmente surpreendente, Richards ouviu um grito. “Kramer!”, gritou um dos aldeões. Como? Mesmo num dos recantos isolados da ilha, era possível assistir aos episódios de “Seinfeld”. E o ator foi instantaneamente reconhecido.
Ao fim de 170 episódios, esperava-se que a carreira de Richards florescesse graças à fama — e apesar de tão intimamente ligada à personagem de Kramer. Acabaria por ser convidado pela “NBC” para criar o seu programa, o “The Michael Richards Show”.
A sitcom de crime tinha Richards como protagonista no papel de Vic Nardozza, um trapalhão detetive privado que salta de crime em crime, provocando confusão total mas quase sempre bem-sucedido a resolver todos os mistérios. Foi arrasado pela crítica e cancelado ao fim de nove episódios, dois meses depois da estreia.
Frustrado com a decisão, Richards deu um passo atrás e voltou a palcos mais confortáveis e aos seus shows de stand-up comedy. E tudo corria razoavelmente bem até que um incidente em 2006 o levou a ser falado por todo o mundo — pelos piores motivos.
Era mais um show como outros no Laugh Factory, em Los Angeles. Sempre altamente focado, Richards ficou visivelmente incomodado quando começou a ser interrompido por um grupo de homens.
“Olhem para estes mexicanos e pretos estúpidos a fazerem barulho ali em cima”, terá dito inicialmente, segundo Kyle Doss, um dos visados. Terá sido o mesmo homem a responder a Richards, num comentário que despertou a fúria do comediante: “O meu amigo acha que tu não tens graça nenhuma.”
“Cala-te. Há cinquenta anos já te tínhamos pendurado de pernas para o ar com um garfo espetado no cu”, grita Richards na direção dos homens afro-americanos, no vídeo gravado por um espectador que rapidamente chegou à Internet e se tornou viral.
“Atirem-no daqui para fora. É um preto, é um preto, é um preto. Olhem, é preto”, reforçou numa tentativa de chocar a audiência com a repetição da palavra ‘nigger’. “Veem? Isto choca-vos…”, referiu, numa tentativa de amenizar a situação. Só que já não havia como voltar atrás e Richards foi incapaz de puxar da punchline que pudesse salvar o acesso de raiva e loucura.
“Isso foi despropositado”, respondeu um dos homens visados. “Despropositado foi tu interromperes-me seu cabrão. Passaram o tempo a falar, a falar, a falar”, contrapôs Richards, antes de se voltar para a plateia que por esta altura já tinha percebido que o humor tinha sido atirado para segundo plano. “Então? Não conseguem lidar com isto?”, disse, antes de questionar se iria ser preso por “chamar preto a um gajo”.
A discussão prolongou-se e ficou totalmente gravada em vídeo. O público começou a abandonar o local até que Richards também o fez. O escândalo correu o mundo e o comediante foi obrigado a penitenciar-se em público três dias depois, no sofá de David Letterman.
“Perdi a paciência em palco, estava num clube de comédia a fazer o meu trabalho, fui interrompido e levei tudo a mal. Disse coisas muito más a alguns afro-americanos”, arrancou hesitante, antes de uma longa pausa. As parecenças de Richards e Kramer levaram a que a plateia soltasse umas gargalhadas inevitáveis.
“Parem de se rir, não tem piada”, interveio Jerry Seinfeld, nesse dia o convidado de Letterman. O silêncio prolongou-se, a face de Richards contorcia-se visivelmente desconfortável. O riso dos espectadores era impossível de conter.
“Estou a ouvir a tua audiência a rir-se e talvez este não seja o melhor sítio para falar sobre o assunto. Já te ouvi fazer algumas piadas sobre isto, e não há problema nenhum nisso, mas estou muito abatido, estou mesmo arrependido (…) Eu não sou racista e é por isso que isto está a ser uma loucura.”
O pedido de desculpas não caiu bem e Richards foi forçado a retirar-se dos palcos e da vida pública. Além de um pequeno trabalho de voz numa produção de Seinfeld e da aparição numa curta-metragem, a carreira tornou-se num vazio durante quase sete anos.
Durante esse tempo, Richards dedicou-se à “fotografia, leitura, escrita e viagens”, revelou em 2013 à “Time”. Mas o episódio de 2006 perseguia-o. Uma breve aparição em “Curb Your Enthusiasm” convidou-o a ridicularizar o seu acesso de loucura em palco. Voltou a falar sobre ele na participação em “Comedians in Cars Getting Coffee” em 2012. Nunca foi realmente perdoado.
Em 2013, recebeu finalmente um convite para um trabalho, um papel na sitcom de Kirstie Alley, onde completou 12 episódios como papel de condutor da protagonista. E protagonizou uma espécie de reencontro em cena com Jason Alexander. Infelizmente para si, “Kirstie” foi cancelada ao fim de apenas uma temporada.
Uma das críticas feitas a Richards focava-se precisamente no seu papel, incrivelmente semelhante ao de Kramer, o que levou muitos a crer que o ator tinha apenas um recurso — e que, fosse qual fosse o contexto, seria para sempre Kramer.
Provou-o novamente com a ajuda do sempre prestável colega Jerry Seinfeld, que o convidou para protagonizar alguns sketches para a empresa de streaming que lançou “Comedians in Cars Getting Coffee”.
Sete anos depois, o seu único grande trabalho foi uma presença no elenco de “Faith, Hope & Love”, produção que passou praticamente despercebida pelos cinemas. Casado pela segunda vez desde 2010 e pai de dois filhos, Richards tem-se mantido discreto e bem longe das câmaras.
Porém, Kramer será sempre Kramer e dificilmente passará incólume. Foi esse o caso nos últimos meses, onde Richards foi notícia por alegadamente ser alvo de um processo em tribunal, depois de ter sido, novamente, um vizinho incómodo. De acordo com Maxine Adams, o atual vizinho do ator de 72 anos, Richards terá saltado o muro para cortar uma das suas árvores para “aumentar o valor da casa”. Mas pelo menos a porta de casa e o conteúdo do frigorífico ficaram intactos.