Era mais um dia como os outros na leiloeira Christie’s. O lote colocado a leilão tinha como base de licitação 84€ e as propostas começaram a cair. A poucos segundos do fim, a peça “Everydays — The First 5000 Days” alcançava os 30 milhões. De repente, numa avalanche de licitações, o valor disparou para perto dos 58 milhões de euros. O twist: a obra de arte não existe.
É preciso explicar melhor: não é uma obra palpável que podemos pendurar na parede. Trata-se da mais valiosa criação do artista digital conhecido como Beeple. Além de bater o valor recorde pago por uma peça digital, ultrapassou o valor de outras obras consagradas de artistas clássicos como Picasso, van Gogh, Rothko ou Manet..
Mike Winkelmann, o artista por detrás de Bleep, tornou-se automaticamente num dos mais valiosos artistas ainda vivos. “Everydays — The First 5000 Days” e a terceira obra de arte mais cara vendida por um artista em vida, apenas ultrapassado por Jeff Koons e David Hockney.
Que obra é esta? Bem, na verdade, trata-se de um simples ficheiro jpeg, o tipo de ficheiro mais comum para partilhar imagens. Nele estão coladas todas as imagens digitalmente criadas que, diariamente, Bleep partilhou online desde 2007.
O leilão, que decorreu online e terminou esta quinta-feira, 11 de março, foi visto em direto por cerca de 22 milhões de pessoas. Um sinal de que a nova tendência da arte digital poderá, brevemente, voltar a bater recordes.
Há mais por detrás deste mero ficheiro digital de imagem. Trata-se de um NFT, um “non-fungible token”, isto é, uma espécie de ficha ou código infungível (ou não-fungível) que garante não só a autenticidade da obra, mas também a quem pertence — similar à tecnologia usada para as criptomoedas, a blockchain, que de resto é usada para as transações e certificações neste novo mundo da arte. A obra foi, claro, paga em criptomoedas Ethereum.
O que é um NFT?
Aqui é que a coisa se torna mais complicada. Se entendemos que um bem fungível é aquele que pode ser trocado por outro do mesmo género, podemos dizer que metais preciosos como o ouro ou a prata ou mesmo notas e moedas físicas, são bens fungíveis físicos. Existem também os bens fungíveis digitais, como as criptomoedas.
No caso dos NFT, estamos perante o caso oposto: são infungíveis bens únicos como uma pintura ou uma casa — no caso dos bens físicos. E chegamos finalmente à categoria da obra de Beeple, a dos bens infungíveis que não são físicos: bens de valor únicos, que não podem ser trocados por algo de igual valor e que não são tangíveis, isto é, palpáveis.
Qualquer coisa pode ser transformada num NFT: imagens, gif, vídeos ou até um tweet — foi o que fez recentemente o fundador do Twitter, Jack Dorsey, que criou um NFT do primeiro tweet da plataforma que irá ser leiloado a 21 de março e poderá ascender a valores acima dos 20 milhões de euros.
Podem ser criações únicas ou, por exemplo, bens colecionáveis. Com esta tecnologia, o criador pode também limitar o seu uso ou distribuição à partida — ou garantir direitos, isto é, receber uma percentagem de todas as vendas da obra que sejam celebradas no futuro. Atualmente, existem alguns problemas com este formato. Está aberta a possibilidade de alguém poder criar um NFT para um bem digital que não criaram.
E tal como as criptomoedas, os NFT usam a tecnologia blockchain, que suscita algumas preocupações ambientais. Os certificados digitais são invioláveis porque exigiriam uma capacidade de descodificação de tal forma grande, que se torna quase impossível violá-los.
Para que estas transações possam acontecer, são necessárias grandes quantidades de energia — ou seja, computadores com alta capacidade de processamento que, claro, consomem energia.
“O comum NFT tem uma pegada de carbono de cerca de 340 kWh. Uma pegada de um NFT pode equivaler ao consumo total de energia de um cidadão europeu durante um mês, com emissões equivalentes a conduzir um carro numa distância de 1000 quilómetros”, revela o artista digital e engenheiro Memo Atken.
O boom da arte digital
A 3 de março, os Burnt Banksy, um grupo de artistas anónimos, queimou em direto no YouTube a ilustração original de “Morons”, de Banksy. Mas antes, a obra foi transformada num NFT com uma cópia digital.
Destruído o original, que valia várias dezenas de milhares de euros, restou apenas a versão digital, cujo valor disparou. O NFT foi vendido no mercado Open Sea por mais de 380 mil euros, triplicando o valor da versão física original.
A peça recordista de Beeple não foi a única obra digital que o artista vendeu. Um vídeo de 10 segundos foi comprado por mais de seis milhões em fevereiro — depois de inicialmente comprada em outubro por mais de 60 mil euros.
Este especulativo mercado de arte digital não é propriamente novo. Em 2017 já eram vendidas imagens digitais de gatos que atingiam uma valorização de milhares de euros. E claro que as grandes marcas quiseram também entrar nesta nova loucura.
CROSSROAD
By @beepleThe #1/1 from beeple's first NG drop has just resold on the secondary market for $6.6 million.
History has just been made.
Congrats to beeple and of course to @pablorfraile for the sale. pic.twitter.com/mTYG4VABSw
— Nifty Gateway (@niftygateway) February 25, 2021
A NBA foi uma delas. O novo projeto da associação de basquetebol norte-americano criou a NBA Top Shot, que cria NFT colecionáveis. Um vídeo de um afundanço de LeBron James foi vendido por mais de 200 mil euros.
Outro exemplo: os Kings of Leon tornaram-se, este mês, na primeira banda a lançar um álbum em três formatos NFT, com preços a partir dos 40€.
Para muitos, sobretudo para os criadores, os NFT são a forma mais fácil de garantir que os artistas são pagos pela distribuição das suas obras na Internet — algo que, ainda hoje, é quase impossível de controlar. Mas os críticos alertam para o potencial surgimento de uma bolha especulativa.
Entre os principais compradores destas obras estão sobretudo fanáticos das criptomoedas e indivíduos com extensas fortunas destas moedas digitais. Depois, revela John Watkinson, dos CryptoPunks, vieram “os tipos ricos de Silicon Valley”. “Se tens uma destas obras raras, isso tem um significado especial.”
Também ao “The New York Times”, o colecionador de arte Sylvain Levy mostrou-se cético: “Não tenho o software necessário na minha mente para perceber o que se está a passar. A arte deixou de ser uma relação com um objeto. Agora trata-se apenas de fazer dinheiro. Tenho pena da arte.”