“Ele sabia que ia ser [uma entrevista] incendiária. Sabia que ia agitar tudo, mas também sentia que o devia fazer”, explicou o polémico jornalista britânico Piers Morgan, o homem a quem Cristiano Ronaldo recorreu para comandar a sua mais recente e controversa entrevista.
Os primeiros excertos foram bombásticos e puseram fim à guerra fria que existia entre jogador e o seu atual clube, o Manchester United. A guerra aberta dificilmente terminará bem para as duas partes. Falta, contudo, ver e ouvir as declarações de Ronaldo na íntegra para avaliar os danos que poderão provocar.
A entrevista, que será exibida em duas partes, vai para o ar no Reino Unido esta quarta-feira, 16 de novembro. Por cá, será transmitida na RTP, mas apenas na quinta-feira, 17, também em duas partes. A primeira irá passar logo após o Telejornal e, na sexta-feira, irá para o ar a segunda parte em vez do programa “A Prova dos Factos”, a partir das 21 horas.
Até lá, a especulação sobre o que poderá ainda ser revelado durante a entrevista irá continuar. A máquina de comunicação de Ronaldo entrou em ação há várias semanas, com os primeiros contactos a serem feitos diretamente com Piers Morgan que é, aliás, um amigo próximo do jogador.
“O Cristiano pediu-me [para dar a entrevista]. Foi tão simples quanto isso”, explicou o apresentador da Talk TV e um dos mais controversos homens da imprensa tabloide britânica. Ao longo da carreira, Morgan tem estado envolvido em diversas polémicas, tendo até sido acusado de violar a ética e a deontologia da profissão. Chegou mesmo a ser afastado do “News of the World”, o jornal de Rupert Murdoch que fechou na sequência de um escândalo de escutas ilegais. “O rapaz foi longe demais”, afirmou o magnata.
O estilo provocatório de Piers alinhava-se na perfeição com a capacidade de se imiscuir entre famosos e poderosos. Foi assim que travou uma amizade improvável com Cristiano Ronaldo, ele que é um fanático adepto do rival Arsenal. E tudo começou com uma mensagem enviada pelo Instagram.
Uma amizade improvável
“A nossa relação começou de uma forma o mais aleatória possível, quando ele me enviou um mensagem pelo Instagram, aqui há três anos”, revelou Morgan na sua coluna no “The Daily Mail”, publicada em 2021. “Disse-me: ‘Olá senhor, como está? Vi o seu documentário na Netflix e achei fascinante o facto de ter entrevistado todos estes assassinos.’ Assim que recuperei do choque de ver um dos meus maiores ídolos desportivos a contactar-me do nada, recompus-me e comportei-me como um profissional.”
Morgan respondeu que o que seria “mesmo fascinante” seria poder entrevistar Cristiano. “Fiz a sugestão e lancei o isco, ao que ele respondeu: ‘Mas eu não matei ninguém’.” Um ano depois, os dois estavam sentados frente a frente, com o jogador do Manchester United a limpar as lágrimas, enquanto falava sobre o alcoolismo e a morte do pai, que não chegou a vê-lo tornar-se num dos melhores futebolistas de sempre.
A amizade começou aí. Desde esse encontro que Morgan mantém, em destaque, um pequeno excerto no seu perfil de Twitter, no qual Ronaldo diz que é possível perceber que o jornalista tem “bons abdominais”. Por sua vez, Ronaldo segue apenas 62 contas na rede social, entre elas está a do jornalista. Era o início de uma relação próxima que seria mutuamente benéfica.
‘You have good abdominals.’
Thank you, @Cristiano. 👍
Yours aren’t too bad either. pic.twitter.com/mj3xMRBnFx— Piers Morgan (@piersmorgan) September 18, 2019
“Desde o nosso encontro em 2019, tornámo-nos amigos improváveis. Falámos ao telefone de tempos a tempos, conversamos frequentemente no WhatsApp sobre tudo, de futebol, a carros e iates, sobre o coronavírus e a paternidade”, revelou Morgan. “Conheci e entrevistei muitas lendas do desporto ao longos dos meus 30 anos como jornalista e nenhuma me impressionou tanto como ele, tanto dentro como fora de campo.”
A preparação da entrevista fatal
Segundo Morgan, Ronaldo estava a ponderar avançar com esta entrevista “há já algum tempo”. “Não é segredo nenhum que ele tem sentido um acumular de frustração por causa do que se tem passado no United neste último ano. Sentiu que era altura de falar”, conta. “Ele sabe que as pessoas o vão criticar, mas também sabe que está a dizer a verdade. E, por vezes, a verdade magoa.”
Nada foi feito por impulso e tudo tem vindo a ser calculado ao milímetro. O objetivo? Ajudar a concretizar os objetivos pessoais e profissionais de Ronaldo que, agora, se tornam cada vez mais claros: terminar de vez com a relação que tem com o Manchester United e trocar de clube.
A escolha do jornalista britânico não foi inocente. Piers Morgan fez carreira nos tabloides britânicos e chegou mesmo a fazer uma passagem, também ela recheada de polémica, pela televisão norte-americana. Por onde passa, deixa um rasto de controvérsia — e seria a pessoa ideal para promover uma já de si bombástica entrevista.
O momento da transmissão também foi estudado de maneira a deixar cair bomba sobre Old Trafford numa altura em que Cristiano Ronaldo estará bem longe da explosão. “Acho que este timing se justifica pelo facto de o Mundial estar prestes a começar. Ele joga por Portugal, que é uma boa equipa e pode fazer um bom campeonato, e isso dá-lhe pelo menos um mês longe do United”, nota o jornalista.
“Isso vai dar tempo para que as suas declarações assentem e que, depois, ele possa regressar tranquilamente para resolver as coisas.” Que coisas? “Ele adora o clube e os fãs, mas confessa que sente que regressou para um clube estagnado. Não consegue perceber porquê e sente que se não falar, nada vai mudar.”
Apesar de ter havido uma clara concertação de esforços, Morgan recusa revelar quando é que aconteceu a gravação da entrevista, apesar de reafirmar que foi “recentemente”. “Isso é entre mim e ele.” Piers sabia que, mais cedo ou mais tarde, Ronaldo iria falar. “Um dia recebi a chamada a dizer-me: ‘Quero fazê-lo agora’.”
A verdade é que, se Ronaldo não for claro nas suas intenções durante a entrevista, Morgan parece servir como uma espécie de intérprete. “Há uma boa probabilidade de que ele faça um bom Mundial e, nesse caso, isso será a melhor montra para ele”, refere.
O que quer, afinal, Ronaldo? “Isso ajuda-o a obter o que ele quer, que é estar numa equipa que compita na Liga dos Campeões e que lhe permita jogar ao mais alto nível nos próximos anos. Ele só se quer reformar lá para os 40 anos.” O plano para forçar a saída do clube que o contratou e lançou nos palcos mundiais aos 18 anos está em movimento.
Um Manchester pouco unido
O regresso a Manchester, no verão de 2021, foi feito em ombros. Era o regresso do prodígio, do craque que se tornou no melhor do mundo com a camisola vermelha do United e que, 12 anos depois, voltava para ajudar o clube a regressar à glória.
Tudo indicava que assim seria, com dois golos na estreia e festejos sucessivos nas partidas seguintes. Terminou a época com 24 golos em 38 jogos, mas não foi suficiente para garantir o acesso do clube à Liga dos Campeões na temporada seguinte.
A morte de um dos gémeos foi um golpe forte em Cristiano Ronaldo. Depois vieram as férias, a pré-época e o arranque de uma polémica que fez com que o jogador chegasse ao clube já em cima da competição. Com o holandês Erik Ten Hag nos comandos, Ronaldo nunca foi primeira opção.
Nos meses que antecederam o arranque da competição, muitas foram as notícias de que davam conta de que o seu empresário, Jorge Mendes, estaria em contacto com vários clubes, à procura de um novo rumo para a carreira de Ronaldo.
Dizia-se que o português queria mudar de clube, queria uma oportunidade de jogar a Liga dos Campeões, que seria impossível no United. Tudo isso foi desmentido, apesar de agora, apenas três meses depois do arranque da época, ser o próprio Morgan quem revela que continua a ser esse o objetivo do jogador.
A temporada no United foi o palco de todas as novelas. Entre horas passadas no banco de suplentes, Ronaldo fez um pouco de tudo. Recusou entrar em campo, discutiu com o treinador, abandonou o relvado antes do apito final e, segundo a imprensa britânica, terá mesmo chegado a inventar doenças para não se deslocar com a equipa — justificação dada ao clube imediatamente após saber que não faria parte do onze titular.
A relação com o treinador estava tremida e, no excerto já publicado da entrevista com Morgan, o português parece dar a machadada final na ligação que, agora, poderá estar irremediavelmente afetada. “O Cristiano só quer ser respeitado e valorizado e não sente que isso tenha acontecido sob Ten Hag. Acredita que ele, desde que chegou ao clube, tem tentado ganhar pontos à custa dele. É muito fácil para os treinadores fazerem isso, porque ele é o maior nome, a maior estrela e dá muitas manchetes, que ajudam a desviar atenções dos reais problemas do clube.”
Apesar das claras intenções de Ronaldo, reveladas indiretamente por Morgan, o jornalista escusa-se a clarificar intenções. “Ele definitivamente não me diz que quer sair, mas está ciente de que o que está a fazer poderá significar o fim da sua estadia no Manchester United”, revela. “Claro que ele sabe isso. Não é estúpido.”
No balneário, as declarações de Ronaldo, que atacou antigos treinadores, donos do clube e até ex-colegas, foram recebidas, segundo a imprensa inglesa, com desilusão. A equipa celebrava a mais recente vitória, no tal jogo que o português falhou por suposta doença, e viu o número 7 ausentar-se nos dois jogos finais antes da pausa para o Mundial.
Os responsáveis pelos Red Devils terão ficado furiosos com o timing e com o conteúdo dos excertos revelados. As férias foram adiadas por uns dias, enquanto no clube se agendavam reuniões para decidir o que fazer. Ten Hag manteve-se mais uns dias em Old Trafford para avaliar os estragos, embora nada de drástico vá ser feito antes da transmissão da entrevista completa.
“O clube irá avaliar a sua resposta depois de todos os factos estarem em cima da mesa”, revelou em comunicado, depois de ser criticado por Ronaldo por alegadamente não ter respeitado o período de luto do jogador, que no verão terá também visto um dos seus filhos hospitalizados.
Segundo a imprensa, Ten Hag terá já decidido que não há forma de voltar a acolher o dono da camisola 7 no balneário. O United, por enquanto, está a ponderar a melhor forma de atuar e uma das medidas em cima da mesa é o despedimento o que, a ver pela preparação da entrevista e declarações de Morgan, poderá ser exatamente o que o jogador pretende.
A promessa de mais revelações
Enquanto a entrevista não vai para o ar, vão sendo feitas mais revelações. Um dos temas abordados por Ronaldo na entrevista é precisamente a morte prematura do filho durante o parto. “Foi provavelmente o pior momento pelo qual passei na minha vida depois da morte do meu pai”, revelou a Piers Morgan, segundo o “The Daily Mail”.
Ronaldo e Georgina Rodriguez esperavam um casal de gémeos, mas apenas a bebé sobreviveu. “Quando vais ter um filho, esperas sempre que tudo decorra com normalidade. E quando surge um problema, é duro. Eu e a Gio passámos por momentos difíceis. Foi muito, muito difícil compreender o que se passou nesse período da minha vida.”
Ainda assim, o jogador reconheceu que “o futebol não pára”. “Estava em muitas competições naquele que foi o pior momento da minha vida.” Segundo Ronaldo, ainda hoje guarda as cinzas do filho ao lado das do pai.
“Muitas das coisas pelas quais tem sido criticado, como não ter ido à pré-época… Creio que as pessoas irão perceber exatamente o que aconteceu e verão tudo de forma diferente. Poderão perceber que a resposta do clube foi miserável. Há muito mais no caso do que aquilo que conseguimos ver”, reflete Morgan. “O Ronaldo é, na minha opinião, o melhor jogador de sempre, ganhou tudo e, quando ele decide falar desta forma, creio que as pessoas deveriam ouvi-lo.”