Teatro e exposições

Ator substituído após protesto de ativista trans diz ter sido “violentado e castrado”

André Patrício interpretava uma personagem transsexual quando a peça foi interrompida por ativistas que exigiam que papel ficasse nas mãos de pessoas trans.
O ator André Patrício foi substituído

“Não sou a favor da violência nem da invasão de palco. Senti-me violentado e castrado na minha arte, no meu trabalho”, confessou nas redes sociais André Patrício, o ator que se viu afastado do papel que conquistara na peça “Tudo Sobre a Minha Mãe” na sequência de um protesto que obrigou à interrupção da sessão de quinta-feira, 19 de janeiro.

Contactado pela NiT para falar sobre o sucedido, o ator recusou dar entrevistas, mas acabaria por desabafar no Instagram sobre as consequências do protesto comandado pela ativista transexual brasileira Keyla Brasil. “Não saí da peça, como várias pessoas escrevem ou pensam. Porque faço mais três personagens. A situação teria sido bem diferente se eu tivesse ficado desempregado”, esclarece.

“Também nós, trabalhadores da Cultura (cis ou trans) somos uma minoria. Não temos as devidas e igualitárias condições de trabalho na nossa área. E lutamos para sobreviver”, salientou antes de explicar que é “totalmente a favor da igualdade de oportunidades, de direitos e da inclusão”, no “trabalho em geral, não só nas artes, seja na sociedade”.

Patrício não concorda “com o boicote a um espetáculo que por si só já era uma plataforma de visibilidade e apoio à inclusão”. Qualifica a forma do protesto como inadequada e que configura um desrespeito ao seu “empenho enquanto profissional”. “Fazer-se ouvir é um direito, rasgar é uma agressão”, atira. “Não é com desrespeito e injustiça que se consegue respeito e justiça.”

O protesto polémico

Aconteceu na noite de quinta-feira e o vídeo tem sido amplamente divulgado nas redes sociais. Durante uma apresentação da peça de teatro “Tudo Sobre a Minha Mãe”, no Teatro São Luiz, em Lisboa, a atriz trans e performer travesti Keyla Brasil invadiu o palco, semi nua, em protesto contra o “transfake”.

A brasileira interrompeu o espetáculo e defendeu que o ator André Patrício não deveria poder interpretar uma personagem trans por ser cisgénero. “Transfake! Desce do palco! Tenha respeito por este lugar”, pediu. Imediatamente, a produção baixou a cortina, cobrindo os atores, mas a ativista manteve-se no palco a falar para a plateia.

 

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“Gente, boa noite, Chamo-me Keyla Brasil. Sou atriz, sou prostituta”, disse, enquanto alertava para a falta de oportunidades em Portugal para as pessoas trans. “O que está a acontecer agora é um assassinato e um apagamento das identidades travesti. Se contrataram quatro mulheres e três homens, porque é que não contrataram duas pessoas trans para fazer a personagem? Sabem porque é que eu trabalho como prostituta como [as personagens] Agrado e Lola? Porque não temos espaço para estarmos aqui neste palco. Neste lugar sagrado.” No final, pediu a André Patrício para que não voltasse àquele lugar.

A peça “Tudo Sobre a Minha Mãe” é uma adaptação do argumento do filme homónimo de Pedro Almodóvar. Em Portugal, a encenação é de Daniel Gorjão, a partir de um texto de Samuel Adamson. Nesta peça, André Patrício interpreta Lola; enquanto a atriz trans Gaya de Medeiros é Agrado.

Depois das declarações de Keyla Brasil, ouviram-se aplausos no público. A atriz Maria João Luís dirigiu-se à artista: “Estamos aqui a fazer um espetáculo que defende a vossa luta”. Keyla Brasil não concordou: “Não defende, estão excluindo”.

Gaya de Medeiros veio depois à boca de palco elogiar o gesto de Keyla Brasil. “Quero que vocês entendam com generosidade, de coração. A liberdade de uma não será a liberdade de todas. Eu sou apenas um começo. Isto aqui não está como deveria estar. Mas acho que hoje este ato da Keyla Brasil, uma artista que está na prostituição, deve entrar na história de Portugal, para que se entenda a importância destes corpos ocuparem estes espaços para contarem as suas histórias. Isto não é contra o ator e o diretor. Isto é contra uma denúncia histórica. Que andamos a fazer há muitos anos.”

O público aplaudiu o discurso e a peça não foi retomada. O protesto foi organizado por Keyla Brasil com outros ativistas trans de diversas nacionalidades. Pelo mesmo motivo, foi convocado um protesto frente ao Teatro São Luiz para este domingo, 22 de janeiro, a partir das 17 horas.

A companhia que encenou “Tudo Sobre a Minha Mãe”, Teatro do Vão, reagiu nas redes sociais ao sucedido e mostrou-se solidária com a luta de Keyla Brasil.

“Assumindo que podíamos ter feito outra opção, que deveríamos ter feito outra opção, no que respeita à inclusão de pessoas trans em ‘Tudo Sobre a Minha Mãe’, uma vez que demos o papel de Agrado a uma mulher trans, pela primeira vez no mundo, mas não o fizemos em relação à personagem Lola.

Percebemos, acreditamos e estamos solidários com a luta trans, sempre estivemos. Apesar do nosso esforço, não foi suficiente, e lamentamos. Com este processo aprendemos e crescemos, e olharemos o futuro de forma diferente. Não somos inimigos, somos aliados, sempre disponíveis para o diálogo.”

Entretanto, o Teatro São Luiz anunciou a substituição de André Patrício. “No seguimento de vários atos de contestação pela representação de uma personagem trans por um ator cis e pela criação de condições de acesso e representatividade para pessoas trans, o Teatro do Vão decidiu alterar o elenco (…), integrando a atriz trans Maria João Vaz na interpretação da personagem Lola.”

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