Filmes como “Barbie”, “Oppenheimer”, “O Senhor dos Anéis”, “Homem-Aranha”, “O Padrinho” e “Pulp Fiction” e séries como “Squid Game”, “Breaking Bad”, “A Guerra dos Tronos”, “Os Sopranos” e “Sherlock” numa só plataforma, sem pagar. Parece demasiado bom para ser verdade, e é mesmo. Também é ilegal.
Chama-se Stremio e vem na senda de muitos outros programas com boas intenções mas que acabaram por servir para proliferar a pirataria na Internet, do pioneiro Napster ao BitTorrent. A aplicação foi criada em 2015 por uma equipa sediada na Bulgária, liderada por Ivo Georgiev e Ivan Ivanov, sobre os quais pouco se sabe.
O que se sabe é que o serviço rapidamente se popularizou pelo mundo fora devido à facilidade de uso e à integração de projetos de várias fontes de conteúdo, umas vezes de domínio público e de livre acesso, outra vezes de plataformas pagas como Netflix, Max, Apple TV+, Disney+ ou Prime Video. E à primeira vista, tal como os seus antecessores, o seu uso parece perfeitamente legal.
“O Stremio é uma plataforma que funciona como um hub que agrega diversos filmes e séries e mostra em que plataformas de streaming esses conteúdos estão disponíveis. Quando o utilizador seleciona um filme que esteja disponível na Netflix, por exemplo, o aplicativo redireciona o utilizador para o streaming em causa”, explica Sara Rocha, advogada da CMS Portugal e especialista em Propriedade Intelectual.
Esta aplicação é um sucesso sobretudo nos Estados Unidos, onde a televisão por cabo começa a ser deixada de lado. E é também por isso que muitas televisões inteligentes surgem já com a aplicação instalada, tal como acontece em Portugal, particularmente nas boxes de algumas operadoras.
“A instalação do Stremio em boxes de operadoras ou em televisões inteligentes não é ilegal por si só. O Stremio é uma aplicação à partida legítima e que, pelo que verificamos das funcionalidades da plataforma, pode ser utilizada para aceder a conteúdos legais”, acrescenta a especialista.
O serviço não hospeda nenhum conteúdo, mas permite que sejam facilmente instaladas novas funcionalidades, em apenas dois ou três cliques, que essas sim fornecem conteúdos ilegais. Estas extensões, que podem ser oficiais ou criadas pela comunidade, fornecem acesso a diferentes bibliotecas de conteúdo. Algumas permitem aceder a serviços de streaming legítimos, como o YouTube e Vimeo, enquanto outros se conectam a repositórios de filmes ou séries.
Por detrás desta nova aplicação está uma velha tecnologia, o peer to peer. Isto é, a partilha de ficheiros diretamente entre utilizadores, neste caso através de torrents. Basicamente, quando escolhe ver um filme ou série que esteja disponível através de uma dessas extensões baseadas em torrents, o que acontece é que o ficheiro vídeo ilegal é descarregado em pequenas partes, através de outros utilizadores que o partilha. O Stremio une-as e reproduz o vídeo completo.
É precisamente aqui que começam os problemas legais. “O Stremio contém também add-ons que permitem aceder a conteúdo protegido por direito de autor, sem que o utilizador tenha que pagar para aceder, o que já será ilegal e à luz do novo Regulamento dos serviços digitais, o DSA, o Stremio poderá ser responsabilizado”, comenta Sara Rocha.
O uso destes ficheiros para aceder a conteúdo protegido por direitos de autor sem a devida autorização é considerado ilegal em muitos países, incluindo Portugal. “O facto de o conteúdo estar disponível na Internet não altera a legalidade do seu acesso”, avisa a advogada. Isto porque a disponibilização de conteúdos protegidos por direitos de autor sem a devida autorização é ilegal, independentemente de como ou onde esses conteúdos estão disponíveis. A utilização de torrents para aceder a esses conteúdos sem permissão continua a ser uma violação das leis de direitos de autor.
Dentro da União Europeia, Portugal tem demonstrado “uma ação limitada e até bastante passiva, não se mostrando suficientemente eficiente face à evolução tecnológica”. Sara Rocha garante que a pirataria é um dos crimes mais disseminados e relativizados na sociedade moderna. “Todos conhecemos alguém que a pratica ou praticou, de forma pontual ou regular, justificando tal comportamento com argumentos vazios de substância e com bastante naturalidade.”
Num estudo publicado pelo Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia, Portugal surge como o nono país da Europa que consome mais conteúdo pirateado. Esta-se que existem 288 mil pessoas com subscrição mensal de serviços ilegais em Portugal — e que a indústria audiovisual portuguesa perde, no mínimo, 200 milhões de euros anualmente devido à pirataria. A nível europeu, cerca de 17 milhões de pessoas utiliza serviços e sites ilegais de streaming. Entre estes, aproximadamente 5,9 milhões são jovens com idades entre os 16 e os 24 anos.
Os utilizadores que acedem a conteúdos protegidos por direitos de autor através de torrents podem enfrentar várias consequências legais, incluindo aplicação de coimas, cujos valores podem variar “dependendo da gravidade da infração e do número de conteúdos acedidos ilegalmente” e penas de prisão, que é reservada para “casos de distribuição em larga escala”. “A pirataria, além de ser um crime, traz consigo uma série de riscos e consequências que vão além das penalidades legais, afetando tanto os indivíduos quanto a sociedade como um todo.”
Em Portugal já houve alguns casos de processos judiciais relacionados com a utilização de torrents para aceder a conteúdos protegidos por direitos de autor. No entanto, nunca uma sentença decretou pena de prisão. A associada da CMS acredita que, em comparação com outros países da União Europeia, Portugal “tem um longo caminho a percorrer” e que este tópico “devia ser uma prioridade para qualquer governo”.
A legalidade da aplicação depende, então, de como é utilizada. Se usar add-ons oficiais ou fontes legítimas para consumir conteúdo, o seu uso é completamente legal. Em caso de uso de extensões de terceiros que disponibilizem filmes, séries ou outro conteúdo protegido por direitos de autor sem autorização, já pode ser considerado ilegal.
Ao contrário do que acontece com muitos sites e aplicações piratas, o Stremio não tem registos de uso de software malicioso e perigoso para os utilizadores, uma das razões pelas quais a plataforma de tornou tão popular. Além disso, também se tem destacado graças ao sistema de calendário para acompanhar novas temporadas e episódios, legendas em inúmeros idiomas, como português, e o facto de estar disponível em vários aparelhos, como televisões, smartphones e tablets.
Mas afinal, como é que uma aplicação gratuita como esta se sustenta? Ivo Georgiev e Ivan Ivanov são também os fundadores da AdEx, uma empresa de anúncios que, de forma “não intrusiva”, tem publicidade presente na aplicação. Além disso, alguns dos add-ons oficiais também podem ser promovidos no serviço em troca de uma parceria financeira.
Carregue na galeria e conheça algumas das séries e temporadas que pode ver em janeiro nas plataformas de streaming e nos canais de televisão.