“O Bill [Clinton] entrou de manhã no quarto, eu ainda não estava a pé, sentou-se na cama e disse-me que tinha de me falar sobre uma história que ia sair nos jornais”, recorda Hillary Clinton numa das muitas horas de conversa com a realizadora Nanette Burstein. O então presidente dos EUA explicou que seria algo sobre uma alegada relação que teria mantido com uma estagiária da Casa Branca.
“Tinha acabado de acordar e não estava a conseguir processar a coisa (…) Ele disse que não tinha fundamento, que não era verdade. Foi categórico e convenceu-me.” No dia seguinte, Clinton estava em frente às câmaras e proferia a frase que colocaria a sua presidência em risco: “Não tive relações sexuais com aquela mulher, a Miss Lewinsky.”
A mentira dita em direto para todo o país seria desmascarada semanas mais tarde, num dos escândalos que marcou não só a vida do ex-presidente mas também a de Hillary Clinton. Numa série documental inédita, a antiga primeira-dama e secretária de Estado dos EUA aborda não só a polémica relacionada com Lewinsky mas também a sua longa carreira dedicada a causas feministas, aos direitos humanos e ao serviço público.
Figura controversa, quase sempre amada ou odiada, protagonizou uma violenta campanha contra Donald Trump. Tornou-se na primeira mulher a ser candidata à Casa Branca por um dos dois grandes partidos norte-americanos — um feito único — mas foi também a grande derrotada das presidenciais de 2016.
“Hillary”, produzido pela Hulu, estreou na plataforma norte-americana em 2020 e, agora, chega finalmente à televisão portuguesa ao “TV Cine Edition”. Os primeiros dois episódios são transmitidos esta terça-feira, 26 de outubro. Os últimos dois vão para o ar na quarta-feira, 27, às 22 horas.
A minissérie documental estreia precisamente no dia do 74.º aniversário de Hillary e traz não só revelações da própria, bem como de Bill Clinton. Todas as histórias são relatadas pelos próprios, pelos amigos e por membros do staff que os rodeavam, bem como declarações exclusivas da filha, Chelsea, e do amigo e antigo presidente Barack Obama.
Seis meses depois do presidente ter negado tudo à mulher naquele quarto na Casa Branca, foi precisamente no mesmo local, que o antigo presidente faria nova confissão. “Sentei-me na cama e falei com ela. Disse-lhe o que aconteceu, quando ocorreu. Expliquei-lhe que me sentia mal por tudo o que tinha acontecido, sobretudo pelo que passámos nos últimos anos”, recorda Bill Clinton. “Não tenho qualquer tipo de defesa. O que fiz é indesculpável.”
“Fiquei devastada. Não podia acreditar”, confessa Hillary, quando passam já mais de 20 anos sobre o escândalo. “Estava tão magoada, não podia crer que tinha mentido. Foi horrível.” Ao marido deixou apenas um pedido: se o caso se iria tornar público, teria que ser o próprio a confessar tudo à filha de ambos, antes da explosão na imprensa.
“O que fiz foi errado”, recorda o antigo presidente. “Odiei o facto de a ter magoado, mas todos nós carregamos alguma bagagem pela vida, por vezes fazemos coisas que não devíamos ter feito. E o que fiz foi horrível.”
No dia da sua apresentação ao Grande Júri, Clinton não teve como negar o caso, sob pena de ser acusado do crime de perjúrio. Confessou a relação extraconjugal que manteve com Monica Lewinsky nos corredores da Casa Branca e depois de o fazer, voltou a repeti-lo novamente em frente às câmaras, numa declaração à nação.
Entre os primeiros rumores e a confissão pública passaram-se seis meses e, durante todo esse tempo, Hillary Clinton foi a primeira e principal defensora pública do presidente norte-americano. Dias depois da conversa privada no quarto onde Clinton negou tudo, a primeira-dama cumpriu o acordado e apresentou-se no sofá do “Today Show”, onde sabia que iria ser confrontada com a alegada traição do marido. Os assessores aconselharam-na a cancelar a ida ao programa. Hillary recusou.
Não foi apenas o caso Lewinsky que foi tema de conversa. Clinton já vira o seu nome associado a outros casos de assédio que envolviam os nomes de Jennifer Flowers e o de Paula Jones. Hillary não se esquivou a responder.
“O presidente negou as alegações de forma inequívoca e veremos o que irá acontecer. Acho que todos me perguntam como posso estar tão calma e não estar chateada. Já passámos por isto muitas vezes”, respondeu, justificando-o com os constantes ataques da direita. “Eu e o Bill já fomos acusados de tudo, até de homicídio, precisamente pelas mesmas pessoas que estão por detrás destas alegações.”
Em retrospetiva, Hillary tinha razão. O processo era liderado por Kenneth Starr, o mesmo político que comandou as investigações ao suicídio de Vincent Foster, conselheiro da administração, e que levantou suspeitas de um possível homicídio com envolvimento do casal Clinton. Algo que se provou não ser verdade.
Com grande parte dos americanos, republicanos e até democratas contra si, Bill Clinton encontrou em Hillary a maior aliada durante os seis meses em que os rumores invadiram a imprensa mas sobretudo depois das confissões — a privada e a pública — do caso extraconjugal. Nos dias que se seguiram à revelação, o casal deixou a Casa Branca e refugiou-se na sua casa privada ao lado da filha.
Todas as câmaras estavam apontadas a Hillary e os gestos eram analisados à lupa. “Continuava sem falar com ele, não queria ter nada a ver com ele”, recorda sobre esses dias a antiga primeira-dama. “Ele passava o tempo a jogar golfe.”
Entretanto, a nação parecia compadecer-se com o drama de Hillary e a opinião pública estava largamente do seu lado. Nunca a primeira-dama tinha sido tão popular entre os americanos. No regresso a Washington, esse foi o seu trunfo numa luta inesperada.
Ao contrário do que seria de esperar, Hillary Clinton tornou-se na maior adversária do processo de destituição imposto ao marido. “Carregava o fardo de ter feito parte do processo de destituição de 1974. Tinha feito a pesquisa sobre o que é considerado um crime ou o que é considerado um pequeno delito: sabia quais eram os requisitos para uma destituição e sabia que eles não existiam neste caso.”
“Ele não devia ter feito o que fez nem o deveria ter tentado esconder, mas isso não era motivo para o destituir”, recorda Hillary sobre a sua posição.
Não foi a única ajuda que deu ao então presidente e marido e, sobretudo, ao Partido Democrata. Além de ser uma voz pública contra a destituição, serviu como rosto da presidência na campanha para as eleições intercalares. Nenhum dos candidatos queria ser visto ao lado do polémico presidente — mas todos queriam subir ao palco de mão dada com a primeira-dama.
“Continuei a cumprir a minha agenda porque senti que era importante. Francamente, não queria continuar a ser retratada como uma vítima. Por isso levantava-me todos os dias e saía para fazer o que podia.”
O que Hillary Clinton fez foi notável e muitos apontam-na como uma das responsáveis pela improvável vitória democrata nas eleições intercalares, mesmo com uma presidência em crise e sob o risco de uma destituição.
Quase um ano depois da chegada do caso Lewinsky aos jornais, o Senado dava a conhecer a sua a decisão final sobre o processo de impeachment — a votação final ilibou o presidente das acusações de perjúrio e de obstrução à justiça.
“Defendi-o e mantive-me ao lado dele porque acreditava que o processo de destituição não fazia sentido, mas essa não era necessariamente a minha resposta em relação ao que iria fazer no meu casamento. Para mim eram coisas diferentes”, recorda. “Ainda tinha que decidir se queria ficar naquela relação, se achava que haveria algo que valia a pena salvar.”
Os anos seguintes foram atribulados. Os Clinton mantiveram-se juntos e resolveram os problemas através do recurso à terapia de casal. “Foram discussões dolorosas”, reconhece a antiga primeira-dama.
“A terapia foi uma das coisas mais difíceis que já fiz, mas era necessária. [A Hillary] merecia-o, a Chelsea merecia-o e eu precisava dela”, confessa o ex-presidente.
No final, Hillary escolheu continuar ao lado do marido. “Há quem pense que tomei a decisão certa, outros que tomei a decisão errada”, clarifica. “Recebi elogios e críticas pela resolução que tomei. Vivemos em tempos engraçados, na forma como a opinião pública se move do ‘é tão nobre ela ter-se mantido casada’ ao ‘é incompreensível que ela continue casada’.”
Além de se manter ao lado do marido, aproveitou a retirada da vida política de Bill Clinton para catapultar as suas próprias ambições. Foi secretária de Estado e figura maior do Partido Democrata durante anos. Só não conseguiu cumprir o sonho de ocupar a cadeira que chegou a pertencer ao marido, por ter sido vítima de uma campanha difícil e minada por muito do que lhe aconteceu no passado — tanto na vida política como na privada. É o próprio ex-presidente que o reconhece.
“Estou imensamente grato pelo facto de ela ter acreditado que o que ainda havia entre nós seria suficientes para nos mantermos juntos”, confessa no documentário. “Sabe Deus o fardo que ela teve que carregar por causa dessa escolha.”