Sorrisos, energia, danças estranhas e humor. É tudo o que as centenas na plateia e os milhões do outro lado da televisão esperam quando Ellen se senta no sofá do seu programa. Por detrás da alegria contratualmente exigida, há uma nuvem que paira e que foi revelada nos últimos meses. Afinal, dizem muitos dos que trabalham diariamente com a celebridade, Ellen não se desfaz sempre em sorrisos simpáticos. Há, dizem, um ambiente tóxico nos bastidores. E tal como nos bastidores, a própria vida da apresentadora está muito longe de ser uma história cheia de finais felizes.
Esta quarta-feira, 12 de maio, Ellen anunciou que, depois de quase duas décadas no ar, o seu programa vai acabar. Numa entrevista ao “The Hollywood Reporter”, Ellen revelou que tinha informado a sua equipa da decisão esta terça-feira, 11 de maio, e que explicará todos os contornos da saída numa conversa com Oprah Winfrey ,no seu programa, esta quinta-feira, dia 13.
A próxima temporada do talk-show diário, a 19.ª, será assim a última. O programa acaba com uma nuvem negra, que será mais uma marca negativa no seu percurso profissional e pessoal.
Os dias mais negros da atriz mantiveram-se em segredo até 2005, quando decidiu abordar o assunto pela primeira vez durante uma entrevista à “Allure”. Em entrevista à revista norte-americana, recordou como foi sexualmente abusada pelo padrasto, o que a obrigou a tentar fugir de casa por diversas vezes. Numa dessas ocasiões, foi mesmo forçada a “partir a janela e a saltar”. Acabou por passar a noite num hospital.
As investidas do padrasto começaram quando Ellen tinha 15 anos. À época, a mãe havia sido diagnosticada com cancro da mama e passava muito tempo fora de casa em tratamento. Foi a oportunidade ideal para os abusos.
“Dizia-me que sentia um papo nos meus peitos e que tinha de fazer uma apalpação”, recordou na altura e mais recentemente em entrevista a David Letterman, no especial da Netflix “O Próximo Convidado Dispensa Apresentações”.
“Eu não sabia nada sobre corpos, não sabia que os peitos eram todos diferentes. Seja como for, ele convenceu-me de que tinha de apalpá-los e depois fê-lo uma vez, e outra, e noutra ocasião ele tentou arrombar a porta do meu quarto. Eu fugi pela janela porque sabia que ele ia tentar alguma coisa”, conta.
Perante a doença, DeGeneres preferiu não contar à mãe o que tinha acontecido. “Nunca a devia ter protegido. Devia ter-me protegido a mim própria e só ao fim de alguns anos é que lhe contei tudo. Ela não acreditou em mim e manteve-se ao lado dele por mais 18 anos”, conta a apresentadora de 61 anos.
Só ao fim de quase duas décadas é que Betty, a mãe, percebeu que o marido teimava em contar a história sempre de forma diferente. No ano passado decidiu fazer um pedido de desculpas público à filha.
“Sei agora que uma das coisas mais difíceis de fazer é confessar que se foi sexualmente abusada. Amo a minha filha e desejava que tivesse tido a capacidade de a ouvir quando ela me contou tudo”, revelou, acrescentando que teria que “viver com o arrependimento”.
A confissão pública, explica a apresentadora, surge “porque é importante que as miúdas que andam por aí saibam que há diferentes formas de dizer não”, e que “se alguma vez isso acontecer, é essencial que contem imediatamente a alguém”. “Quero que elas nunca deixem que alguém lhes faça o que me fizeram”, concluiu.
“Estás muito vulnerável nessa idade, confias nas pessoas. E quando essa confiança é violada, ficas sem saber o que fazer e não queres dizer nada porque pensas: ‘Como é que isto aconteceu e como pude ser tão estúpida?’. Todas estas coisas que achavas que podias controlar e afinal não”, relembrou em 2018.
A história chegou a público em 2005, embora Ellen já a tivesse revelado no círculo mais íntimo, o que terminava repetidamente numa conclusão: “Ah, por isso é que és lésbica”. A apresentadora limitava-se a abanar cabeça. “Eu era lésbica bem antes disso. As minhas memórias mais antigas são precisamente ligadas a isso.”
Na confissão de 2018, Ellen também abordou o assunto de forma mais abrasiva, sobretudo dado o contexto social e político que se vivia nos Estados Unidos.
“Como vítima de abuso sexual, fico furiosa com as pessoas que não acreditam e que ainda questionam ‘como é que não te lembras do dia exato em que isso aconteceu?’. Não te lembras dessas coisas. O que te recordas é do que te aconteceu, onde estavas e como te sentias. É disso que te lembras”, explicou durante uma entrevista a Savannah Guthrie.
O trauma da morte
A saída do armário trouxe-lhe ainda mais problemas. O pai, Elliot, expulsou-a de casa quando Ellen assumiu a homossexualidade. “[A minha madrasta] tinha duas filhas pequenas e preocupava-se que eu as pudesse influenciar”, revelou em entrevista a Oprah Winfrey.
A lutar por uma carreira na comédia e a fazer circuitos amadores, acabou por conhecer uma das primeiras namoradas a sério, a poeta e gerente de um bar em Nova Orleães, Kat Perkoff.
A história de amor não durou muito tempo. Kate morreu de forma trágica, num acidente de viação após um concerto onde terá discutido com Ellen, à época com 21 anos. “A minha vida mudou (…) porque eu passei pelo acidente, tinha acabado de acontecer, mas eu não sabia que era ela porque estava com um carro diferente. Descobri mais tarde que era ela”, confessou num dos seus espetáculos de stand-up.
O choque deixou marcas profundas na apresentadora, além de um forte sentimento de culpa. “A banda do meu irmão estava a atuar e eu e a Kate tínhamos acabado — andávamos a discutir imenso. Ela estava a tentar convencer-me a voltar para casa e eu fingi que não a ouvia porque a música estava demasiado alta. Eu planeava regressar, mas estava a tentar dar-lhe uma lição”, recorda.
No regresso, chegou mesmo a avistar o carro partido ao meio, ainda sem ambulâncias por perto. As sirenes vinham logo atrás e decidiram rumar a casa sem parar. Foi quando percebeu quem ia naquele carro. “Fez-me sentir que devia ter ido para casa com ela nessa noite, ela não estaria com outra pessoa, que devia ter parado o carro. Todas essas coisas. Senti muita culpa.”
A depressão
“Yep, sou gay”, revelava o título da peça de capa da “Time” em abril de 1997. Ellen DeGeneres abalava a sociedade norte-americana, numa altura em que assumir a homossexualidade em público era um verdadeiro acontecimento mediático.
“Decidi que não queria viver o resto da minha vida com vergonha disto”, revelou poucos dias depois da publicação da revista. A saída do armário passou da vida real para a ficção. A personagem daquela que foi a primeira e mais importante vitória da carreira — o lançamento da sitcom “Ellen”, na qual era protagonista — também assumiu a sua homossexualidade.
Ellen era a primeira mulher assumidamente gay a interpretar uma personagem homossexual. Eram muitas estreias para uma sociedade norte-americana ainda a tentar lidar com o fenómeno.
Um ano depois, o programa foi cancelado e a vida de Ellen entrou numa espiral depressiva, muito por culpa das reações à sua revelação. “Porque se falava tanto disso, quase toda a gente estava saturada. Fiz a capa da ‘Time’, um especial em prime time com a Diane Sawyer e a Oprah. Até o Elton John disse:v ‘Cala-te com isso. És gay, já sabemos. Agora sê engraçada’. Nunca o conheci pessoalmente e pensei ‘mas que raio de apoio é este vindo de um gay?'”, revelou no podcast de Dax Shepard.
Sem agente e sem emprego, DeGeneres sentia que tinha perdido o rumo da carreira. “Era vista como um falhanço na indústria. Ninguém me tocava. Não tinha nada”, revelou.
A homossexualidade passou a ser tópico dos monólogos de outros comediantes nos programas nacionais, outros teciam considerações mais maldosas, mas para Ellen, todos os comentários se assemelhavam a ataques.
“Se já sentiram uma depressão, sabem que tendemos a isolar-nos e a não pedir ajuda. Não dizemos ‘estou a sofrer, preciso de ajuda’. Rastejamos ainda mais para o fundo do buraco negro e foi aí que fiquei durante um bom bocado”, confessou.
Eventualmente, a apresentadora começou a sentir-se mais confortável, até porque a saída do armário foi um momento de “total honestidade” consigo própria: “Isso deu-me confiança, algo que ajuda durante uma depressão, que tem tendência a destruir a confiança e acabas por ficar perdido nisso. Esqueces-te de que és perfeitamente suficiente tal e qual como és”.
Uma boa dose de anti-depressivos e muitas horas de terapia foram essenciais para que DeGeneres pudesse sair do tal buraco. “Nem acreditei quando consegui regressar daquele estado. Nem acredito até onde a vida me trouxe hoje”.