Em janeiro, Rui Paixão estava no epicentro da pandemia. O artista português de 24 anos vivia na China — mais concretamente na cidade de Hangzhou (na província ao lado de Hubei, onde fica Wuhan) — há mais de um ano e fazia parte do elenco do espetáculo local do Cirque du Soleil. De repente e de forma inesperada, diz, as pessoas começaram a usar máscara e deixaram de aparecer para os eventos.
Falava-se de um vírus semelhante a uma gripe, que no pior cenário deixava as pessoas em casa durante duas semanas, e a informação era escassa. Só quando amigos e familiares em Portugal lhe começaram a ligar a perguntar se estava bem é que se apercebeu de que algo mais grave se passava — e que o governo chinês censurava as notícias sobre a pandemia.
Chegou a Portugal a 6 de fevereiro, depois de ter feito uma quarentena obrigatória de 15 dias no país asiático. Só nessa altura é que finalmente teve acesso às redes sociais e imprensa livre para perceber o que se passava. Um mês depois de regressar a Portugal, os casos começaram a aumentar rapidamente e o País fechou-se em casa. Ainda por cima, além de já ter passado pela situação na China, o seu concelho — o de Ovar — foi o mais afetado e teve de ser imposta uma cerca sanitária.
O Cirque du Soleil, entretanto, está numa situação de extremo risco. A mais famosa e maior companhia de circo do mundo acumulou mais de 800 milhões de euros de prejuízo e dispensou cerca de 95 por cento dos trabalhadores.
Esta é a história dos últimos meses de um artista português (o único palhaço nacional no Cirque du Soleil) que enfrentou a pandemia na China, viu o seu trabalho mudar radicalmente de um dia para outro, regressou ao seu País e encontrou um setor cultural fragilizado e a precisar de apoios numa crise sem precedentes. Leia a entrevista da NiT a Rui Paixão.
Quando é que foi o momento em que se apercebeu de que o surto estava a acontecer?
Não sei precisar a data, porque foi tudo muito confuso, porque nós apanhámos a altura do Ano Novo ocidental — e depois quando repusemos os espetáculos em grande massa, a dada altura começamos a perceber que há baixas de público, o que era raro. E começou-se a ouvir um zum zum que numa província ao lado daquela onde nós estávamos existia um vírus que estava a causar o pânico. Mas nós desvalorizámos porque era na província ao lado, acreditávamos que não ia ser assim tão grave como acabou por ser. Entretanto começou-se a ouvir falar de casos na nossa província, depois na cidade onde eu vivia, começamos a ver o público a usar máscara em grande escala. E entretanto o Cirque du Soleil e a XTD, a companhia do estado chinês que estava a co-produzir o espetáculo, decidiram cancelar todos os espetáculos. Até porque havia imensa interação com o público e era impossível estar com as portas abertas.
Vocês já estavam à espera que algo assim pudesse acontecer? Ou foi tudo muito rápido e confuso?
Sabes que uma das grandes questões da China é que o regime comunista tenta sempre alterar imenso a informação que sai. Então é sempre tudo para melhor, e nunca para pior. Não há alarme. E nós, ocidentais que estávamos lá a trabalhar, tínhamos muitas dificuldades em aceder às redes sociais ou a meios de informação que estivessem do outro lado, porque eles são restritos, bloqueiam tudo o que são sites externos. Por isso estávamos um bocado às aranhas, às escuras, sobre a realidade. Para nós, não existia Covid-19. A única coisa que existia era um pequeno vírus que tinha sido encontrado, como uma gripe normal — associávamos aquilo a uma gripe que te punha em casa durante duas semanas e depois voltavas ao trabalho, e portanto o governo tinha acionado um plano que era: usem mais máscaras agora, mais do que aquelas que já usavam.
Porque na China já é habitual o uso de máscara para situações de saúde ou para a poluição nas grandes cidades.
Sim, tem essencialmente a ver com os níveis de poluição, que às vezes são mesmo perigosos, e aí as pessoas usam máscara. E é algo normal de se ver na rua. Mas, por exemplo, não é normal ver-se numa sala de espetáculos. E quando nós começamos a ver imensa gente com a máscara, foi aí que quisemos investigar e ver o que é que se passava. Mas é muito difícil aceder a informação de fora do país, e a única informação que eu soube foi por familiares e amigos que me contactaram a um dado momento a perguntar o que é que se estava a passar e se eu estava bem. Foi aí que eu percebi que estava a ser notícia mundial. É porque não era assim tão ligeiro, como eles faziam parecer.
Só quando veio para Portugal e teve acesso a toda a informação é que percebeu a real dimensão do problema?
Sim, eu fui completamente apanhado desprevenido, porque eu lembro-me que fizemos um espetáculo, que foi o último, e nesse tivemos mesmo pouquíssimo público, estamos a falar de quase ninguém. E ainda assim a grande preocupação dos artistas, e eu tinha imensas cenas em que interagia com o público diretamente, era que eu devia não fazer aqueles momentos de interação se o vírus era assim tão perigoso. Lembro-me que tive uma reunião com os diretores do espetáculo, e entretanto eles marcaram a reunião geral depois dos banhos e de tirarmos a maquilhagem e tudo mais, e informaram-nos que, por ordens do governo, o espetáculo tinha sido cancelado e que nós tínhamos obrigatoriamente de ficar num período de quarentena de 15 dias. No mínimo. Então eu estava mesmo: o que é que se está a passar aqui? Isto foi de um dia para a noite, no dia seguinte a cidade acorda e não é a mesma. Está tudo vazio, não há carros na rua, não se passa nada, está tudo fechado. A polícia a fazer grande fiscalização nos prédios. E foi aí que eu percebi: ok, isto é grave. Portanto, ainda foi lá que tive essa consciência. E quando regressei comecei a perceber todas as informações que estavam a circular. Primeiro foi um momento de alívio, porque tinha conseguido sair do país e foram duas semanas entre negociações com a própria companhia e a minha vontade de vir embora, e a incerteza do que se estava a passar.

O artista interagia com o público nos espetáculos.
Quais eram as dificuldades para sair da China?
Havia imensas limitações. Porque quando isto estourou, quando chegou à província de Zhejiang, já havia muita informação externa. Já muitas companhias aéreas estavam a cancelar voos. Por exemplo, havia uma família lá do Cirque du Soleil que a mulher e os filhos eram de Israel, e o marido tinha nacionalidade australiana. Em modo fuga, acabaram por ir para países completamente diferentes. Teve que haver uma separação da família, porque Israel entretanto cortou as fronteiras. Com os voos cancelados, cada vez se tornava mais difícil para nós perceber qual era a alternativa, porque eu, para chegar a Portugal, tinha obrigatoriamente de fazer escala em algum sítio. E perceber qual era esse sítio, e quando é que comprava os bilhetes… Porque o Cirque du Soleil ainda não sabia se ia reabrir os espetáculos, se não ia, porque, lá está, a informação não chegava até nós. Nós acreditávamos que, em duas semanas, o problema estava resolvido.
Já estavam a pensar que, pouco tempo depois, poderiam retomar os espetáculos?
Sim, aliás, a informação inicial foi mesmo essa. Disseram-nos que iam ser 15 dias de quarentena absoluta, depois fazíamos alguns testes, uma semana de ensaios e recomeçávamos novamente o espetáculo, quando o problema estivesse resolvido.
Mas não chegou a acontecer.
Sim, fizemos essas semanas em casa, entretanto ao fim de uma semana tivemos uma nova reunião no teatro em que eles nos informaram que o caso afinal era mais grave do que parecia e os espetáculos iam ficar cancelados até ordens em contrário. Depois, os artistas começaram também a exigir, por parte da companhia, que fossem tomadas decisões. Porque era só a China, naquele momento, em que os espetáculos estavam bloqueados. Obviamente que, entre ficar na China durante um ano sem fazer nada, ou regressar ao país de origem, era bem melhor regressar. E assim foi. O Cirque du Soleil decidiu abrir uma exceção para aqueles artistas, que seria colocar-lhes a hipótese de não ficarem presos na China e poder haver uma exclusão de contrato. Se por vontade dos artistas alguém quisesse ir embora, poderíamos. E houve bastantes que tomaram essa decisão, claro. Os nossos contratos eram só para aquele espetáculo, eram de dois anos e iam acabar em novembro. No entanto eu acabo por estar numa zona de privilégio, porque eu já tinha tomado a decisão de sair mais cedo. Eu iria sair da China em março, por isso acabou por não ser uma grande mossa.
Ou seja, já ia sair de qualquer forma?
Sim. Isto só antecipou a minha vontade. A única coisa que acabei por perder foram dois meses de trabalho.
O voo de regresso acabou por ser normal?
Sim, eu ainda tive essa sorte, de ter um voo relativamente normal. Fiz escala em Itália e depois fui para Portugal.
Chegou a ser testado na China ou depois? Ou não?
Essa é que foi a grande curiosidade, porque não houve qualquer tipo de controlo. Nem à saída da China, nem à entrada de Itália. A única coisa que me perguntaram foi, antes de apanhar o voo para Portugal, de onde é que eu tinha vindo. E eu respondi que vim da China. Esperava em Portugal ter recebido algum tipo de controlo mas aterrei no aeroporto do Porto e foi sair direitinho para casa.
Ainda era cedo para que a Europa já estivesse a tomar medidas?
Era como se não existisse, praticamente. Ouviam-se falar dos primeiros casos, ainda.
E já ia sair da China e abandonar o espetáculo. Tinha a ver com o trabalho em si, com não querer passar mais tempo na China?
Eu não tive qualquer tipo de problemas em trabalhar com o Cirque du Soleil, foi fantástico, o meu único grande problema foi estar na China. Não gostei, não me identifiquei com o país nem com muitas das coisas que eles fazem lá, e portanto decidi abandonar o país e o projeto em si. Não me fazia sentido continuar a trabalhar e a dar do meu corpo àquele país.
O Cirque du Soleil está com enormes problemas financeiros por causa disto. Daquilo que sabe, como é que os artistas estão a viver a situação?
A situação agora é muito delicada, porque acima de tudo há uma incerteza muito grande. Não se sabe mesmo. As únicas informações que chegam são especulações da imprensa. Ainda hoje li mais uma. Era sobre o Guy Laliberté, o primeiro fundador do Cirque du Soleil, em conjunto com o Franco Dragone, que foi um dos grandes encenadores do início da companhia, estariam a pensar fazer um negócio os dois e tentar comprar a companhia. Ou seja, há tanta especulação à volta, que é muito difícil perceber para que lado é que a companhia vai. Por parte dos artistas, o espírito que se vive é esse. Não sabemos. Porque todos os artistas acabaram por ser… não é despedidos, mas ficaram em stand-by, que é o que normalmente acontece. Ou seja, no Cirque du Soleil tu ganhas o teu ordenado por espetáculo. Quando tens duas semanas de férias, não estás a receber. Aqui estamos nesse regime. Aqueles que saíram estão sem receber e à espera de um momento em que seja possível voltar. Agora, não se sabe se é de facto possível voltar, porque há todas essas incertezas sobre se a companhia vai resistir. O que eu acho é que, e pelo que tenho falado com amigos que fazem parte da companhia, há uma tranquilidade muito grande.
Por parte dos artistas?
Sim. Porque do lado da companhia é uma incógnita, não passa para fora, não se sabe mesmo. Há muito caos, entre diretores que se estão a despedir, diretores que estão a entrar, não se percebe muito bem para onde é que a coisa está a ir. Então mais vale não especular sobre isso. Mas por parte dos artistas há uma tranquilidade muito grande, porque a certeza aqui é: o Cirque du Soleil é uma companhia enorme, é única no mundo, é uma referência e tem os melhores gestores e empresários e os melhores interesses à frente da companhia. O que nos parece é que, por qualquer razão, é uma companhia que vai receber salvação. Nem que seja pelo próprio governo, que entende a companhia já como um símbolo do país — aliás, quando tivemos a estreia na China o primeiro-ministro fez questão de estar presente através de vídeo e glorificar o nome da companhia. Ou seja, há muito valor associado à companhia para ela morrer assim por causa da Covid-19.

Muitos dos artistas regressaram aos seus países.
Para desaparecer assim de repente por causa de um problema externo.
Sim, não acredito que isso vá acontecer. Acredito que se vai encontrar uma solução, quanto muito… acho que os espetáculos não vão desaparecer mas podem entrar num processo que a companhia já estava a fazer que é o de vender a outras produtoras. Ou seja, como os casinos de Las Vegas. Os espetáculos deixarem de pertencer ao Cirque du Soleil e passarem a pertencer diretamente aos casinos e hotéis. Mas isso já era uma direção que a própria companhia estava a seguir.
E a questão de ser uma companhia, apesar de sediada no Canadá, com pessoas de todo o mundo, também dificulta o processo até em termos burocráticos? Ou seja, uma empresa em Portugal pode colocar os seus trabalhadores em lay-off, e há outras soluções semelhantes noutros países. Neste caso será diferente por ser uma companhia tão internacional.
Sim, está a tentar gerir pessoas que vêm do mundo inteiro — e quando digo do mundo inteiro, é mesmo do mundo inteiro. E depois, além disso, é uma companhia enorme. Ou seja, não é só a quantidade de espetáculos que eles têm. É a quantidade de eventos que fazem por ano, mais as instalações que eles têm, seja no Canadá, em Las Vegas ou no México. Todos os sítios onde eles estão fala-se de uma companhia que tem imensos empregados, imensa gente a trabalhar com eles. Porque tem que ser assim. E nesse sentido é muito difícil entrar num lay-off ou o que quer que seja.
Ou haver uma coordenação conjunta, porque cada país tem as suas regras.
Exatamente. Eu acredito que seja uma situação mesmo muito delicada para a companhia neste momento.
Há colegas seus do espetáculo que ficaram na China?
Sim, eu tenho conhecimento de dois ou três que arriscaram não propriamente ficar na China ou naquela província, mas foram passar tempo fora numa zona nos arredores da China, na Tailândia ou no Japão, nalgum país menos preocupante, para depois voltarem. Agora o que sei é que o espetáculo já estreou novamente, reabriu — foi o primeiro do Cirque du Soleil a abrir, também tinha sido o primeiro a fechar — só que abriram com mais de 50 por cento de artistas chineses. Ou seja, substituíram os internacionais por artistas chineses, para conseguirem pelo menos fazer a abertura do espetáculo. Porque todos os que saíram de lá em modo fuga não conseguem regressar à China assim tão cedo.
No seu caso, gostaria de voltar a trabalhar com o Cirque du Soleil, mas noutros países, noutros espetáculos?
Sim, eu ponho a hipótese de continuar a colaborar com a companhia noutros espetáculos e tinha ficado essa vontade também por parte da companhia. Mas com esta situação toda agora não sabemos quando é que isso poderá acontecer e qual é o melhor projeto a seguir. Mas é uma questão de tempo e espero que a companhia consiga dar o salto e reestruturar-se a partir daqui.
E como foi a sua experiência de regressar a Portugal, já com uma quarentena feita na China? Passado pouco tempo de ter chegado, teve de ficar novamente em confinamento.
Sim, foi exatamente um mês. Ainda por cima estou a viver em Esmoriz neste momento, no concelho de Ovar, que foi o primeiro a fechar. Quando cheguei aqui a sensação foi de sossego, porque não foi só a Covid-19. Para mim, pessoalmente, foi um ano e um mês de muita turbulência naquele país. Por isso chegar a casa foi um alívio. Quando comecei a perceber que afinal o vírus não estava assim tão distante e que estava a chegar, nunca ponderei que fosse chegar a este ponto. Mas considero que Portugal foi exemplar na forma como resolveu o problema. Porque aquilo que senti aqui, na quarentena, não foi nem metade do sofrimento que senti na China. A China funcionou por obrigação e força, que é como eles estão habituados a resolver as questões, aqui foi saudável. Foi uma circunstância pesada, mas também se calhar por estar em casa senti mais esse carinho, esse afeto entre todos. Senti uma comunidade a tentar resolver o problema e a tentar estar bem. E nesse sentido foi fantástico. Passámos pela coisa sem grande pesar. Foi complicado, mas não foi um sofrimento extraordinário, além daquele que era suposto ser.
Desde que chegou, tem conseguido trabalhar de alguma forma? Participou em projetos?
Quando regressei ainda consegui ter uma participação especial num espetáculo, no Teatro Nacional D. Maria II, uma versão do “Romeu e Julieta”. Mas depois, quando isso terminou, tenho estado a trabalhar numa criação em nome próprio para estrear em dezembro. Entretanto todas as residências foram canceladas, há uma incógnita muito grande sobre viagens, se há possibilidade ou não. Um festival em Espanha que eu estava a co-produzir entretanto já foi cancelado. Ia acontecer em setembro. Agora estou a tentar recuperar o tempo perdido e em termos de trabalho estou a receber novas propostas e a tentar perceber qual é o caminho, pelo menos até ao final de dezembro, para depois poder retomar o próximo ano sem Covid, não é?
E essa criação prevista para dezembro vai estrear onde?
Vai estrear no festival Leme, em Ílhavo. É uma criação sobre circo contemporâneo, sou eu com a Casota Collective, uma companhia de Leiria com quem tenho vindo a colaborar, e vai ser o meu teste sobre o ponto atual em que estou em termos de clown — o que é que é isto de ser clown nos dias de hoje? Em termos de temática vai ser sobre esta experiência que vivi durante um ano e um mês na China e sobre ser um miúdo que nasceu pós-25 de abril e ir parar a um regime comunista ditatorial e perceber que tipo de repercussões é que isso teve em mim.

Rui Paixão acredita que o Cirque du Soleil vai sobreviver.
Sendo que viveu lá durante pouco mais de um ano, acredita que os números oficiais e informações divulgadas pelo estado chinês poderão ser fiéis à realidade, ou não? Tem havido algum debate internacional sobre isso.
Qualquer resposta que eu possa dar será especulativa. Não tenho dados para dar uma resposta certa. Agora, tenho sensores em mim. E esses sensores dizem-me que não confie. É esta a minha experiência. É um país que é uma potência, de facto — e creio mesmo que no espaço de dez anos vai estar a dominar o mundo, porque infelizmente está a ter todas as estratégias bem jogadas para o ser. E o capitalismo de violência que eles estão a implementar no país é completamente feroz e sente-se na vida quotidiana. Estar na China é exatamente como estar num futuro pós-apocalítico tipo cidade zombie, onde as pessoas vivem mesmo dentro de um telemóvel e quase que não existem. E isso é assustador, é mesmo assustador estar naquele país. Portanto, acredito que o governo chinês seja capaz de ocultar ou destruir provas ou o que quer que seja para desviar esses números para se salvar desta situação.
Em relação ao setor cultural português, cujas fragilidades ficaram ainda mais expostas com a pandemia, acredita que estão a ser tomadas as medidas certas? É preciso fazer mais? Qual é a sua visão?
Olha, isso é uma coisa que eu gostava de realçar. De facto, o Cirque du Soleil está em circunstâncias muito negativas. E aqui a única coisa que se pode fazer é servir como exemplo. Se a maior empresa do mundo em termos de artes performativas se encontra num estado tão delicado, imaginem todas as outras companhias e todos os outros projetos, artistas independentes, que não têm sequer um contrato em Portugal para poderem ter pelo menos um ou dois anos de segurança. E se houver interesse da grande massa capital no Cirque du Soleil, de certeza absoluta que ele vai ser salvo. Só vai morrer se não houver mais interesses monetários associados à companhia. É um jogo de interesses, um jogo capitalista. O que se trata aqui em Portugal é o contrário. Trata-se de desvalorizar questões que não têm a ver com gerar dinheiro para o país, mas tem a ver com gerar cultura, liberdade, pensamento, comunidade e amor. E nesse sentido é sempre muito mais fácil excluir e tornarmo-nos exceções e, num país tão pequeno como Portugal, leva-nos a um lugar muito delicado e de uma vida incerta. E eu acho isso muito pecaminoso, muito injusto. E considero que Portugal não está a fazer nada ou não nos está a ajudar. Para ajudar é necessário medidas imediatas e medidas de apoio e de mentalidade. A todos os níveis. Não estou só a defender as questões óbvias e que têm de ser mudadas em relação ao que o governo tem que nos dar, os apoios e a forma como o setor é visto, mas em termos de educação, nas escolas e no público em geral, para com o que é isto de ser artista. Muitas vezes, e acho que todos os artistas em Portugal sofrem disto, quando tomamos a decisão de “eu quero ser artista”, é como se fosse uma decisão estúpida e não possível. E isso é mesmo injusto. Há que haver uma mudança de mentalidade por parte de todos em relação ao que é fazer arte, que é um trabalho obrigatório num país. E, depois, sem dúvida, os apoios e proteger os artistas e o setor.
Ou seja, além da necessidade de haver medidas concretas para esta altura difícil, tem de se repensar de forma mais profunda e a longo prazo sobre toda a área?
Sim, tem que se acabar com aquele tipo de pensamento de que a arte não é um bem de primeira necessidade, que viver da arte não é possível, tens de encontrar um trabalho alternativo, tem de se acabar com todos esses pensamentos que estão implementados na sociedade portuguesa e poder reestruturá-los, poder entender um artista como uma pessoa com um trabalho normal. Porque o é. Como um serviço essencial para a comunidade. Porque o é.