Teatro e exposições

Embaixada dos Açores: o novo bailado de Luís Borges com jovens com necessidades especiais

"Epicentro" foi produzida pelo ESTÚDIO 13, em Ponta Delgada, e coreografada por Cecília Hudec.

Nos últimos dias de 2024 surgiu-me uma proposta inesperada, fascinante e aterradora. Escrever a dramaturgia de um bailado. Com produção do excecional ESTÚDIO 13, em Ponta Delgada, e coreografia da dulcíssima Cecília Hudec, caiu-me no colo o desafio de escrever para um género no qual tenho zero experiência, ainda por cima um espetáculo que mescla bailarinos profissionais com jovens protagonistas (da escola Domingos Rebelo) com necessidades especiais — autismo, paralisia cerebral, cadeirantes, entre outras.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, entre 10% a 20% dos adolescentes em todo o mundo enfrentam questões de saúde mental. 59% dos jovens sentem pressão constante para parecer bem-sucedidos nas redes sociais e dois terços dos que ainda vivem em casa dos pais relatam conflitos familiares.

Como suponho que viver, verdadeiramente viver, seja entregarmo-nos àquilo que é novo, acarreta responsabilidade, e nos assusta… atirei-me de alma e coração à escrita do guião-base desta peça — “EPICENTRO” — que, ao momento que este artigo chega ao leitor — terá estreado há dois dias em São Miguel.

A ideia subjacente é a de partilhar com o público um dia — intenso — na vida destes intérpretes. Todos, profissionais ou não, procuram o mesmo — um lugar no mundo, a busca de si próprio, a luta pela identidade. E são, no espetáculo, tratados como iguais, tenham necessidades especiais ou não. Sem paternalismo nem condescendência. O tema é universal: todos queremos descobrir o nosso âmago e sentirmo-nos integrados, reconhecidos, valorizados pelos outros, com rumo na vida.
Partilho abaixo o momento nevrálgico do Narrador, ao qual tive a honra de emprestar a voz, e que — perto do clímax da peça — tenta falar em nome de muitos.

Não sem antes partilhar convosco uma citação da assombrosa Clarice Lispector: “É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir não é o que eu sinto, mas o que eu digo. Sinto quem sou e a impressão está alojada na parte alta do cérebro, nos lábios — na língua principalmente —, na superfície dos braços e também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo, eu não sei dizer.”

Narrador

Queremos um minuto agora, um minuto suspenso no tempo, só nosso, um minuto de liberdade que vai levar os segundos que forem precisos. Ouçam-nos. Queremos explorar, descobrir, errar, queremos distância da ansiedade, da pressão social, dos padrões impostos constantemente em redes sociais que fingem aproximar-nos quando, na verdade, não passam do teatro de desconhecidos a interpretarem o papel de mais belos, mais bem sucedidos, mais ricos e aceites e integrados do que nós.

Tirem as máscaras. Ouçam os vossos medos e respeitem o sonho que palpita por dentro (se não o tiverem sufocado ainda). Nós andamos na corda bamba, numa dança contra os ponteiros do relógio, no equilíbrio precário entre descobrir quem somos e quais são ao certo as expectativas que os outros têm de nós. Vivemos, constantemente, na hipertensão de dias onde as 24 horas por vezes passam a correr, noutras já parecem demorar semanas, no conflito permanente entre o desejo de pertencer e a vontade de se permanecer autêntico.

Tudo é amplificado: alegria, raiva tristeza, choque de gerações, melancolia, dúvida, anseio por liberdade sem certeza do rumo: qual o meu futuro, o meu propósito, a minha chama inapagável de esperança?

Somos meras formiguinhas presas a uma esfera que navega pelo infinito a uma velocidade estonteante, mas achamo-nos dignos: queremos, como as formigas, que nos deixem caminhar carregando sobre os ombros 20 vezes o nosso próprio peso. E somos açorianos. A herança e o reflexo de 6 séculos a lidar com isolamento, intempérie, distância, terramotos e vulcões. Portanto, seremos na vida o que esta terra nos ensinou: resistiremos a tudo. Havemos de resistir a tudo com o nosso ADN de sobreviventes estoicos, querendo que os Açores nos afirmem e desejamos afirmarmo-nos através dos Açores.

Deixem-nos crescer sem paternalismo nem condescendência, mudar de opinião — como as células dos nossos corpos que se regeneram dezenas de vezes ao longo da vida; como as linhas do destino traçadas nas mãos que — em ciclos de 7 anos — se alteram também.

Somos influenciáveis? Claro. Temos o coração ao pé da boca, poesia presa na garganta e o córtex pré-frontal a desenvolver-se até aos 25 anos. Adultos aos 18? Isso é para rir. Precisamos de ser compreendidos enquanto buscamos a nossa identidade, nós, eles, tu, eu. Eu preciso de ser aceite, preciso que me deixem falhar se a tentativa for ao menos digna, que me escutem, que não me julguem, que me ofereçam espaço sem retirar apoio.

Às vezes só queremos dormir de manhã, prolongar os sonhos onde os nossos pais nunca morrem e toda a gente nos compreende somente através de gestos e sorrisos. Porque gostamos tanto de falar, mas muitas vezes ninguém nos entende, aborrecem-se, exaltam-se connosco, não compreendem o universo inteiro que se expande só dentro das nossas cabeças numa espécie de eco infinito. E outras vezes todos nos entendem bem, mas nós esquecemos o que dissemos… Será que a cantar é melhor? Serei capaz de escrever um hino sobre andar a cavalo, conduzir um carro com a minha família dentro, trabalhar e ser feliz? Será? Serei? Seremos? É que às vezes as minhas mãos mexem-se sozinhas, sem ordens do cérebro, talvez procurem os cães de que quero cuidar, talvez, sim, ou afastar as baratas que me assustam ou quiçá a sopa de que não gosto nem quero comer.

Mas daqui a dez anos há-de ser tudo diferente, pois será, terei uma casa, filhos, trabalho, nunca estarei sem nada para fazer. Odeio não ter nada para fazer. Odeio o barulho, odeio gritos, foguetes, surpresas que não pedi, mas uma vez sonhei com um jogo e a minha mãe comprou. O GTA. Gostas? Sou assim? Tu também és? Como é que tu és? Conta. Queres jogar comigo?

Somos frágeis. Não queremos deixar nada por dizer, nada por tentar. Somos, à vez e todos juntos, como um cometa que só passa uma única vez pelo caos do universo.
Magoámos pessoas que não queríamos magoar, perdemo-nos muitas vezes na melhor das intenções, receamos encontrar o sonho tarde demais, tememos ser ignorados e, no entanto, guardamos para sempre — como alimento da chama interior – a generosidade de quem nos diz “eu estou aqui”, “escuto-te”, “conta comigo”, “tu és o meu tudo”, “tu és o meu ser”, “tu tens um bom coração”.

E que ironia tão doce e tão poética é escutar de alguém “tu és o meu ser”, quando se calhar ainda nem sei bem quem sou… Mas, hey, estou aqui. Estou aqui ou não estou? Indeciso, inseguro, frágil, receando que o resto da vida me considere inútil, mas… ainda assim… estou. Capaz de estar num palco, e tu?

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