A cena abre a preto e branco, nostálgica, ao som as vozes abafadas das bandas americanas dos anos 30. O cenário é uma loja de centro comercial, onde Gene Takavic prepara os rolinhos de canela para servir aos clientes. “Morada desconhecida, de ti, nem um sinal”, cantam os The Ink Spots.
Gene, o gerente, é uma cara conhecida para quem embarcou na gloriosa aventura de Vince Gilligan e do seu “Breaking Bad”. Nem o bigode esconde a identidade: é Goodman, Saul Goodman. A primeira cena leva-nos até ao futuro do advogado que foi obrigado a deixar toda a vida para trás e assumir uma nova identidade.
A fotografia acutilante, a atenção ao detalhe e as mensagens subliminares repetem-se a cada início e fim de temporada de “Better Call Saul”, o spin-off de “Breaking Bad” focado na querida personagem interpretada por Bob Odenkirk.
Esta terça-feira, 19 abril, a tradicional abertura a preto e branco irá acontecer pela última vez, na estreia da sexta e última temporada da série. Regressa no formato de duas partes, com o segundo lote de sete episódios a voltar a 11 de junho.
Não foi fácil convencer os fãs de “Breaking Bad” que, após a imprevisível alucinante viagem de cinco anos pelo mundo de Walter White, nos deveríamos entreter com um spin-off do cómico e astuto Saul Goodman. Seria uma comédia? Teria material para repetir o êxito da série de Gilligan e Peter Gould?
Os primeiros episódios de uma série são sempre o momento mais delicado de qualquer longa produção deste género e Gilligan tem o péssimo hábito de optar pelos slow burners — e esquecer os momentos de gratificação instantânea. Num mundo onde as séries são descartadas às pazadas logo à primeira temporada, é um negócio arriscado.
“Better Call Saul” lança-se novamente na criação de um mundo muito próprio. Só que neste mundo, não partimos de uma premissa entusiasmante, como é a de um professor a braços com uma sentença de morte e uma ideia louca de se transformar num traficante de droga.
O homem que nos é apresentado chama-se Jimmy McGill, um advogado novato, nostálgico e arrependido dos seus tempos de juventude onde, apelidado de Slippin’ Jimmy, ganhava a vida com burlas e desfalques. Redimido, dedicou-se a uma nova vida sob a proteção do irmão, Chuck, um prestigiado advogado.
Ao contrário de Walter, a nova personagem principal de Gilligan traz consigo muito mais bagagem. É uma arma poderosa: ele é simultaneamente Slippin’ Jimmy, o burlão; McGill, o idealista advogado à procura da redenção; Saul Goodman, o justiceiro populista; e Gene Takavic, o solitário e paranoico gerente de uma loja de doces.
Bob Odenkirk é, nestes papéis, tão ou mais talentoso do que Bryan Cranston — e permite que a série nunca caia na vulgaridade. O ritmo lento a que se move, sobretudo durante as duas primeiras temporadas, é deliberado. É a mesma armadilha que Gilligan usou para nos agarrar em “Breaking Bad”.
Com muito menos ação, “Better Call Saul” dobra a aposta no desenvolvimento das personagens, daquelas que já conhecemos — há regressos de Mike Ehrmantraut e Gus Fring — mas também de novas personagens como Kim Wexler, a advogada que se apaixona por Jimmy, e Nacho Varga, o traficante que se vira contra os seus patrões.
Cada decisão é justificada, deliberada, cuidadosamente ponderada. A história monta-se nos detalhes. Achamos que já vimos personagens como Saul, Mike e Fring no seu auge, em “Breaking Bad”, que sabemos quem são — mas Gilligan e Gould provam que são exímios a criar novos caminhos.
É graças a este ritmo lento que cada personagem se torna mais credível. Torna-se mais fácil investir emoções nos dramas de cada um e, quando eles eventualmente atingem os pontos de ebulição, é impossível não sofrer, não reagir. Nos seus melhores momentos, “Better Call Saul” leva-nos a uma montanha-russa de emoções, à semelhança das cenas mais bombásticas de “Breaking Bad”.
Gilligan e Gould quiseram elevar a fasquia. “Querem ver-nos fazer o mesmo que fizemos em ‘Breaking Bad’, mas agora na salas do tribunal?” E fizeram-no.
Claro que “Better Call Saul” não foge aos temas que tornaram a sua série de origem num êxito. Continua a ter os cartéis e os seus impiedosos traficantes — atenção a um senhor chamado Lalo —, as burlas, os momentos cómicos e as fatalidades.
Em muitos aspetos, o spin-off aperfeiçoou a fórmula de “Breaking Bad”. A fotografia está mais criativa e pensada. As personagens estão mais robustas. A atenção e dependência do detalhe é tanta que, por vezes, se torna irritante a necessidade de ver, rever e repetir até que as peças se montem e o puzzle fique a descoberto. Mas é também isso que a torna mais gratificante.
Um feito ainda mais notável numa série que vive em quatro dimensões de Jimmy McGill e em três linhas temporais: no passado de “Breaking Bad”, o auge de Saul Goodman; no futuro negro e paranoico de um fugitivo à justiça; e no presente do declínio moral de um tipo chamado Jimmy McGill.
A aproximar-se de uma conclusão — e este pode muito bem ser o derradeiro fôlego do universo de “Breaking Bad” —, é o momento ideal para aqueles que nunca viram, verem; aqueles que não aguentaram os primeiros episódios, resistirem até ao momento de gratificação total; e para os que acompanham com todo o coração, deixarem-se levar por aquele que será, provavelmente, a reta final mais emocionante da televisão desde a última metade da temporada de “Breaking Bad”.