Há precisamente dez anos, Charlie Brooker imaginava mais um dos cenários fantasiosos de “Black Mirror”. No arranque da segunda temporada, os espectadores eram apresentados a Martha e Ash, um jovem casal como qualquer outro. Ele era viciado no seu telemóvel, ela preparava-se para ser mãe. Um dia, Ash morre num acidente de viação e tudo muda.
Surpreendida com um teste de gravidez positivo e sem o seu companheiro, Martha entra numa espiral depressiva, apenas interrompida por um email assinado pelo falecido marido. Por detrás desse email estava uma empresa de inteligência artificial que oferecia os seus serviços.
O software da empresa recolhia os dados e publicações de Ash nas redes sociais para criar um ente artificial, capaz de replicar e conversar com Martha, usando os mesmos termos, estilo de escrita e humor de Ash.
A explosão dos serviços com base em inteligência artificial tem dado origem a muitas evoluções, mas nenhuma tão abrangente como a do surgimento do ChatGPT, o famoso chatbot com admiráveis capacidades de conversação e de escrita. E, num ápice, o que Brooker imaginava há mais de uma década parece ser mais real do que nunca.
É também essa a opinião de Pratik Desai, cientista computacional e fundador de várias startups em Silicon Valley. O especialista, que criou uma versão sua semelhante ao ChatGPT, acredita que será possível fazer “renascer” pessoas que já morreram através desta tecnologia. Tudo o que o sistema precisa são imagens, vídeos e gravações de onde possa retirar o maior número de dados sobre determinada pessoa.
“Comecem a gravar os vossos pais e pessoas amadas com regularidade. Com dados suficientes para transcrição, novos sintetizadores de voz e modelos de vídeo, há uma possibilidade de que eles poderão viver para sempre convosco, mesmo depois de deixarem o mundo físico”, escreveu no Twitter. “Isto deverá ser possível até ao final do ano.”
Desai não está sozinho nesta crença, embora talvez esteja demasiado otimista no que toca à rapidez de implementação desta tecnologia. É que em 2021, a Microsoft já havia patenteado uma tecnologia que permite recolher dados das redes sociais para reencarnar pessoas como chatbots, software capaz de emular todas as características de um indivíduo e possibilitar que ele possa ter uma conversa com qualquer outra pessoa.
“Os dados das redes sociais podem ser usados para criar e modificar o tema que define a personalidade de uma pessoa específica”, revela a patente. Os dados seriam então processados por máquinas com capacidade de aprendizagem computacional.
Hoje, com os pequenos grandes saltos dados nesta tecnologia, começam a surgir cada vez mais serviços, também eles mais diversificados. A par dos chatbots e dos geradores de imagens, a inteligência artificial está agora ao serviço dos que choram a morte dos familiares.
Foi isso que imaginou Artur Sychov, fundador de uma empresa dedicada à exploração do metaverso, quando assistiu à morte do pai por causa de um cancro. A sua morte inspirou a criação do Live Forever, um modo acoplado a este universo digital, que cria precisamente uma versão da pessoa morte no metaverso.
Com recurso a todos os dados disponíveis sobre a pessoa, cria-se então um avatar que pode ser visitado por quem queira interagir com esta espécie de “síntese humana”. “Se eu morrer — e eu recolhi muitos dados meus —, literalmente as pessoas poderão vir ter comigo e falar com o meu avatar, ver os meus movimentos, ouvir a minha voz. Poderão encontrar-se com a pessoa e, durante os primeiros dez minutos, enquanto falam, não conseguirão perceber que se trata de inteligência artificial. Esse é o meu objetivo”, contou numa entrevista à “Vice”.
Num dos vídeos de apresentação, uma mulher coreana senta-se numa sala impecavelmente decorada. Na tela à sua frente, surge a imagem do seu marido, sentado, e que em tempo real conversa consigo. Este é o serviço que a Rememory oferece a quem não está preparado para dizer adeus.
Tal como outros serviços, esta recriação digital requer acesso a fotografias, vídeos, mas terá que ser preparada ainda em vida. É feita uma entrevista com pelo menos sete horas de conversação, que irá alimentar a máquina com os dados suficientes para que possa criar um nosso novo eu digital capaz de manter uma conversa.
As visitas decorrem nos espaços da empresa sul-coreana que tem base também nos Estados Unidos. Para que possa ser criada esta versão digital, os valores podem ascender aos 20 mil euros. Cada visita à sala da memória tem um custo de aproximadamente mil euros.
Como sempre, estas tecnologias disruptivas — e invasivas — geram preocupações, sobretudo no impacto que poderão ter na saúde mental dos seres humanos que as utilizam. “O meu medo é que [o recurso a estes serviços] se torne num vício. As pessoas poderão querer mais e mais dessa tecnologia para se sentirem mais próximas das pessoas que perderam, ao invés de viverem a vida que têm pela sua frente”, revela ao “The Washington Post” Elizabeth Tolliver, psicóloga especialista no luto.
Regresse-se a 2013 e à história desenhada por Charlie Brooker. Martha acaba por se deixar enredar pela versão chatbot do falecido marido e investe as suas poupanças na nova evolução da tecnologia que cria um corpo robótico que pretende substituir fisicamente a pessoa que morreu.
A experiência, naturalmente, corre mal. É que as publicações nas redes sociais, através das quais a máquina cria o perfil da pessoa falecida, revelam apenas uma faceta do indivíduo, habitualmente até uma imagem que se quer passar — e não uma que é necessariamente real.
E, tal como na série, o perigo é que no mundo real, estes serviços sejam cada vez mais impingidos aos clientes. Mais perigoso ainda, alertam os especialistas — e “Black Mirror” —, que esses serviços sejam impingidos a pessoas em estados de alta fragilidade emocional. A discussão passará, também, a ser feita no plano da ética.