Foram seis dias, cada um com uma sessão de duas horas, para Bruno Nogueira, Filipe Melo, Salvador Martinha e Nuno Markl escreverem os guiões. Depois foram outros seis dias de gravações, com os atores Nuno Lopes, Albano Jerónimo, Jessica Athayde, Rita Cabaço e o próprio Bruno Nogueira a interpretarem os guiões escritos em tempo recorde.
Entre uma coisa e outra, a equipa de produção e realização teve entre quatro a cinco dias para definir os décors, os adereços e outras necessidades básicas às filmagens de um programa de televisão. É assim o novo programa de Bruno Nogueira, “Princípio, Meio e Fim”, que estreia na SIC este domingo, 11 de abril, depois de “Hell’s Kitchen”. Ao todo, são seis episódios com cerca de 45 minutos.
Cada capítulo estará dividido em duas partes. Na primeira, os quatro guionistas propõem-se a um desafio: criar, em apenas duas horas, uma narrativa que parte apenas de um cenário em que cinco amigos se juntam para jantar. Depois? Tudo é possível.
A liberdade total para os guionistas contrasta com a rigidez exigida aos atores que, sem espaço para eventuais improvisações, terão que interpretar a história tal qual ela foi escrita: com potenciais erros gramaticais ou gralhas, situações absurdas ou enredos com mais ou menos lógica.
A NiT entrevistou Bruno Nogueira sobre o seu novo programa. Cerca de uma hora antes da estreia, vai haver uma sessão final — assim o esperamos, tendo em conta a lógica de ser um programa de confinamento — de “Como é que o Bicho Mexe”.
Alguma ideia para este projeto já vinha antes de saber que ia fazer um programa para a SIC? Ou só começou a desenvolvê-la quando foi contratado pela SIC?
Bem, o que já havia antes era esta minha fixação pela ideia do erro e das várias possibilidades do erro e o que poderia derivar disso. Não vinha o conceito em si. E achava sempre um bocadinho desigual este protagonismo… não que os autores precisem de protagonismo, mas este devido valor que é dado aos autores, por comparação com os atores. Isso já vinha de trás, eram peças que estavam soltas, e depois quando me juntei com o Filipe [Melo], o Salvador [Martinha] e o [Nuno] Markl, é que se começou a desenhar assim uma coisa mais concreta.
Para si, o que é mais interessante em mostrar o erro ao público e assumi-lo até como algo valioso?
Interessa-me porque, sei lá, há sempre essa coisa, até na fruta: só a fruta mais bonita é que vai para os supermercados. Há sempre essa associação de que um erro só tem um lado negativo. E claro que pode ter um lado negativo, mas depois o que se faz com ele é que me parece mais interessante do que propriamente estagnar só na ideia de erro e baixar os braços. Ainda por cima num meio televisivo, que é todo tão plástico, no sentido de as arestas estarem todas limadas, e as coisas têm que ser todas bastante formatadas e nada pode fugir ao controlo… A ideia de um não controlo sobre o resultado final, de um argumento criado em duas horas, essa vertigem do falhanço ou de haver coisas que não fazem o mínimo sentido ou que são estranhas é aquilo que me atrai porque não vejo nisso um fracasso. Vejo antes um princípio de qualquer coisa que pode ser diferente, não necessariamente melhor, mas diferente. Acho que é isso que traz o erro: que a partir daí haja uma mudança. Obriga a reagir e isso interessa-me. E neste caso, a maneira que cada ator tem para lidar com o erro, e o público, em última análise, como é que também o aceita, porque são erros que não são desculpados, são assumidos como se fizessem parte da dinâmica normal das coisas.
Este cruzamento entre ficção e realidade, como este programa tem sido descrito, e as fronteiras ténues que podem haver aí, é algo que lhe interessa particularmente?
Sim, se bem que tenho andado a pensar nisso, e acho que não há um grande cruzamento. Há conceitos em que há, até nalguns que já fiz, uma espécie de resquício de realidade na parte da ficção. Portanto há sempre ali uma dúvida sobre se é ficção ou realidade. Aqui, como o próprio nome indica, as coisas estão bastante bem divididas. Elas coabitam no mesmo programa, mas ao contrário de outros que tenha feito, a divisão entre elas é mais fácil de ver. Não tomam conta uma da outra. A maior diferença é que há uma espécie de câmara privilegiada que mostra os contornos da engrenagem, em vez de ser só depois o produto final.
Também é algo interessante num meio televisivo muito formatado, como estava a dizer?
Quando penso em televisão, e cada vez que faço televisão, a primeira pergunta que me faço, antes de pensar em ideias, é o que é que me apetecia a mim, nesta fase, ver em televisão. Acho que é essa a maneira mais honesta de fazer um trabalho de autor. É o nosso trabalho fazer uma espécie de retrato daquilo que somos hoje em dia. Para que daqui a dez anos eu veja e não sinta que aquilo esteja desfasado da minha personalidade, mas que faz sentido eu ter feito aquilo há dez anos porque era assim que eu pensava e era o que eu queria resolver na minha cabeça, digamos assim. Essa urgência de dizer isso e a liberdade que me é dada para pensar sobre este assunto era uma oportunidade demasiado preciosa para deixar passar. Respondendo à pergunta, sinto que para mim é muito interessante porque é quase como mostrar a parte de trás de um truque de magia. Sendo que, neste caso, não estraga o truque.
Até pode acrescentar.
Diria que sim. Depois deixa de ser uma coisa do meu domínio e passa a ser do domínio do público, que é sempre imprevisível. Quando oiço um diretor de estação ou de um teatro ou do que seja dizer a frase “aquilo que as pessoas querem ver” é sempre uma coisa que me dá muita comichão no céu da boca porque eu não conheço esse conceito. Quer dizer, sei que se houver um desastre na autoestrada as pessoas vão ter mais interesse em ver do que provavelmente uma ópera. Mas não sei se é uma coisa à qual se tenha de reagir, como se fosse o público a decidir, ou se também não nos compete a nós, autores, fazer a nossa quota parte de dizer: OK, há isto, mas também é possível que isto tome a dianteira daquilo que é interessante ver em televisão.
De cada vez que faz um novo programa para a televisão, e têm sido vários os que tem feito nos últimos anos — todos eles muito originais, autorais e diversificados —, sente que também existe uma auto-pressão ou mesmo uma fasquia elevada do lado do público ou dos canais para fazer sempre algo melhor ou mais ousado?
Acho que é um pau de dois bicos. Por um lado, há uma ideia muito fascinante de aquilo que eu possa fazer — quando alguém me dirige um convite há esse lado dourado — e há depois aquele… A certa altura eu acabo sempre por ter de convencer as pessoas que aquele pode ser um caminho interessante. Portanto, às vezes pode ser um caminho muito solitário. Em última análise, agradeço a todos os diretores que, até agora, incluindo o Daniel [Oliveira], me dão essa liberdade, porque é uma coisa que eu prezo muito e que me dá imensa alegria pensar sem limites. Mas a verdade é que há sempre um momento do processo em que dá uma espécie de calafrio ou de medo a quem convidou. Há sempre uma pequena hesitação porque, na maior parte das vezes, trata-se de território desconhecido. E o facto de serem conceitos originais não quer dizer que sejam bons, isto é importante dizer. Só significa que são territórios novos, ou menos explorados. Há tanto de fascínio como de medo. O que entendo. É-me sempre muito difícil pôr por palavras. Por exemplo, no “Último a Sair” era-me muito difícil explicar aquele conceito às pessoas que estava a convidar. Eu percebo que às vezes não é fácil arrastar entusiasmo de uma ideia que na minha cabeça, ou dos autores, faz sentido porque já se está a ver o corpo todo da coisa, e é difícil materializar isso e fazer com que outra pessoa tenha o mesmo entusiasmo e a mesma vontade de saltar para o abismo como nós.
Mas para o Bruno, quando está a pensar num novo projeto ou ideia, sente o peso de tudo aquilo que já fez, ou é algo em que não pensa, que não é um entrave?
Vou ser muito honesto, e é uma coisa muito egoísta, mas o meu desafio, sempre que parto para um ato criativo — seja teatro, televisão, música, o que seja — o que me interessa sempre é o fator de risco. Eu conheço zonas que me são confortáveis, eu sei zonas que provavelmente são mais imediatas para o espectador, de associar aquilo a uma coisa mais imediata de consumo, e há quem faça isso muito bem. Eu também sei a fórmula para ir para sítios que me são mais confortáveis, mas é um bocadinho quando um escultor pega num bloco de mármore. Pode ser várias coisas. À partida é só um bloco e à medida que se vai esculpindo ele tem uma ideia na cabeça, mas de repente o mármore estala num sítio e a ideia que ele tinha no início passa a ter que ser outra coisa. E eu gosto dessa descoberta, de estar à procura de uma coisa que às vezes é só uma frase ou uma imagem que me aparece. À volta disso vai ganhando corpo. Mas eu gosto do desafio de não fazer a mais pequena ideia do que é que me está a surgir na cabeça. Gosto dessa falta de rede.
Este processo criativo de duas horas de escrita do guião é um desafio extra. Foi especialmente divertido este lado, tendo em conta que também é algo que aparece na televisão e tem uma forma de funcionar muito própria?
Sim, foi um desafio interessante porque era com pessoas de quem gosto muito. O Filipe, o Salvador e o Markl são pessoas de que gosto muito pessoal e profissionalmente, em quem confio, e só é possível arriscar numa coisa destas porque não houve nenhum dia em que fizéssemos as duas horas e pensássemos: isto não foi assim tão bom, bora lá gravar outra vez mais duas horas. Nada. Filmámos seis vezes blocos de duas horas e essas seis vezes são os seis episódios que vão para o ar.
estou muito curioso para ver o que é que aquilo é aos olhos do público
Nem fizeram ensaios?
Não, isso fizemos. No Maria Matos juntei os argumentistas, para perceber quanto tempo seria confortável, se era uma hora e meia, duas ou três. Uma vez que não existe este conceito, tivemos também que criar as regras. E percebemos que mais do que duas horas já estaríamos um bocadinho à vontade. Menos do que duas não era possível escrever um número de páginas suficientes para alimentar a ficção, e duas horas era um compromisso entre uma falta de ar de não se conseguir acabar, com calma para se rever o que se fez e para dar um fim bonito. E foram mesmo quatro amigos a brincar, não havia regras. Calhava estarem lá câmaras e serem duas horas.
E é um projeto com mais instinto e menos premeditação, não é?
Sim, a parte da premeditação é como se soltássemos crianças num parque e não olhássemos. Nós sabemos à mesma que eles não podem sair por ali porque há uma vedação, nem nenhuma estrada. Se escrevêssemos que às tantas entrava um elefante no meio da sala, depois cabia à produção e realização simplesmente dizer: ok, não há orçamento para pôr um elefante no meio da sala. Vamos ter de arranjar outra coisa. Quando se juntam estes elementos humanos e estivemos uns seis ou sete meses a pensar no projeto, e a discutir as várias variantes, tivemos tempo de criar vários cenários de risco. Mas há sempre imponderáveis que são próprios da arte no geral.
O projeto vai ser apresentado a partir deste domingo. Para si já é um ciclo fechado ou só quando chega ao público é que está nessa fase?
Para quem está no início de uma ideia e se é o último a abandonar o barco, chamemos-lhe assim, há vários lutos que vão sendo feitos. O primeiro foi quando ficou filmado com os autores e foi muito intenso. O segundo foi quando foi feito com os atores. E o terceiro foi quando acabou a montagem do programa. O último episódio já está na pós-produção. A mim facilita-me. Tenho muitas dificuldades em largar um projeto, tenho dificuldades com aquele último dia, porque criam-se ligações muito intensas e de repente és arrancado à força de uma espécie de mini família que construíste. Este desmultiplicar de lutos ajuda-me a fazer o desmame do projeto. E agora o último luto é quando isto passar a ser do espectador e estou muito curioso para ver o que é que aquilo é aos olhos do público. Estivemos tão fechados sobre nós mesmos a criar aquilo, interessa-me que alguém que não está dentro da ideia, que não faça ideia do que é, receba aquilo. Mas já não sinto essa responsabilidade. A responsabilidade foi no último dia de edição, com as imagens que se fez, conseguimos montar o melhor programa possível. E isso deixa-me descansado.
Hoje em dia o feedback chega muito através das redes sociais, nem é preciso muito procurar por ele. Mas é algo que faz questão de fazer?
Eu acho que qualquer pessoa que diga que não está interessada no olhar do público é porque está na profissão errada. Em última análise eu fiz isto, não só para mim próprio enquanto espectador, mas também para que as pessoas gostem. Acho que, qualquer artista, quando faz aquela coisa de “não me importo do que o público pensa” então mais vale fazer com uma câmara em casa e depois guarda num CD e mostra-se à família. Quando é uma coisa para o público, seja cinema, teatro, dança ou televisão, é óbvio que é importante a componente do público. Deixar-me-ia muito feliz se o público gostasse. O que me dá um distanciamento em relação a essa reação é que, eu gostava que o público gostasse como eu gosto, mas se o público não gostar tanto, reconforta-me a ideia de que me custava mais fazer uma coisa só desenhada para o público em que a minha identidade ficasse perdida ali no meio. Entre os dois, fazer uma coisa que nada tem que ver comigo e com a qual não me identifique, ou fazer uma coisa que no mundo ideal pode ser um compromisso entre o público gostar e eu estar descansado, escolho sem sombra de dúvidas a segunda hipótese.
Depois deste projeto, já está a pensar em ideias para outros programas, ou ainda é muito cedo?
Não, não estou. Até porque…
Não está previsto?
Há de estar previsto, sim, arrancar com outra ideia, não sei quando, mas não é bem uma coisa que se decida. Criativamente, não é uma coisa que eu decida “agora vou ter uma ideia”. É um processo tipo pesca, não somos bem nós que decidimos quando é que o peixe vai morder. É um processo de espera e de acreditar. O realizador Miyazaki tinha uma imagem muito bonita que dizia que a criatividade é lançar um isco no cérebro e ficar à espera que alguma ideia morda.
Mas é preciso lançar o isco.
Claro, verdade [risos]. Neste momento não o estou a lançar, porque esta dose agora foi intensa e portanto preciso de um tempo só para limpar a cabeça desta bonita viagem que está agora a chegar ao fim, para mim, e a começar para o público. Mas o isco não será lançado para já.
O “Como é que o Bicho Mexe” vai continuar a ser feito esporadicamente? Qual é o plano neste momento?
Não, acho que o “Bicho” tinha um papel importante — no sentido em que me ocupava e distraía — durante a pandemia. Tendo acabado o confinamento, era mais ou menos esse o acordo que havia com o público: enquanto houver confinamento, cá estaremos; quando acabar, também não faz sentido estar a continuar. Até porque é cansativo fazer aquilo todos os dias, embora me desse muito prazer. Agora no dia 11, domingo, cerca de uma hora antes [da estreia de “Princípio, Meio e Fim”] vou fazer o último “Bicho” e será uma espécie de passagem de testemunho daquilo que foi o confinamento para este novo capítulo, que é o programa estar terminado. Até porque durante todo o processo de criação e de filmagens foi havendo “Bicho”, volta e meia, há também essa espécie de responsabilidade de esperar que aquelas pessoas que também fizeram parte dos meus dias bons e maus e foram vendo o “Bicho” também verem porque é que havia esses dias.
E mesmo que haja mais um confinamento, o plano é mesmo ficar por aqui?
Depende. Com o “Bicho” eu não consigo ter esse pragmatismo. Agora, que já não há confinamento, não se justifica. Se houver outro, logo se avaliará. Espero que não haja, estamos todos a atingir vários limites.