Quando tinha 30 anos, Ann Dowd — que interpreta a perversa Tia Lydia em “The Handmaid’s Tale” — ainda não era uma atriz famosa. Trabalhava como empregada de mesa para pagar as contas, enquanto não realizava o sonho de se sustentar apenas com a representação. Certo dia, estava a caminho do emprego quando viu um cartaz com a estreia do filme “Lembras-te da Última Noite?“, de 1986. A protagonista era Elizabeth Perkins, sua antiga colega de escola.
Naquela mesma noite, Ann Dowd perguntou a si mesma: “Quando? Quando será a minha vez?” E uma voz interior disse-lhe que tudo ficaria bem quando a atriz chegasse aos 56 anos. Foi o que contou Ann Dowd no evento Women of The Year Summit, da revista “Glamour”, em novembro de 2018.
Exatamente quando tinha 56 anos foi convidada para participar no filme “Obediência” (2012) e viu a sua carreira profissional mudar completamente. Na série “The Leftovers” — disponível na HBO Portugal — interpretou Patti Levin, a líder extremista de uma seita religiosa e recebeu uma nomeação para um Emmy pelo papel.
Em 2017, aceitou o convite para viver a personagem Tia Lydia em “The Handmaid’s Tale”, a governanta assustadora que serve o regime totalitário de Gilead e que faz de tudo para controlar as aias — na história, as poucas mulheres que ainda são férteis, depois de um desastre natural ter acabado com a possibilidade de a maioria ter filhos, são uma espécie de escravas — com rédea curta. Com a série, conquistou o prémio de Melhor Atriz secundária nos Emmys de 2017.
Sem mecanismos de defesa na hora de interpretar uma personagem que o público despreza, a atriz conseguiu transformar Tia Lydia em alguém extremamente cruel, mas verdadeiramente humana. Apesar de todo o sucesso, Ann Dowd revelou em diversas entrevistas que o seu caminho profissional foi muito mais complicado do que poderia imaginar.
O início de tudo
Aos 30 anos, Ann Down dividia-se entre a carreira de atriz e o trabalho como empregada de mesa, na zona de Chicago. O uniforme era uma camisa branca, calções pretos e uma gravata. Numa das vezes em que fazia o caminho para o trabalho, viu várias limusines estacionadas diante de um cinema. Era a estreia do filme “Lembras-te da Última Noite?”, com Elizabeth Perkins, uma antiga colega de escola.
“Eu ia servir mesas, enquanto ela estava a caminho da estreia do filme que a lançaria para o sucesso. Quando o meu turno acabou e fui para casa, chorei e gritei: ‘Quando? Quando será a minha vez?’ Foi uma daquelas noites sombrias — com que todos estão familiarizados—, tenho a certeza. E uma voz, provavelmente uma voz interior, disse: ‘Tudo vai ficar bem. Tudo vai ficar bem e tu estarás com uns 50 anos. Vais ter 56 anos’.”
Apesar de não ter a menor intenção de esperar mais de 20 anos para alcançar o sucesso, e de ter feito inúmeros filmes durante esse tempo, a atriz disse que foi apenas quando tinha 56 anos que viu a sua história mudar. A revelação foi feita no evento Women of The Year Summit, da revista “Glamour”, em novembro de 2018.
Uma fé inabalável
Em entrevista ao site “ARRP Real Possibilities”, a atriz revelou que nunca teve um plano B. Aos 35 anos, estava grávida do primeiro filho e trabalhava numa pet shop, mas nunca pensou em desistir do sonho de ser atriz.
“Nunca me permiti pensar nisso. Tive momentos em que fui traída pela depressão, mas pensava: ‘Tens de sair desta, porque isto não está a ajudar.’ Eu tinha uma fé inabalável de que estava a fazer o que estava destinada a fazer”, contou.
Quando escolheu a atuação como profissão, foi questionada pela avó católica se isto não deveria ser apenas um hobby. “Eu disse-lhe: ‘Mas avó, este é um dom que Deus me deu.’ Ela disse: ‘Estás absolutamente certa. Eu compreendo’.”
Os papéis disponíveis
Consegue citar cinco filmes em que Ann Dowd participou? O número não é pequeno, mas a verdade é que a atriz se entrega de tal forma às personagens que muitas vezes não é reconhecida pelo público.
Em entrevista à publicação “AARP Real Possibilities”, disse que tem muito mais oportunidades agora e que não precisa de interpretar apenas papéis de avós: “Não há nada de errado nisto, mas interpretar uma mulher independente em busca da própria vida e do que é significativo para ela é um grande privilégio e por isto estou tão ligada a Lydia.”
São trabalhos como este que permitem que a atriz sustente os filhos (são três) sem se preocupar. “A minha filha do meio (Emily) é uma finalista do curso de teatro clássico. O meu filho mais novo (Trust) tem 14 anos e quer ser ator. Eu não me envolvo nisso, apenas digo que precisa de treinar. Já o meu filho mais velho (Liam) mora numa fazenda para adultos com necessidades especiais (ele é autista). Não quer ser ator, prefere ser oleiro”, revelou Ann Down.
A religiosidade
Dowd era uma das sete crianças de uma casa católica de origem irlandesa criada em Massachusetts, nos Estados Unidos. Frequentou uma escola católica e foi educada por freiras que costumavam discipliná-la, mas também a ensinaram a respeitar o outro, a ter responsabilidade e gratidão.
Durante uma entrevista à revista “Vanity Fair“, a atriz recitou uma oração que acredita definir a sua personagem em “The Handmaid’s Tale”: “Confie no Senhor de todo o seu coração e não se apoie no seu próprio entendimento. Reconheça o Senhor em todos os seus caminhos, e ele endireitará as suas veredas.” Uma clara demonstração da sua educação religiosa.
Aos olhos de Dowd, Lydia sofre tanto quanto as servas e é como um pastor que tenta desesperadamente levar o rebanho em segurança, porque se ela falhar, todas serão mortas nas colónias.
O amor pela Tia Lydia
Quando questionada sobre o que sente em relação à Tia Lydia, a temida educadora da sociedade distópica de “The Handmaid’s Tale”, Ann Dowd diz que a ama. Apesar de a personagem forçar as mulheres a fazer sexo, marcá-las como gado e mutilar aquelas que saem da linha, aos olhos da atriz há muito mais na personagem do que isto.
Dowd reconhece toda a dor que a autoritária Tia Lydia causa às aias, mas diz que aprendeu a não a julgar. “Você aprende desde o início, como em qualquer relacionamento, que se julgar não haverá um relacionamento. Fiz um pacto tácito com a personagem. ‘Eu não vou julgar. Por favor, fala-me de ti e diz-me o que puderes'”, explicou na publicação da “Vanity Fair”.
No último episódio da segunda temporada, Emily — a aia sem um olho — esfaqueou Lydia e fê-la rebolar pela escada, mas a personagem não morreu e está de volta este ano. O produtor Warren Littlefield disse ao site “Entertainment Weekly” que o incidente serviu para transformá-la.
Dowd acredita que a personagem segue estritamente as regras de Gilead para manter todos em segurança, por medo de perder o controlo de si mesma. O estilo de vida monástico e solitário faz com que ela tenha uma devoção distorcida em relação às criadas.
Como uma aia rebelde, Offred (June, na vida real) representa uma grande esperança, mas também um dos medos mais profundos de Tia Lydia. O facto de ela não ter previsto a rebelião, abala-a ainda mais e deixa-a ainda mais dura com a filha pródiga. Mas mesmo sob toda a agitação e trauma, segundo Dowd, Lydia vê June como uma filha.
Na terceira temporada, que estreia dia 6 de junho em Portugal com episódio triplo, os espectadores vão conhecer em flashbacks o passado da governanta e ter uma ideia mais clara do motivo pelo qual ela se tornou assim.
“A chave de tudo estará na primeira infância dela”, contou a atriz ao site brasileiro “UOL”.
Os novos episódios de “The Handmaid’s Tale” vão ficar disponíveis no serviço de streaming NOS Play, em Portugal. Com o tema “Blessed be the fight” (“Abençoada seja a luta”, em tradução livre), a narrativa é conduzida pela resistência de Offred ao regime distópico de Gilead, no qual os Estados Unidos como os conhecemos atualmente desaparecem e são substituídos por uma ditadura.