Depois das deficiências físicas, das doenças incuráveis e das dependências, o novo episódio de “Tabu” — programa de Bruno Nogueira na SIC — centrou-se na obesidade. Uma das participantes foi Catarina Corujo, que tem feito trabalhos como modelo plus size. Aliás, já foi entrevistada na NiT por isso mesmo.
O conceito de “Tabu” é simples: Bruno Nogueira passa vários dias com quatro pessoas que tenham uma condição considerada sensível pela sociedade. Através de conversas e interações, vai descobrindo as suas histórias e principais dificuldades. Um mês depois, apresenta-lhes um espetáculo único de stand-up comedy inspirado nas suas características.
A NiT falou com Catarina Corujo sobre a experiência de participar no programa e o uso do humor para abordar a obesidade.
Como é que chegou ao programa “Tabu”?
Foi através do Instagram, recebi uma mensagem da produção e imediatamente iniciou-se um processo de seleção. Chegaram até mim creio que pela presença que tenho no digital.
Esteve sempre interessada em participar? Ou estava reticente no início?
Não, logo na primeira chamada foi-me explicado que era um formato internacional e que vinha
com o intuito de quebrar o estigma de assuntos que normalmente são tabus na sociedade. E que era feito pelo Bruno Nogueira. Há muitos anos que gosto muito do trabalho dele, e gosto ainda mais da evolução dele quer como profissional quer como pessoa, vou-me identificando cada vez mais. E fez muito jus a isso porque no programa aprendi muito com ele. Acabou por fazer parte do meu processo de transformação e desconstrução de crenças que tinha relativas ao humor.
Participar no programa foi mais ou menos aquilo de que estava à espera?
Foi muito melhor [risos]. A forma como fomos tratados e recebidos, como todas as gravações foram conduzidas, o à vontade que nos davam se não queríamos gravar determinada situação. A equipa toda da produtora, as conversas que tivemos, os momentos, estávamos sempre todos juntos em convívio e acabou por se criar uma sinergia muito bonita, quase como uma família. E até me sinto um bocado estranha a dizer isto porque foi só uma semana, mas parece que foi muito mais tempo. O carinho que guardo por todas as pessoas que fizeram parte deste episódio é enorme.
Estava a dizer que já era fã do trabalho do Bruno Nogueira. Correspondeu às suas expetativas?
Sim, correspondeu. Há sempre um receio, porque quando conheces uma pessoa que tem uma presença na sociedade, nunca sabes bem se aquilo é uma personagem, se é real, e foi muito bonito perceber que há uma distinção muito clara entre o Bruno Nogueira comediante e o Bruno Nogueira ser humano, mas ao mesmo tempo complementam-se. E foi bonito perceber que o Bruno Nogueira como pessoa tem trazido cada vez mais ao Bruno Nogueira comediante, tornando-o mais evoluído e empático.
E no programa há momentos em que está mais em modo comediante, e outros em que está mais distante dessa persona.
Exatamente. Mas é muito bonito ver essa evolução nele — e muitos de nós acompanhámos os diretos da pandemia e foi bom conhecê-lo e perceber que era real. Por causa disso tudo, este programa só fazia mesmo sentido com ele. Eu não aceitaria este convite se fosse com outro comediante qualquer.
A Catarina tem abordado publicamente este tema. Por isso é que sentiu que fazia sentido participar no programa?
Sim, já há algum tempo que é a minha temática e os últimos anos têm sido muito importantes para aprender cada vez mais sobre ela. E mesmo no meu processo de auto-conhecimento e descoberta é uma temática muito importante. É urgente desconstruir o preconceito que existe à volta da obesidade porque a forma como a obesidade é diagnosticada e tratada não é a forma mais humana de sempre. E acho que é preciso trazer atenção para isso, porque a sociedade acaba por ser um reflexo, muitas vezes, do sistema de saúde que temos. Apesar de existirem profissionais fantásticos, e sou uma das sortudas que tem ótimos profissionais a acompanhar-me, sei da realidade das pessoas que me seguem. E conheço a forma como são tratadas, como muitas vezes nem são diagnosticadas por negligência e desinteresse com base neste preconceito. Além de estar muito à vontade porque fiz alguns trabalhos na área que tiveram projeção, sinto a urgência deste tema, então ainda me dá mais vontade de dar a cara por ele. Porque é um bom propósito, estou à procura de fomentar um bocadinho o equilíbrio entre a saúde física e mental sem ter esta carga negativa do estigma do peso e de todas as assunções que se fazem à volta de uma pessoa com excesso de peso. E que podem ter um impacto muito grande na forma como a pessoa leva a sua vida.

E também foi sublinhado no programa que a obesidade é um problema físico mas com um impacto psicológico gigante, não é?
Sem dúvida, e as causas são imensas, é uma doença multifatorial. Não é só a pessoa que não consegue parar de comer.
Houve alguma coisa que tenha preferido não abordar durante o programa?
O facto de não ter mencionado o meu peso — dos quatro fui a única que não quis. E isso tem o tal propósito de não ter que ser o peso a definir-me. Não tem que ser esse o centro da conversa, mas sim toda a minha história e aquilo que me trouxe até aqui, e que me fez passar anos e anos a oscilar. Porque muitas vezes as pessoas só veem o aumento de peso, mas não veem um constante ciclo de aumento e perda, que por vezes ainda é mais prejudicial do que simplesmente ter um bocadinho de excesso de peso e nunca ter feito uma dieta, não ter um distúrbio ou compulsão alimentar. O mais urgente é [abordar] todas as dietas que me motivaram a fazer e que acabaram por alimentar o distúrbio que já existia. Os comportamentos que fui tendo é que foram determinantes para o meu ganho de peso. Obviamente houve muita coisa que não foi para o ar. Mas houve um momento que tenho como muito especial, que nem sequer foi gravado, em que depois do jantar eu estava a ter uma luta interior muito grande relativamente ao humor. Porque só conseguia pensar no impacto negativo que o humor tem em tantas pessoas. Porque às vezes as palavras são armas de arremesso.
Está a falar da fronteira que pode existir entre humor e bullying?
Exatamente, é o tal limite. Houve um momento em que estava numa luta interior de não conseguir perceber isso — só conseguia pensar mesmo no ato de fazer uma piada e no impacto que isso pode ter numa pessoa. E foi muito bom ter uma conversa com o Bruno em que ele me explicou o propósito do trabalho dele. Que nunca será com o intuito de humilhar ninguém. Por muito que às vezes a piada pareça, o intuito não é esse. O intuito acaba por ser divertir-nos com algo que é real, que existe. O contexto, a intenção, acabam por definir muito isto, fazem toda a diferença. E aí percebi o quão projetava o meu próprio sofrimento nos outros. Quando alguém fazia uma piada sobre o meu corpo, era o gatilho porque eu, no fundo, sentia que não era merecedora de respeito. E ao perceber que sou, também sei que me posso rir. Mas se chegar ao meu limite, também posso exigir respeito, e dizer “olha, hoje não, amanhã talvez”. E os nossos limites são diferentes de pessoa para pessoa. Isso está tudo certo. Está certo rirmos com uma piada, não nos rirmos com outra, mas perceber que por trás do comediante também está uma pessoa. O contexto também tem a ver com o tipo de pessoa que é o comediante. Tudo bem que é a profissão, mas será que no dia a dia tem atitudes gordofóbicas? Consegui comprovar que o Bruno tem tanto de gordofóbico como eu. Tem os preconceitos que foram incutidos pela sociedade, que eu também tenho, mas é uma pessoa fantástica que nunca me faltou ao respeito e sempre me tratou bem. Depois, faz ali umas piadas entre amigos e família.
O programa acaba por consistir muito em rir com as pessoas, e não rir das pessoas.
Exatamente. Foi uma catarse, a Catarina que entrou não foi a mesma que saiu.
Gostou do segmento de stand-up comedy?
Foi libertador. Ao mesmo tempo que poderia pensar “isto vai magoar imensas pessoas”, prefiro resignificar um bocadinho isso e usar o meu trabalho no digital para ensinar que, se não houver piada, está tudo bem. A piada do outro não te define. Se alguém te chamar uma lontra não quer dizer que sejas uma lontra. A mim chamaram-me ecoponto, e isso é tão exagerado que é impossível eu levar aquilo a peito.
O exagero é um recurso do humor.
Claro. Quando chegou o momento do stand-up, obviamente estava nervosa, porque foi um processo. E apesar de estar mais recetiva, não deixaram de haver piadas que foram duras. E é desafiante distanciar-me do pensamento de que vão existir pessoas que vão sentir que é OK dizer esse tipo de piadas sem pensar no impacto que vai ter na outra pessoa. Mas infelizmente é a realidade. Importante é a forma como olhamos para a vida, para as piadas, como as interpretamos e tentar trabalhar mais o nosso amor próprio, a nossa auto-confiança, o nosso auto-conhecimento, para nos conseguirmos salvaguardar também. Porque nunca vão deixar de existir pessoas que gozam. Nunca vão deixar de existir pessoas que não gostam de nós ou de um corpo gordo e acabam por estigmatizá-lo. Mas isso não quer dizer que não possamos viver a nossa vida tranquilos na mesma.
Qual foi a sua piada favorita?
Achei muito engraçado quando ele se pôs a gozar com a dieta que fiz das saquetas, que misturava com molho de leitão. Achei maravilhoso porque, lá está, está a gozar com o ridículo da situação. Eu fiz essa dieta quando tinha 14 anos e quem é que põe uma criança de 14 anos a alimentar-se só de saquetas?

E que piadas é que sentiu que foram mais duras?
Sinceramente, acho que essas não apareceram. Porque, lá está, fomos respeitados. Eles estavam muito atentos, observaram-nos e perceberam as piadas que nos deixaram mais desconfortáveis e não as incluíram. Já vi o programa umas três vezes e obviamente não me vou sujeitar a ouvir constantemente as piadas [risos]. Foi uma vez, é engraçado e avançamos. Não é para ficar com aquilo retido, porque obviamente se me puser a ouvir a mesma piada muitas vezes o impacto que vai ter em mim vai começar a ser mais degradante. Mas daquilo que apareceu no programa não houve nada assim que me tivesse deixado mais em baixo.
Costuma-se dizer que rirmos de nós próprios é saudável. Obviamente há pessoas que têm mais dificuldade em fazê-lo, tendo em conta a sua personalidade ou por terem sido vítimas de bullying, por exemplo.
Ajudou-me a libertar… Acho que já não pensava tanto no impacto que as palavras têm em mim porque nos últimos anos fiz um trabalho de auto-conhecimento. Há muitas piadas que a mim, diretamente, já não têm grande impacto. Já conseguia fazer essa distinção: isto não diz nada sobre mim, está tudo bem. Mas ainda me preocupava muito com o impacto que poderia ter nas pessoas que me seguem, que sei que sofrem muito com as piadas e comentários que fazem. Mas, lá está, o contexto é que estamos num programa de stand-up em que se vai falar sobre obesidade. E estão lá quatro pessoas que estão tranquilas sobre que se faça piadas sobre elas. Não estamos a falar de uma piada que se manda numa conversa de café. E aí é que está o contexto. Porque quem vai a um stand-up sobre obesidade já sabe o que vai ouvir. Convém que vá minimamente resolvido. E é essa mensagem que tento passar ao máximo. Uma coisa é um contexto em que te inseres por livre e espontânea vontade. Outra é invadirem o teu espaço.
É totalmente diferente, claro. E este programa pode ajudar a que outras pessoas se consigam “resolver”?
Sim, é o auto-conhecimento, o empoderamento pessoal, a auto-estima. Acabam por ser os fatores chave para conseguirmos interpretar melhor as situações da vida.
O que é que mais faz falta em relação à obesidade em Portugal? Era aquilo de que estava a falar em relação aos cuidados de saúde?
Sem dúvida. É uma doença que é diagnosticada de forma arcaica, muito desajustada, e a forma como é tratada também. Acaba por ser indicado um “fechar a boca”, e não são abordados temas que se calhar acabavam por depender de uma equipa multidisciplinar, que poderia ser disponibilizada pelo SNS, mas que só acontece em casos de cirurgia bariátrica. Que devia ser um último recurso para casos muito mais extremos. Se é tão importante o bem-estar mental, o equilíbrio entre a saúde mental e a física, isso devia estar englobado no SNS. E poderia influenciar uma reforma no ensino, na forma como a obesidade é ensinada nas faculdades e institutos de formação de personal trainers e coisas assim. Deveria haver uma maior empatia, uma maior abordagem de alimentação intuitiva, de não haver tanto esta pressão de obter um corpo X só porque no verão vai ficar melhor na praia.
A Catarina, como foi referido no programa, segue a máxima do “body positivity”, da auto-aceitação corporal, o que é fundamental em termos mentais. Neste momento, pretende perder peso? É um objetivo concreto ou já não?
Identifico-me mais com o movimento de “body neutrality”, que é uma evolução do “body positivity”, porque é a máxima de que ninguém consegue estar sempre com um olhar positivo para o próprio corpo. Todos nós temos as nossas inseguranças e está tudo OK. Sem grandes exageros de otimismo tóxico, mas também não haver aquele pessimismo de auto-rejeição. E isso acabou por me ajudar a entrar num processo de auto-aceitação do corpo como ele é, mas ao mesmo tempo de auto-responsabilização. E essa auto-responsabilização fez-me estar mais consciente dos meus hábitos, dos meus comportamentos, e isso é que me fez procurar ajuda para começar a recuperação da depressão, dos distúrbios alimentares, mas ao meu ritmo. Não tenho um objetivo prioritário de perder peso. O meu objetivo é curar todos aqueles comportamentos destrutivos que tive na adolescência e encontrar o meu equilíbrio. Se o meu corpo acompanhar, é uma consequência.