Foi há pelo menos 30 anos que Rogério Samora e Adriano Luz se conheceram. Os dois atores experientes, que têm exatamente a mesma idade — 62 anos — partilharam vários projetos ao longo das carreiras. Juntos fizeram filmes, séries e novelas. Além disso, Adriano Luz é diretor artístico da SP Televisão, uma das principais produtoras audiovisuais em Portugal. Assim, muitas vezes colaborou com Samora nesta função.
Rogério Samora morreu esta quarta-feira, 15 de dezembro, depois de 148 dias em coma, passados em diversas unidades de saúde. O ator sofreu um paragem cardiorrespiratória na rodagem da novela “Amor Amor”, da SIC, produzida precisamente pela SP Televisão.
Ao longo do dia, nas redes sociais, multiplicam-se as reações de colegas e amigos. O pretexto para a NiT entrevistar Adriano Luz sobre o colega que perdeu.
Recorda-se do momento em que conheceu Rogério Samora?
Profissionalmente, sei qual foi o primeiro trabalho que fizemos juntos. Conhecê-lo até pode ter sido no Frágil [risos] ou na Casa da Comédia, que era onde ele estava, ou na Comuna ou na Cornucópia, por onde eu andava na altura. Mas não sei exatamente, já lá vão uns anitos. Profissionalmente foi na série da RTP “Alentejo sem Lei”, realizada pelo João Canijo, uma espécie de western português. Depois cruzei-me com o Rogério em muitas coisas, mas nunca no teatro, por acaso.
Que projetos fizeram juntos?
Trabalhei com ele em cinema, n’”O Fatalista”, do João Botelho. No filme do Miguel Gomes “As Mil e Uma Noites”. Num telefilme que se chamava “Minha Querida Mãe”. Depois cruzei-me com ele também numa novela, pelo menos, “Poderosas”. E a última coisa que fizemos juntos enquanto colegas foi “O Filme do Bruno Aleixo”. De resto, cruzei-me mais vezes com o Rogério enquanto diretor artístico, mas é uma relação diferente. Provavelmente há mais coisas nas quais nos cruzámos, também trabalhámos juntos na TVI.
Enquanto ator e profissional, o que pensava do Rogério?
Era um ator singular, do ponto de vista de que não há muitos Rogérios. Se amanhã precisar de fazer um casting, então se for um ator de 62 anos, com determinadas características em que se enquadrava o Rogério, vou ter algumas dificuldades em encontrar uma alternativa. Não só pela sua fisionomia, mas porque enquanto ator era muito intenso. Era muito honesto na maneira como trabalhava. Não me lembro sinceramente de o Rogério não saber o texto. O que, enfim, não é uma qualidade por aí fora — acho que, para nós, atores, é uma obrigação [risos]. Mas o Rogério não só sabe o texto como estuda a personagem. E consegue fazer uma coisa que não é assim tão comum: entregava-se da mesma forma fosse qual fosse o projeto. Nunca o ouvi fazer, como se costuma dizer, pelo cheque ao fim do mês. Isso conferia-lhe, para o bem e para o mal… houve fases em que o Rogério era mais bruto, mais duro. Nunca me aconteceu, mas há pessoas que se queixavam disso, de ele ser brusco. Acho que o Rogério era muito reservado e tímido. E acho que fazia muito essas coisas para se defender ou para esconder ou ultrapassar a timidez. Não estou a dizer que não o fizesse, mas não me lembro de nos projetos que fiz com ele de ser um ator de confraternização pós-laboral. O que é algo normal, às vezes, nos filmes e nas séries, quando não estamos em Lisboa e estamos fora. Lembro-me de fazer outro filme com ele, do João Mário Grilo. Estivemos em Estremoz e todas as memórias que tenho do Rogério são do plateau. Isto diz muito dele. E eu também não serei um tipo muito sociável. Por exemplo, no Bruno Aleixo estivemos os dois hospedados num hotel e acho que jantei só uma vez com ele no restaurante do próprio hotel. Não conheço a vida íntima do Rogério, mas ele não tinha excessos nem ia para a farra, posso garantir, se no outro dia trabalhasse. Se calhar mesmo quando não trabalhava não tinha excessos. E isso é um sintoma de um profissionalismo que, na nossa geração — ou pelo menos numa mais acima —, não é muito comum. E a prova disso é que há muitos atores que chegaram para aí aos 70 anos, ou antes, e estão um bocadinho arruinados. Já o Rogério parecia mais novo do que era.

Sentia-se essa juventude nele.
Sim. Para mim, foi completamente inesperado. Todo este acidente… Como dizia alguém, o Rogério não morreu hoje, não é? O óbito foi hoje. Acho que ele já tinha partido, muito sinceramente. Nós sentimos que, da forma fulminante como foi, o tempo que demorou… Creio que nunca mais teríamos o mesmo Rogério. Mas, quer dizer, há milagres. Não sei se o Rogério tinha muitos ou poucos amigos — ele próprio dizia que tinha muito poucos, que se contariam pelos dedos de uma mão. Mas sinto que, nesta fase que estava a trabalhar connosco, estava muito mais dócil. Acho que é um sintoma de idade. Isso acrescentou-lhe coisas boas. Perdeu alguma obsessão, porque trabalhava quase obsessivamente nas personagens. Mas se amanhã houver uma retrospetiva, um livro, um programa ou um documentário seja sobre a novela ou o cinema, o Rogério estará lá como um dos nomes de destaque, seguramente. Porque ele foi, até agora, um dos atores mais importantes e requisitados quer pelo cinema quer pela televisão. No teatro menos, porque também se afastou mais cedo do teatro. Acho que é um ator que ficará seguramente na história do audiovisual e não é fácil de substituir. Enquanto diretor artístico da SP, se amanhã propuser um elenco seja para o que for, vou ter menos uma peça no tabuleiro de xadrez.
E o Rogério, com 62 anos, tinha ainda muito para poder dar, tendo em conta a sua juventude.
Sim, e a pujança. É a vida. É um lugar-comum, mas é assim. Aconteceu com o Filipe Duarte, ainda mais novo; com a Maria João Abreu, também um bocadinho mais nova. Estão a ser anos danados. Estes três casos foram mortes completamente inesperadas e prematuras. Todos eles tinham mais do que muitas coisas a dar à profissão e não só — às suas vidas. E este ano na SP isto aconteceu-nos em dois projetos e é duro. Porque se criam famílias ao fim deste tempo todo de rodagem. E é muito difícil porque depois as histórias têm de ser remendadas o mais dignamente possível para a pessoa que faleceu. E ainda que o público saiba o motivo de as pessoas saírem das novelas, nós tentamos sempre que essas saídas tenham o seu quê de poético, de simbólico.
É ainda mais difícil, suponho, como no caso do Rogério Samora e da Maria João Abreu, em que tiveram os seus problemas de saúde durante as gravações.
Exatamente. Isto é um bocado mudar um pneu da bicicleta a andar. Infelizmente, já estamos a ficar com treino. Não deixa de haver quase como uma nuvem que temos de superar e que fica em cima da própria empresa, que é chata, dolorosa. Ainda que o Rogério não tenha morrido hoje, mas há uns tempos atrás, essa nuvem adensou-se agora, estando nós todos preparados para isto. E quase que me atrevo a dizer que antes agora do que daqui a dez anos. Porque podia-se perpetuar durante muito tempo, esta vida vegetal. E nem os entes queridos fazem o luto nem nada, não acontece nada.