Lançado em 1964, o “Top of The Pops” rapidamente se tornou num dos programas mais vistos em toda a televisão britânica. O programa da BBC que anunciava os temas e disco mais ouvidos e vendidos no país chegou, no seu pico, a reunir perto de 20 milhões de telespectadores. Na equipa de quatro apresentadores originais estava Jimmy Savile, um tipo curioso de cabelo oxigenado e cuidadosamente penteado a fazer lembrar os famosos Oompa Loompas.
Em novembro de 1976, o apresentador de 50 anos despedia-se para a câmara, rodeado, como era habitual, de um grupo de jovens, todas elas mulheres. Ao seu lado direito, uma jovem loira de 18 anos, parecia inquieta, ria-se, agitada. “Podia habituar-me a isto”, dizia Saville com os olhos postos na câmara.
Mais de três décadas depois, a jovem loira voltava às televisões para contar o que acontecera mesmo em frente às câmaras, nessa tarde em 1976. “Senti a mão dele e saltei, mas voltei para onde estava porque não podia ir para lado nenhum”, explicou Sylvie Edwards, muitos anos depois do sucedido. A câmara estava a gravar, Sylvie e Saville estavam rodeados por dezenas de jovens. Não havia como escapar sem fazer um escândalo.
“Empurrei-lhe a mão mas ele não a tirava. Comecei a sentir-me envergonhada. Para onde é que eu podia ir?”, conta sobre o incidente que ficou registado pela BBC. No final do programa, aproximou-se de um assistente de câmara. “Contei-lhe que o Savile era um porco e que me tinha posto a mão por baixo da saia.” A resposta não foi a esperada: “Não sejas estúpida, é só o Jimmy Savile. Vá, sai da frente.”
Savile era uma figura pública com cada vez mais poder. O DJ continuou a fazer carreira na televisão, recebeu o título de Sir da rainha Isabel II e tornou-se numa das celebridades mais famosas do Reino Unido. Tornou-se intocável. Mas o verdadeiro escândalo só rebentaria depois da sua morte, em 2011, quando mais de quatro centenas de vítimas de violação e abusos sexuais vieram a público denunciar Savile — muitas delas menores à época, com idades até aos cinco anos. Era demasiado tarde para qualquer tipo de castigo.
Uma década depois, a Netflix conta toda a história macabra que foi sendo revelada nos últimos anos. “Jimmy Savile: Uma História de Terror Britânica” é um documentário que chegou esta quarta-feira, 6 de abril, à plataforma. Está dividido em duas partes e com um total de quase três horas de duração. A produção percorre toda a vida do DJ e apresentador e tenta perceber como é que foi possível manter um segredo destes escondido durante tanto tempo.
Classificado para maiores de 16 anos pelas referências de abusos a menores e violência sexual, o documentário tem chocado sobretudo os que desconheciam a história de Savile. Os relatos das vítimas levaram a que muitos utilizadores da plataforma pedissem à Netflix que retirasse o documentário do catálogo.
Como é que um pedófilo abusador conseguiu enganar, durante mais de quatro décadas, todo o público britânico? A realeza? Os políticos? Essa é a pergunta incómoda que todos continuam a fazer.
Das minas e na sucata — rumo ao estrelato
Nunca se aplicou nos estudos. Tinha apenas 14 anos quando deixou a escola para trabalhar num escritório, pelo menos até ao eclodir da II Guerra Mundial. Trabalhou nas minas de carvão, onde ficou ferido por uma explosão e, assim que recuperou, ao fim de três anos, encontrou emprego como sucateiro.
Chegou a tentar uma carreira no desporto, primeiro como ciclista, depois como lutador profissional. “Fiz 107 combates. Perdi os primeiros 35. Ninguém queria ir para casa e dizer que tinham sido derrotados por um DJ de cabelos compridos. Parti todos os ossos do meu corpo e adorei”, contou.
Por essa altura já tinha encontrado a sua paixão, a música. Nos anos difíceis da guerra, dedicou-se a levantar a moral dos compatriota com a música. Pegou num gira-discos e começou a ajudá-los a dançar. Rapidamente percebeu que podia fazer negócio e organizou a sua primeira festa. Havia apenas 12 pessoas na pista, mas surtiu efeito.
“Estava ali parado [a vê-los dançar] e senti uma espécie de, não é poder, não é controlo, é efeito. Um efeito incrível: o que eu fazia punha as 12 pessoas a fazer coisas diferentes. Se quisesse, punha-os a dançar de forma rápida, ou mais lenta, ou parar de vez. E recomeçar.”
Daí saltou para a rádio e, mais tarde, já na década de 60, tornou-se no apresentador de “Young at Heart”, um programa musical que serviu de antecâmara do enorme “Top of The Pops”. Em 1975, porém, surgiria o seu grande e verdadeiro êxito, “Jim’ll Fix It”, que se tornaria no programa com maior longevidade na televisão britânica — foi transmitido de 1975 a 1994. À sua frente, claro, Jimmy Savile, que todas as semanas recebia cartas de crianças a pedir para tornar realidade os desejos dos miúdos.
Savile era um tipo curioso. O seu penteado bizarro tornava-o inconfundível. As suas roupas também. Era habitual vê-lo a usar fatos de treino garridos, roupa com padrões animais, calças metalizadas. Se era excêntrico, tinha lugar no guarda-roupa do apresentador. Não era a figura que se esperaria ver ombro a ombro com as altas figuras do estado britânico — mas era isso que acontecia.
Recebeu o título de cavaleiro da rainha Isabel II e era regularmente visto ao lado de Margaret Thatcher — com quem terá passado mais de uma dezena de serões de Ano Novo — e outra figuras políticas, isto quando não era alvo de elogios do príncipe Carlos. Além de famoso, Savile cultivou uma figura excêntrica, mas bondosa. Usou a sua fama para angariar muitos milhões para causas nobres. Estima-se que, ao longo da carreira, esse valor possa ter chegado perto dos 50 milhões de euros. Os beneficiários eram sobretudo hospitais. Naturalmente, todos queriam ser vistos com Savile.
Os problemas de saúde e a idade avançada acabariam por apanhar o apresentador, que sofria de problemas cardíacos graves desde 1997. Foi encontrado morto na sua casa, em Leeds, em outubro de 2011. Tinha 85 anos.
Os abusos à vista de todos
O escândalo sobre os seus comportamentos sexuais teve início pouco depois da morte, no momento em que as denúncias começaram a chegar às mãos da polícia — e aos ouvidos da imprensa. No espaço de dois anos, foram abertos mais de 200 processos, alguns envolviam crianças a partir dos oito anos, vítimas de atos de indecência e, em casos mais graves, de violação e penetração.
Os anos seguintes trouxeram ainda mais denúncias chocantes: as vítimas de Savile tinham entre 5 e 75 anos. Muitas delas terão sido abusadas nos corredores e quartos dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde britânico, os mesmos que recebiam as doações milionárias do apresentador.
As denúncias estilhaçaram a imagem que o público tinha de Savile. Mas nem todos se deixaram enganar ao longo das décadas. Em retrospetiva, o caso torna-se ainda mais assustador. Pequenos comentários que então eram vistos como graças, à luz das provas que iam sendo divulgadas, transformavam-se em sinais de perigo. Um perigo que poucos detetaram. Poucos porque, como provou a investigação, muitos dos casos foram sendo escondidos e ignorados.
No seu programa “Jim’ll Fix It”, chegou a receber uma carta de um jovem que se propunha a ser ele próprio a “tratar” de Savile e a resolver os seus problemas. Numa nota final, pedia apenas que Savile não lhe fizesse cócegas. Noutra entrevista, dessa vez sobre a sua autobiografia, foi questionado sobre a falta de detalhes íntimos. “Se o fizesse, acabaria por passar 15 aninhos na prisão.”
A verdade é que só depois da morte e das consequentes denúncias é que casos mais antigos começaram a ser vistos com outros olhos. Alguns remontavam a 1963 e envolviam crianças e adultos, muitos abusados nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde britânico, alguns dos quais precisamente os que beneficiaram das ajudas milionárias do apresentador.
Nem todos se deixaram enganar por Savile. Os rumores circulavam por detrás de portas, embora, sem provas, poucos ousassem chegar-se à frente. Não foi o caso do desbocado vocalista dos Sex Pistols, Johnny Rotten, que em 1978 já se atirava ao apresentador. “Apetece-me matá-lo. Acho-o um hipócrita e aposto que está envolvido em todo o tipo de coisas sórdidas de que suspeitamos, mas sobre as quais não podemos falar. Conheço alguns rumores, mas aposto que nada disso virá a público.”
Em 1994, durante outra entrevista, foi finalmente confrontado com os rumores de uma vida de playboy. Mas Savile sabia sempre como contornar o tema. Para evitar que temas problemáticos pudessem surgir, puxou de uma banana do bolso e começou a comê-la em direto — e a desviar-se de todas as questões sobre a sua vida íntima e romântica.
Estima-se que, ao longo de décadas, mais de 400 pessoas tenham sido vítimas de assédio, abuso e agressões sexuais por parte de Savile. Muitas denúncias terão ficado por investigar e provar, mas o Serviço Nacional de Saúde britânico teve que pagar mais de um milhão de euros em indemnizações pelos abusos de doentes ao seu cuidado. Savile, esse, nunca será julgado.