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Paulo cria palavras cruzadas há mais de 30 anos (e não quer ser o último da sua espécie)

É o mais novo (e também um dos mais experientes) cruciverbalistas portugueses. Recentemente lançou um novo livro.

Sopa de letras, sudoku, palavras cruzadas. São passatempos que existem há décadas nos jornais ou revistas — e até no meio digital — que nos rodeiam. Mas raramente paramos para pensar em quem está por trás destes exercícios. Para eles, é muito mais do que um passatempo, é mesmo a paixão de uma vida inteira.

É o caso de Paulo Freixinho, cruciverbalista (assim se chamam os profissionais das palavras cruzadas) português de 52 anos. Apesar de a sua carreira ter começado há mais de 30 anos, em 1990, diz ser o mais jovem cruciverbalista do País. A 20 de março, lançou um livro para assinalar o aniversário redondo do seu percurso profissional. “Palavras Cruzadas 2015-2020” pode ser comprado online por 9,99€.

O primeiro livro, “Palavras Cruzadas com Literatura”, já tinha sido editado em 2011. “Obviamente, um autor não pode estar dez anos à espera que a editora decida lançar um livro. Mal dos autores que estão nessa situação. Isto não é uma crítica à editora, eu percebo que o mercado também não está para brincadeiras, mas foi importante dar o passo de uma edição de autor. Para não estar dependente”, explica à NiT.

Como criou uma comunidade online ao longo dos últimos anos, já sabia que tinha um público para o livro, cujas vendas estão a correr bastante bem.

“Eu tenho o site onde faço palavras cruzadas online, mas tenho tido feedback de que muitas pessoas preferem fazer no papel. Se forem pessoas mais velhas, não gostam tanto do online ou não percebem tanto. E então foi isso que fiz. Decidi fazer uma compilação de palavras cruzadas que fui metendo no site ao longo destes anos. Acrescentei outras originais. E foi uma experiência. Não é fácil vender livros online, mas, lá está, também não há muitos livros de palavras cruzadas. Eu não sou um escritor que tenha a concorrência de milhares de escritores, sou um cruciverbalista que tenho um livro e estou a obter resultados. O livro ainda não tem um mês e está a ter resultados muitos animadores. Já estou a preparar o próximo porque já deu para perceber que o caminho é este. Espero lançar uma segunda edição deste, mas estou a criar um novo livro. Já tenho uma ideia, mas não vou revelar porque se não ainda lançam primeiro do que eu [risos]. Acho que vai ser um livro especial.”

Guarda todos os passatempos que já fez no seu computador. Numa “estimativa por baixo”, diz que deve ter em arquivo cerca de 30 mil — o que dá uma média de mil por ano. Hoje em dia, cada um demora cerca de meia hora a fazer.

“Os meus computadores parecem a arca do Fernando Pessoa porque estão cheios de ficheiros e de imagens. É algo com que me tenho preocupado ultimamente, a dizer às minhas filhas: vocês têm que saber o que é que eu tenho no computador. Porque se algum dia me dá alguma coisa, ninguém sabe o que está lá dentro.”

As palavras cruzadas foram a solução para um mau aluno a português

Natural de Lisboa, Paulo Freixinho vive no Barreiro desde os três anos. Lembra-se de os pais fazerem as palavras cruzadas da revista “TV Guia” e foi a partir daí que também começou a fazer. Além disso, era “mau aluno a português”.

“Eu tinha um vocabulário muito pobre, a desculpa para os erros que dava dizia que era por ser disléxico — não sou totalmente, sofro mais de disortografia e disgrafia — e as palavras cruzadas ajudaram. Às tantas roubei a ‘TV Guia’ ao meu pai e depois comecei a interessar-me [risos].”

Tinha um amigo que fazia as palavras cruzadas nas férias e Paulo começou também a experimentar, durante a adolescência. “A gente entretia-se com esse tipo de coisas. Eu não gostava de ler. Não fui bom aluno. Gostava de artes, sempre fui muito criativo, estava sempre a desenhar. E tudo o que fosse estudar eu não gostava.”

Por isso mesmo, virou-se para as artes. “Eu comecei por ser desenhador gráfico, foi a minha primeira profissão. E no atelier onde trabalhava, havia uma revista sobre cinema e surgiu a oportunidade de fazer uma página de passatempos. Fui eu que a criei e começou aí. Depois, lancei uma revista de passatempos com um colega, tinha 21 anos.”

O livro que lançou há menos de um mês.

A tal revista que criou levou-o a ser contratado por uma agência que fazia passatempos para jornais e revistas generalistas. “Comecei a ter tanto trabalho que ficou aí a minha profissão. Fazia sopas de letras, palavras cruzadas, muita coisa. E às tantas apaixonei-me pelas palavras cruzadas, dediquei-me mesmo muito e, pronto, fui por aí e cheguei agora a esta fase.”

Do anonimato ao reconhecimento

Este é um trabalho bastante anónimo. Muitas vezes, as pessoas que pegam num jornal ou numa revista para um exercício de palavras cruzadas não fazem ideia de quem está do outro lado, quem desenvolveu aquele exercício. Paulo Freixinho explica até que, muitas vezes, os cruciverbalistas assinam com pseudónimos. No seu caso, enquanto esteve na agência os passatempos não iam assinados, mas entretanto assumiu o nome.

“Fui anónimo até criar o blogue em 2007. Foi pouco depois de aparecer o sudoku, e foi mesmo uma febre, e depois veio a crise e senti que precisava de fazer alguma coisa para dignificar as palavras cruzadas. Criei o blogue e fez com que eu saísse do anonimato. Ao trabalhar para a agência, os passatempos não eram assinados. E a partir do momento em que criei o blogue disse: eu faço isto. E as pessoas começaram a saber quem era o autor de muitos passatempos que faziam e isso fez-me tornar conhecido e entretanto já passaram tantos anos que a Internet está cheia de conteúdos meus.”

Ao longo dos anos, fez palavras cruzadas para órgãos de comunicação social como “Correio da Manhã”, “Diário de Notícias”, “Jornal i”, “Notícias Magazine”, “Visão”, “Sábado”, “Caras”, “A Bola”, “Record”, “O Jogo”, “24 Horas”, “Jornal de Negócios”, “Nova Gente” ou “TV 7 Dias”, entre outros. Atualmente, trabalha para o “Jornal de Notícias” e para o “Público”, entre outros.

“As do ‘Público’ são as que me dão mais trabalho porque se focam nas notícias. É um grande desafio porque tenho que atrasar ao máximo o envio delas para que vão o mais atualizadas possível. Isto é sempre um grande jogo de cintura e dão mais trabalhinho.” Faz todos os dias desde 1999 — e a pandemia também lhe trouxe uma coisa boa, já que o “Público” passou a ter palavras cruzadas online.

Através do seu site e das redes sociais, onde é muito ativo, criou quase uma comunidade de cruzadistas — as pessoas que resolvem exercícios de palavras cruzadas. Recebe feedback constante e diz que se tenta adaptar aos comentários do público, para que os seus passatempos sejam o menos repetitivos possível.

Muitas vezes também recebe mensagens de histórias de pessoas que o deixam comovido. Recentemente, recebeu uma mensagem que explicava que um casal de idosos resolvia as suas palavras cruzadas em conjunto.

“O meu pai tem 86 anos e tem doença de Parkinson; as palavras cruzadas do Público são a sua terapia diária. Observar o meu pai e a minha mãe de 84 anos, com dicionário no colo, a desafiarem-se para encontrar a palavra certa, é um sinal de vitalidade que me arranca muitos sorrisos. Era importante para mim partilhar consigo mais esta dimensão do seu trabalho”, escreveu-lhe esta seguidora. 

Depois, Paulo Freixinho quis retribuir o carinho e criou umas palavras cruzadas que incluíam os nomes do casal. “Espero surpreendê-los e que fiquem felizes”, escreveu na altura. O gesto até foi mencionado na Rádio Renascença, através de Joana Marques.

Tem 52 anos e é natural de Lisboa.

“São histórias simples mas é bom que as pessoas as conheçam para não pensarem que as palavras cruzadas são uma coisa do passado. Elas já têm mais de cem anos. Mas não estão para acabar, longe disso.”

Qual é o truque para um bom exercício de palavras cruzadas? “Tem de ter boas palavras. O cruzadista deve aprender pelo menos sempre uma palavra. Para pessoas com muita prática, que fazem regularmente, começa a ser cada vez mais difícil encontrarem uma palavra que não conheçam. E eu tenho sempre esse cuidado. Eu sei que isso acontece, há muita repetição de palavras, mas tem de haver alguma que surpreenda quem está a fazer. Se não, é mais do mesmo. Vou buscar à literatura, leio muito e tenho uma lista de palavras daquelas menos conhecidas.” Por enquanto, garante, a lista de palavras que nunca usou ainda é vasta.

Tornou-se um “leitor compulsivo” aos 40 anos

Paulo Freixinho explica que se tornou um “leitor compulsivo” apenas aos 40 anos. Quando era jovem, praticamente só lia banda desenhada. 

“Aos 40 mudei a minha vida [risos]. O engraçado é que passei de não ler para conhecer pessoalmente vários escritores — porque leio muitos autores lusófonos contemporâneos. Por isso faço muitas parcerias com escritores.”

O objetivo foi sobretudo ter acesso a mais vocabulário. “Foi uma crítica que me fizeram, um cunhado que fazia as palavras cruzadas do ‘Público’ disse que eu usava palavras muito difíceis e que as pessoas não conheciam e que aquelas palavras não serviam para nada. E eu disse: espera aí, vou começar a ler para perceber que vocabulário anda a ser utilizado. E a partir daí comecei a criar uma lista de palavras, vou lendo e anotando. Melhorei as palavras cruzadas ao ser leitor. Se forem utilizadas por escritores, já têm o aval, não é? Já não podem dizer que não interessam a ninguém [risos]. E foi um ponto de viragem no modo de eu fazer palavras cruzadas.”

Afonso Cruz, José Saramago, Aquilino Ribeiro ou Eça de Queiroz são alguns dos escritores de que mais gosta e que mais palavras lhe ensinaram. Por exemplo, quando visita escolas costuma ensinar a palavra “endefluxado”, usada por Eça de Queiroz num dos seus livros, que significa “constipado”.

Desde os 40 anos que lê cerca de um ou dois livros por mês — uma média de 20 livros por ano. Com a pandemia, explica, tem lido um pouco menos, por falta de disponibilidade mental e também porque tem tido mais trabalho no online. Mas assegura que já está a recuperar o ritmo do passado.

A sua palavra favorita é “xurdir”

Paulo Freixinho admite que tem uma palavra favorita: xurdir. É um regionalismo de Trás-os-Montes que significa “fazer pela vida”. E o cruciverbalista assumiu em 2014 a missão de levar esta palavra mais longe. “É o papel do cruciverbalista, recuperar palavras.”

Foi nesse ano que criou uma página no Facebook com o título “Xurdir para Palavra do Ano 2014”. “As pessoas foram-se lá meter na página, algumas não conheciam a palavra e ficaram encantadas. No final do ano, a Porto Editora lança as candidatas à Palavra do Ano e deixa uma vaga para as pessoas escolherem por votação, a décima palavra. E eu disse: olha, temos aqui a oportunidade, vamos todos votar na palavra xurdir. Chego ao fim do ano, a Porto Editora mostra as dez palavras e estava lá xurdir, tínhamos conseguido meter a palavra. Foi uma coisa que não teve explicação, quando vi a palavra entre as dez candidatas, deves imaginar a alegria [risos].”

E o resultado final também acabou por ser uma vitória. “Depois foi a votação, a palavra desse ano foi ‘corrupção’. A palavra ‘selfie’ ficou em terceiro e a segunda foi ‘xurdir’. Foi pôr a palavra no vocabulário de muitas pessoas, hoje em dia há muitas pessoas que dizem xurdir.” E Paulo até já inventou uma palavra: cruziscar. O que significa? Fazer palavras cruzadas, claro.

A sua missão é incluir as palavras cruzadas na disciplina de Português

Desde 2012 que visita regularmente escolas, onde participa em aulas de Português do terceiro, quarto ou quinto ano. Criou uma ligação com vários professores e estabelecimentos de ensino e pretende demonstrar a riqueza do vocabulário português através das palavras cruzadas.

“Era algo que nunca tinha acontecido, fazer sessões de palavras cruzadas numa aula, e o facto é que aquilo corre mesmo muito bem, os miúdos adoram.”

E acrescenta: “Normalmente eu faço a pergunta: as palavras cruzadas fazem bem ao quê? Eles dizem logo: ao cérebro [risos]. Porque, claro, é o que ouvem, que os avós fazem palavras cruzadas porque evita o Alzheimer, há esse mito. E eu digo: não, não fazem. As palavras cruzadas fazem bem ao vocabulário e à ortografia. E eles ficam a olhar para mim e depois eu digo: vá, mas também fazem bem ao cérebro. O que é importante é que eles percebam que aquilo lhes faz bem, porque eles têm muitas dificuldades no português. E uma coisa que me irrita, quando saem aquelas reportagens sobre os alunos com dificuldades em português, eu digo que as palavras cruzadas são uma das soluções. Não basta ler, o exercício mais completo que existe é fazer palavras cruzadas, em termos de ortografia”.

Por isso mesmo, Paulo Freixinho assume como a sua “missão” incluir as palavras cruzadas na disciplina de Português. “A minha próxima missão é fazer com que as palavras cruzadas façam parte do programa escolar. Tal como ler, ter ali um momento na aula de Português que é fazer palavras cruzadas. Tudo o que tenho feito é trabalhar para aí, é a minha missão derradeira.”

Num dos vários eventos que fez com crianças.

O cruciverbalista explica que tem feito contatos com o Conselho Nacional de Educação, com diversos professores e com o Plano Nacional de Leitura — mas o seu objetivo é que seja mesmo formal, e não uma mera opção tomada de vez em quando por alguns professores. Em várias escolas e bibliotecas já ajudou a criar clubes de palavras cruzadas.

Normalmente, tem um mês de março “repleto”, já que é quando se assinala o Dia do Livro e há muitas iniciativas nas escolas. Durante o resto do ano letivo, quase todos os meses visita uma escola diferente.

“Em outubro de 2019, mesmo antes da pandemia, fiz uma digressão pelos Açores, por todas as escolas das ilhas do triângulo. E foi a viagem da minha vida, estive ali uma semana a percorrer aquelas escolas e aquilo correu mesmo bem. Os miúdos queriam que eu ficasse lá, diziam que me arranjavam casa [risos]. Este tipo de coisa tem que continuar porque é muito útil para eles.” 

Paulo Freixinho quer desconstruir o mito de que as palavras cruzadas são apenas “uma companhia para pessoas mais velhas”. “Eu tento desmistificar. Há a ideia de que as pessoas mais velhas é que fazem porque têm mais tempo, mas também são feitas pelos mais jovens”, diz, acrescentando que tem tido vários jovens a comprar o seu livro ou a visitar o seu site.

Além disso, ir às escolas é uma missão de futuro. “Porque uma coisa que não quero é ser o último cruciverbalista. Nesta altura sou o mais novo em Portugal. É tudo mais velho, atrás de mim não vem ninguém e eu não quero isso. Quando eu morrer não quero… É preciso alguém que saiba pelo menos pôr o computador a funcionar e perceber que há ali palavras que se calhar não interessam. Por isso, eu espero conseguir arranjar um seguidor, um dia, para que isto continue, porque eu tenho implementado clubes de palavras cruzadas nas escolas e já tive situações em que vejo que há crianças que têm mesmo muito jeito para aquilo. Por isso, vou metendo lá o bichinho e depois logo se vê [risos]. Para mim as escolas são muito importantes, agora com a pandemia foi uma chatice, estamos a perder dois anos. Já fiz algumas sessões no Zoom, mas não é a mesma coisa. Espero que isto volte depressa para continuar este trabalho que estava a dar frutos.”

Outras das palavras que ensina sempre aos miúdos nas escolas são “ósculo” e “amplexo” — que é como quem diz “beijo” e “abraço”. “Os miúdos nos intervalos andam a brincar aos amplexos e aos ósculos. Se não, só dizem kiss ou hug. É bom que tenham uma variante portuguesa. Hoje em dia vemos o inglês a ter uma grande vantagem, e se não temos cuidado… Eu faço esse teste nas escolas: escrevo a palavra ‘face’ no quadro e eles leem logo ‘face’ [em inglês]. É mais uma das razões para que as palavras cruzadas fiquem na escola, porque ajudam. Tanto a levá-los para a leitura como a levá-los a perceber que o vocabulário português tem coisas boas. É bom que saibam inglês, mas para não se encantarem demasiado.”

Aos 52 anos, Paulo Freixinho conta que agora tem duas filhas crescidas, na faculdade. A mais velha seguiu o seu lado artístico, a mais nova está em Direito, mas tem sido uma grande ajudante no trabalho do pai.

“Tenho um projeto para os mais novos que é Sabe Mais k(que) os teus Pais e ela foi revisora das minhas palavras cruzadas. Tem sido a minha ajudante no português, por acaso teve 20 no exame nacional de Português do 12.º ano e foi um orgulho enorme, é mesmo muito inteligente.”

Ambas são leitoras. “Nisso não falhei como pai [risos].” E recorda ainda o dia em que a filha mais nova, com apenas oito anos, lhe perguntou se conhecia a palavra “anagnosta”.

“E eu não sabia. Ela estava a ler um livro do Afonso Cruz que tinha essa palavra. ‘Essa palavra está num livro para crianças?’ ‘Está.’ ‘Eh pá, quem é esse?’ Já o conhecia, claro, mas a partir daí comecei a ler e a ler. E os miúdos não se esquecem, é preciso é que lhes apresentem as palavras. Lá está, a minha filha, com oito anos, ensinou uma palavra ao cruciverbalista.”

ENTRETANTO EM