Teatro e exposições

Maria João Vaz, a nova atriz trans do São Luiz: “Recebi ameaças violentas”

Foi chamada para a peça “Tudo Sobre a Minha Mãe” após o protesto polémico de Keyla Brasil. Seguiram-se dias difíceis.

Esta segunda-feira, passavam mais de 70 horas desde o desaparecimento de Keyla Brasil, a ativista trans que a 22 de janeiro encabeçou o protesto no Teatro S. Luiz, e as preocupações cresciam entre os que sabiam que ela recebera ameaças de morte. Ao telefone com a NiT, Maria João Vaz, atriz trans que substituiu André Patrício na sequência do protesto, antevia um desfecho feliz.

“Presumo que a Keyla se tenha querido retirar por causa do stress, que não queira falar com ninguém. Se fosse comigo aconteceria o mesmo. Toda esta loucura até pode ser contraproducente e colocar ainda mais pressão em cima. Mas eu acredito que ela está bem e que isto foi um isolamento voluntário”, notava, minutos antes de chegar a notícia de que Keyla Brasil teria sido encontrada bem e “em segurança”.

A verdade é que a controvérsia que o protesto do S. Luiz gerou não afetou apenas a vida da ativista que se expôs pela causa trans. Também Maria João Vaz, chamada ao papel por decisão do Teatro do Vão e na sequência dos apelos de que o papel fosse entregue a uma mulher trans, foi alvo de ameaças.

Maria João, que revelou ter sentido muitas dificuldades em encontrar trabalho — “não sei se por ser trans ou por causa da idade” —, acabaria por ficar nos holofotes e abordar o drama de ser atriz trans. Terá sido uma das entrevistas que deu a gerar algum ressentimento, sobretudo entre os apoiantes mais fervorosos de Keyla Brasil.

“Saiu uma notícia do ‘Expresso’ e depois uma caixa em destaque onde passavam a ideia que eu disse que não me prostitui nem saltei para cima do palco e preferi, tranquilamente, estar a trabalhar no Burger King”, nota. A citação completa foi a seguinte: “Não subscrevo o método de saltar para um palco com aquela violência. Não sou violenta, mesmo que esteja a sofrer, a ser perseguida ou discriminada. Preferi um trabalho precário no ‘Burger King’ do que tomar essa atitude. Não é da minha natureza. Ou seja, apoio e subscrevo o movimento, mas não a atitude.”

A partir do momento em que as suas declarações se tornaram públicas, a 22 de janeiro, as redes sociais da atriz acenderam-se com mensagens ameaçadoras. “Houve muitas pessoas que tomaram partidos e isso criou uma cisão na comunidade. Houve pessoas que me ofenderam, recebi mensagens muito ofensivas. Fiquei com medo”, diz. “Tentei dialogar com alguns deles, respondi a pessoas que foram agressivas. Perguntava-lhes: ‘És trans?’ e o diálogo acabava ali.”

Foi uma resposta da comunidade trans à sua escolha? “Não posso dizer se são da comunidade ou não. Senti que podiam ser pessoas da comunidade mas também da mesma nacionalidade da Keyla, que acabam por ser pessoas que se sentiram marginalizadas como imigrantes e acabam por defender os seus compatriotas. Sentem-se atingidos também”, responde Maria João.

Recorda que foi alertada para o timing das suas declarações, que poderiam incendiar ânimos. “Disseram-me que se calhar não devia ter dito o que disse nesta altura. Disse o que disse porque sou assim, digo as coisas. E é o que eu acho, de facto”, nota sobre a sua visão pessoal do protesto. Postura que, aliás, reiterou em entrevista à NiT.

Nada disso impediu que se sentisse “assustada”. “Recebi ameaças à minha integridade física. Claro que há desconforto. Quando a peça saiu de Lisboa para o Porto, estava à espera que houvesse alguma confusão. Tendo em conta a agressividade do que me foi dito, a sequência natural podia ser uma coisa desse género — e eu estaria preparada, só não queria que me espetassem uma faca ou me dessem um tiro.”

Apesar de todas as mensagens, Maria João Vaz sente que a sua entrada na peça foi bem-sucedida. “Nesse domingo fui ovacionada em palco pelas pessoas que inclusivamente participaram no protesto. Bateram-me palmas, deram-me abraços”, conta.

“Depois alguém foi buscar aquela parte eventualmente polémica da entrevista e divulgou aquilo de uma forma odiosa, o que criou algum atrito por parte da comunidade. Na maioria dos casos, expliquei que foi tirado de contexto e as pessoas apaziguaram.”

A seu ver, a ação “de uma pessoa” acabou por “lançar a confusão”, o que “fez mal à comunidade”. Agora que as coisas acalmaram, diz que está em paz. “A idade dá-nos experiência de vida, um apaziguamento, uma visão. Já passámos por muita coisa e a minha reação a alguns acontecimentos não é assim tão emocional, é mais ponderada.”

A peça “Tudo Sobre a Minha Mãe” deixou Lisboa e passou pelo Porto no último fim de semana,  de 28 e 29 de janeiro, antes de encerrar de vez. Para Maria João Vaz, foi a primeira vez a assumir um papel trans e espera que o protesto e a sua subida ao palco para substituir André Patrício seja “o início” de uma era em que “pelo menos esses papéis sejam entregues a mulheres trans”.

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