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Argumentista de “Rabo de Peixe”: “Os locais contaram-nos muitas histórias exageradas”

Hugo Gonçalves foi um dos elementos que escreveram o primeiro grande sucesso nacional na Netflix. À NiT, fala sobre o processo e o choque entre realidade e ficção.
Hugo Gonçalves foi um dos cinco argumentistas

Autor de vários romances, tem formação jornalística e chegou mesmo a trabalhar como editor literário. Entre crónicas e livros, virou-se também para as séries e filmes. As suas criações já tinham até chegado à Netflix, através de “Até Que a Vida Nos Separe”, que embora não se tratasse de um original da plataforma, acabou por ser comprada e inserida no catálogo. Mas poucos trabalhos receberam tanta visibilidade como o mais recente, “Rabo de Peixe”, a segunda produção nacional original para a Netflix, onde foi escolhido a dedo pelo criador e realizador açoriano Augusto Fraga.

Hugo Gonçalves juntou-se a uma equipa de cinco escritores, completa com João Tordo, Fernando Mamede e Francisco Lopes. Viajaram até Rabo de Peixe, consultaram arquivos, falaram com os locais e absorveram toda a informação disponível, dos registos escritos e da sabedoria dos micaelenses — Fraga e Lopes são açorianos de gema.

Contudo, para o autor nascido em Sintra, há 46 anos, mais importante do que ser fiel aos acontecimentos, era crucial contar uma boa história — sempre, claro, respeitando as raízes e a razão de ser dos açorianos. A combinação revelou ser um sucesso, com a série que estreou a 26 de maio a chegar aos tops das produções mais vistas na Netflix em mais de três dezenas de países.

É um primeiro grande passo para a produção nacional nesta nova era do streaming, mas “há ainda muito a fazer”. Resta saber se o próximo passo dependerá de uma nova produção — ou de uma continuação desta aventura por terras açorianas.

Como é que acabou na sala de escritores de “Rabo de Peixe”?
O Augusto Fraga ganhou o concurso da Netflix e começou a formar equipa de guionistas. Julgo que já tinha ouvido falar de mim por outras pessoas, pelos meus livros, outras séries. Acho que a Daniela Ruah, que tinha lido um guião meu para outro projeto, falou-lhe de mim quando ele lhe perguntou sobre se conhecia guionistas. As duas coisas juntaram-se e acabaram por me escolher. Na sala de escritores estavam também o João Tordo, o Fernando Mamede, realizador, e o Francisco Lopes, açoriano, micaelense, que nos ajudou muito a nível criativo. Sempre que atirávamos algo fora, ele dizia: não, isso nos Açores não passa. Era uma dinâmica engraçada. Fizemos a escrita toda na pandemia, remotamente. Olhando para trás, foi tudo muito divertido. Partimos muita pedra, discutimos muito, houve muita risota e acho que isso se nota pelo humor na série.

Passaram muito tempo em Rabo de Peixe, entre os locais?
Sim. Acho sempre muita graça aos que dizem que escrevemos tudo a partir de Lisboa. Não estão informados. Não só o Augusto e o Francisco são açorianos, como o João e eu somos pessoas que não escrevem de cor. Eu tenho formação jornalística, tenho uma relação íntima com a ilha, organizei lá muitos anos um festival literário. Claro que visitámos Rabo de Peixe, falámos com as pessoas, até com o Sandro G [famoso rapper da vila, radicado nos EUA e interpretado na série por Romeu Bairos]. Eu próprio tenho uma prateleira cheia de livros sobre os Açores. Até consultámos um dicionário do calão e do falar micaelense. Tivemos acesso a todo o processo da polícia e do tribunal. Lemos tudo de uma ponta à outra.

Mas é um trabalho de ficção.
O facto de nós estarmos interessados não só na história — houve coisas factuais que deitámos fora porque não interessavam do ponto de vista dramático —, mas também na açorianidade, isso percebe-se na série. Não é uma série só sobre o folclore e a região, mas sobre a insularidade, as questões culturais como a religião, a fricção com os continentais, o descaso que houve do continente com os Açores. Há uma conversa do secretário regional com a inspetora da Polícia Judiciária onde ele diz que “foram precisos mais de 400 anos para um rei ir pela primeira vez aos Açores”. E isso é verdade. A natureza, os terramotos, está tudo presente. Tudo o que nos interessava do ponto de vista dramático, usámos. Usámos tudo o que respeitava a cultura dos Açores e servia à dramaturgia.

Por exemplo?
Há um detalhe que pode ser spoiler, mas é exemplo do cuidado que tínhamos. Numa das situações, era preciso esconder a droga num local e eu sugeri um poço. O Augusto [Fraga] disse-me logo que não havia poços em São Miguel, que tinha que ser algo que fizesse sentido. E essa coisa aparece na última cena no último episódio. Qualquer pessoa que tenha ido a São Miguel já viu isso. Era importante para nós usarmos essas coisas, coisas locais. Também podemos ver isso no Eduardo, a nível da personagem, dos seus conflitos internos. É um tipo que quer ir para a América, procura o visto. Mas qual é o açoriano que precisa de visto para ir para os EUA? Décadas de açorianos que foram e que não precisaram. Ele só está a arranjar uma desculpa porque não quer deixar o pai. E logo no primeiro episódio vai ao hospital com o pai e é desconsiderado. Quando as pessoas de Rabo de Peixe vão a Ponta Delgada, apesar de ser tão perto, sentem-se deslocadas. Queríamos deixar isso claro apesar de isto não ser um documentário, uma reportagem. Não é ativismo, ativismo é outra coisa. A ficção pode servir para despertar consciências, mas não é a isso que se propõe.

Não deixa de haver uma história dramática e verídica que inspira a série. Um evento que marcou e marca toda uma comunidade.
Temos imensas histórias sobre o que aconteceu nessa altura. Há uma frase que sintetiza bem o que aconteceu naquele dia e que nos foi dita pelo Sandro G, que na série é colocada na boca do Eduardo: que em 2001 houve dois tipos de pessoas quando a droga chegou, as que usaram a cabeça e as que usaram o nariz; as que usaram a cabeça estão ricas e as que usaram o nariz já cá não estão. [Os locais] contaram-nos muitas coisas, histórias exageradas como as sardinhas panadas com coca, a dois irmãos que andavam a consumir cocaína com a intravenosa a pingar. Mas há uma que é verdade, passou na RTP, um tipo com uma jarda gigante que se tentou suicidar ao saltar de um telhado. Consultámos imensas reportagens da época no arquivo da RTP, ouvimos histórias de como é que algumas pessoas arranjaram métodos para traficar. Isso interessava-nos para termos noção do que aconteceu, mas só usámos o que interessava. Nunca quisemos fazer um documentário.

Mas é uma história rica em detalhes.
Há uma frase que gosto muito do Tolstoi, que diz que “a partir de certa idade, basta-me ver uma porrada na rua para começar a escrever um romance”. É um bocado isso. A premissa foi o que aconteceu e há elementos tão coloridos e que dão tanto jeito à história, como o da coca vendida em copos de plástico, que nós usámos. Mas o mais importante é ter um enredo que funcione, ter personagens com profundidade, que as pessoas tirem algo mais daquela história além da ação.

É então natural que se pondere, afinal, onde é que termina a ficção e começa a realidade. E vice-versa.
Um dos princípios da ficção é de que não interessa se aconteceu, tem é que parecer verdade. Já aconteceram coisas na minha vida que nunca colocaria num livro porque soariam a disparate. Lembro-me que houve o caso real da fuga da prisão do traficante italiano, que simplesmente saltou o muro [da prisão de Ponta Delgada] Quando vimos isso, achámos um bocado absurdo usar. Para uma série destas não fazia sentido. Mas depois pensámos que esta é uma série sobre amadores. Os gajos que começam a traficar droga e não sabem nada. Chegámos a fazer um exercício entre nós: se nós os cinco encontrássemos droga e íamos traficar, não fazíamos ideia do que fazer, iríamos cometer imensos erros. Essa fuga da prisão em 2001, não diria que foi amadorismo, mas foi algo muito rústico, simples, sem glamour. Ele de facto saltou o muro. E depois os polícias não dispararam porque havia muita gente na marginal e não queriam acertar em quem passava. Nós usámos isso na série. Aliás, o título desse episódio é a frase que um polícia disse na altura numa entrevista: “Ninguém foge de uma ilha”. O que ele estava a querer dizer é que ele saltou o muro mas não iria muito longe. Também quisemos que os polícias não fossem aqueles génios brilhante da maioria das séries. Queríamos que fossem humanos, não incompetentes, mas pessoas que cometem erros, que não estão atentas a tudo.

Sendo uma produção original para a Netlix e que iria naturalmente beneficiar do alcance da plataforma, preocuparam-se em tornar a série mais universal? Mais apelativa para um público mundial? Procuraram a tal fórmula de sucesso da Netflix?
Nunca. E se há uma fórmula, porque é que há tantas séries que têm ainda mais dinheiro e que não são um sucesso? O único compromisso que tínhamos era como íamos contar a história da melhor maneira que sabemos, sendo fiéis à forma como a queríamos contar. Como romancista, se te pões a pensar no que vais dizer à audiência, no que ela vai pensar, isso é a morte do artista. Lidamos com muito ruído, que eu evito. Há muitos elogios exagerados e muitas críticas exageradas. Tens que fazer como na patinagem ou no mergulho e retirar a pontuação mais alta e a mais baixa e ficas com a do meio. Porque o melhor disto é o processo. Os meses que passei a escrever valem muito mais em termos de gozo do que vem a seguir. Este sucesso da série ser vista em dezenas de países é só um bónus.

É realista poder esperar uma segunda temporada?
Não faço a mínima ideia, ninguém faz. Essa é uma decisão da Netflix. A série acaba de uma forma que do ponto dramatúrgico, sim, é possível fazer uma segunda temporada. Pensámos sempre na melhor forma de fechar a história, nunca no que poderia vir a acontecer. Se depois coincidir com a possibilidade de um segunda temporada, melhor ainda.

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