Durante dois longos anos, o realizador britânico James Jones vasculhou o mundo à procura das cassetes perdidas que mostravam os horrores do acidente de Chernobyl. Ironicamente, apesar de o regime soviético ter feito tudo ao seu alcance para esconder todos os detalhes, também promoveu o registo em vídeo de tudo o que ia acontecendo.
Se na incrivelmente bem-sucedida minissérie de 2019, assistimos à recriação dos acontecimentos, agora, em “Chernobyl: The Lost Tapes”, podemos ver tudo com os nossos próprios olhos, através das gravações feitas pelos homens e mulheres que, de alguma forma, se viram mergulhados num desastre de proporções épicas. 36 anos depois, muitas das imagens são vistas pela primeira vez.
A produção da HBO contou com a ajuda preciosa de James Jones que, curiosamente, é fluente em russo — uma aptidão que se revelou bastante útil, no momento de rever horas e horas de gravações, algumas amadoras, outras oficiais. Conta também com a participação de várias testemunhas, das crianças que, à época, continuaram a frequentas as aulas apesar de estarem mergulhadas numa nuvem de radiação, aos trabalhadores que foram para a linha da frente de limpeza, sem qualquer noção do perigo que enfrentavam.
No terreno, os especialistas temiam enviar más notícias para Moscovo. No Kremlin, a cúpula permanecia desinformada e indiferente aos potenciais riscos — a prioridade era a propaganda, convencer o povo de que as notícias de desastre vindas do ocidente não passavam de pânico exagerado para deixar mal visto o governo soviético. Enquanto todos se preocupavam com questões menores, a radiação propagava-se e deixava as suas marcas fatais que perdurariam durante décadas.
“É tudo tão estranho e contraintuitivo”, revela Jones. “Estavam a tentar encobrir o desastre ao mesmo tempo que filmavam tudo. Acho que acreditavam que seriam capazes de controlar todo esse material.” Claramente, o objetivo falhou e hoje, essas cassetes são reveladas num documentário com pouco mais de uma hora e meia. A estreia acontece na HBO Max, esta quinta-feira, 22 de junho.
Nestes frames nunca antes vistos, espelha-se a realidade de várias testemunhas que colaboram com Jones para a realização do documentário. Entre elas, muitos dos civis que viviam na região de Pripyat. “No fim de semana a seguir ao acidente, é possível ver pais a passearem nos parques com os carrinhos de bebé, até casamentos”, explica o realizador.
“Começamos gradualmente a reparar que as filmagens tinham uns flashes brancos, que depois percebemos que foram provocados pelos níveis extremamente altos de radiação. E, ainda assim, as pessoas estavam completamente alheios ao perigo.”
“O inimigo estava por todo lado, a toda a hora, mas era invisível”, recorda um dos sobreviventes no documentário. Mas há uma sobrevivente que, quem assistiu à minissérie “Chernobyl”, vai reconhecer. O seu nome? Lyudmila Ignatenko.
Ignatenko é a viúva de um dos primeiros bombeiros a chegar à central nuclear para combater o fogo provocado pela explosão num dos reatores. É também uma das histórias centrais da série da HBO.
De acordo com Jones, a fama súbita provocada pela série de 2019 obrigou-a a refugiar-se da imprensa. Ainda assim, o britânico conseguiu convencê-la a emprestar a sua voz e testemunho ao documentário.
É Ignatenko quem descreve os horrores dos ferimentos provocados pela radiação no marido, as queimaduras, as dores. “A Lyudmila sofreu o equivalente a dez vidas, mas ela é o coração do filme”, conta Jones, que a acompanhou num regresso à sua antiga casa, ainda intacta na zona de exclusão.
Um dos maiores tesouros da coleção de Jones é uma série de horas de gravações que conseguiu desvendar em Kiev. Nelas, é possível ver os bastidores da operação dos controladores da central, enquanto tentam usar um robô operado remotamente para remover o grafite radioativo do telhado do edifício.
Num dos momentos mais dramáticos — na série, bem como no documentário —, o robô deixa de funcionar devido à fortíssima radiação no local. É também nesse momento que os controladores vêm falhar a derradeira solução para o problema. A partir daí, só tinham uma alternativa: enviar homens ao telhado para retirarem o material com as suas próprias mãos. Um trabalho potencialmente fatal.
“É possível perceber que aquela era a sua última esperança de não terem que ir lá cima eles próprios”, nota Jones. As imagens acompanham também essa perigosa operação, onde é possível ver civis e militares, nervosamente a prepararem-se para a tarefa.
“Eles motivam-se uns aos outros, dizem que a radiação não é nada de mais. Como um sobrevivente nos disse: ninguém sabia que iam literalmente para o inferno.”
Outro dos momentos-chave do documentário reside nas imagens do impacto do desastre nos meses e anos que se seguiram. Nas maternidades, os bebés de Chernobyl nascem com mutações provocadas pela exposição à radiação. Em certos casos, a taxa de certas mutações era, na região, o dobro da normal.
Apesar do encobrimento governamental, o povo percebeu que tinha sido alvo de uma mentira e o governo de Mikhail Gorbachev ficou em maus lençóis. Era impossível desmentir os casos de deformidades em bebés, as doenças fatais e os cancros provocados nos inúmeros trabalhadores e moradores de Pripyat. Foi Gorbachev quem, mais tarde, definiria o desastre de Chernobyl como a “real causa” do colapso da União Soviética.