A Netflix faz das suas estatísticas de visualização uma espécie de segredo. Mas no início de 2020, decidiu abrir o jogo e lançar na plataforma um top 10, atualizado diariamente, que mostraria quais os conteúdos mais vistos pelos assinantes. Havia, finalmente, uma forma de espreitar o funcionamento secreto da máquina multimilionária da plataforma. Será que é mesmo isso?
Na maioria dos dias, o top é previsível, com as produções recentes a saltarem para a lista das mais vistas. Sem surpresa, a sua maioria são produções originais da Netflix. Só que ocasionalmente, alguns intrusos parecem rasgar convenções e saltar para lugares de destaque, sem que se perceba bem porquê.
Esta quinta-feira, 8 de abril, esse papel coube a “Blackhat”, filme de 2015, realizado por Michael Mann e com Chris Hemsworth no papel principal. Além de ter estreado há mais de seis anos, o thriller de ação sobre pirataria informática foi alvo de críticas corrosivas. O mesmo aconteceu com “Ronaldo”, o documentário de 2015 sobre o craque da bola.
O fenómeno acontece um pouco por todo o planeta. Em fevereiro, o “The Guardian” assinalava a subida ao top de “flops esquecidos” e de “pesadelos da crítica”, notando que tudo isto fazia parte do plano da Netflix.
A estratégia, revela o diário britânico, passa menos por rentabilizar grandes produções e mais por obrigar os espectadores a passarem mais e mais tempo agarrados ao ecrã — seja qual for a série ou filme, a sua qualidade ou sequer a data de estreia. É o segredo do algoritmo e da inteligência artificial.
Sabe-se, desde o arranque, que muita da dinâmica da plataforma assenta na enorme quantidade de dados que a Netflix recolhe sobre cada utilizador, bem como a forma como usa esses dados. Segundo a “Wired”, que cita o vice-presidente de inovação da empresa, esses dados assentam numa estratégia tripla: os hábitos de consumo dos assinantes, o que estão a ver a cada momento; as tags associadas a cada programa, criadas por uma equipa que vê tudo o que está na plataforma e depois os categoriza; e um algoritmo que compila tudo isto para fazer previsões normalmente certeiras.
Tudo isto funciona como uma engrenagem altamente especializada com dois objetivos que na verdade são apenas um: oferecer aos espectadores conteúdos que combinem com os seus gostos ou disposições, seja a que hora do dia for; e a tentativa de os forçar a não desligarem o ecrã.
O mais inesperado é que regularmente, o algoritmo acaba por sugerir uma programação que pode não estar relacionada com os géneros que costumamos consumir — mas que, adivinha o algoritmo, poderemos gostar. E é esse efeito que pode explicar a ascensão de produções antigas ou até de qualidade duvidosa. Entre toda esta aparente estratégia de adulteração de resultados pode estar uma verdade absoluta: o que julgamos que poderão ser os conteúdos que os espectadores vão consumir — blockbusters recentes, séries de culto — podem não coincidir com o que realmente as pessoas veem.
Chamam-lhe o efeito Netflix, que consegue fazer renascer séries antigas e dar-lhes um novo fôlego. Aconteceu, por exemplo, com “You”, que foi transmitido na televisão norte-americana sem grande sucesso, mas que explodiu assim que chegou ao catálogo da plataforma.
A presença dominante de produções originais da Netflix no top 10 é quase um dado adquirido. Mas a explicação poderá não estar na natural tendência para a empresa destacar de forma mais firme os seus produtos próprios.
É que a enorme máquina de dados dá aos responsáveis pelas produções uma valiosa vantagem: o que vemos irá então ter um peso decisivo no momento de dar luz verde a séries e filmes produzidos pela Netflix. Pode, até, influenciar o processo de criação logo desde o primeiro momento, com argumentos a serem criados para satisfazerem as necessidades dos espectadores.
“Por cada produção de prestígio como ‘Marriage Story’ [que valeu seis nomeações e um Óscar] há um ‘As Arrepiantes Aventuras de Sabrina’: um remake sexy e adolescente que combina canibalismo, adoração do Diabo e patricídio com atos de dança inspirados em teatro juvenil”, nota o “The Guardian”.
Aos poucos, os críticos notam características transversais a estas produções que, sem encantarem a crítica, parecem encontrar um (enorme) nicho na Netflix que os atira recorrentemente para uma posição duradoura no top 10. É o caso de “Emily in Paris”, descrita como uma série de “televisão ambiente”, que acaba por ser “lenta e monótona”, mas que parece inevitavelmente agarrar a atenção dos espectadores, mesmo que nunca brilhe — ou desiluda.
“Há uma década, os programas precisavam de nos manter interessados de forma a assegurarem uma audiência na semana seguinte, entre episódios. Nesta nova economia do tempo — e da cuidadosa arte de não interromper a fluidez da coisa —, ter a capacidade de nos fazer dormitar em frente ao ecrã pode ser tão valioso como a qualidade cinematográfica”.