A pandemia suspendeu os espetáculos, as performances, as produções de televisão e cinema. O setor da cultura afundou-se em dificuldades e o governo tem sido muito criticado pelos profissionais da área em relação à sua atuação e falta de apoios.
No entanto, se há ofício que não foi necessariamente afetado — até pode ter sido beneficiado nalguns casos — é o da escrita. Fechados em casa e sem grandes distrações, o confinamento pode ter sido uma altura produtiva para escritores, argumentistas e criadores no geral.
Foi o que acabou por acontecer com Tiago R. Santos, de 44 anos, um dos principais argumentistas portugueses — autor de filmes, séries, peças de teatro e um livro. Nos últimos dias, anunciou nas redes sociais que está a trabalhar num novo projeto, “Até Que A Vida nos Separe”.
É uma série criada em conjunto com os amigos escritores João Tordo e Hugo Gonçalves, que irá estrear na RTP. As gravações deverão começar em setembro ou outubro — neste momento ainda se escrevem os últimos episódios.
Durante a pandemia, foi um dos autores da série digital (que também estreou na estação pública) “O Mundo Não Acaba Assim”. E ainda criou uma peça de teatro à distância, trabalhando com atores que nunca conheceu na vida real.
Leia a entrevista da NiT com Tiago R. Santos sobre criatividade e os efeitos da pandemia, o processo de escrita e os vários projetos em que está a trabalhar.
Nos últimos dias anunciou um novo projeto chamado “Até Que a Vida nos Separe”…
Isto parece uma coisa muito organizada, mas não foi. Foi o Hugo, acho eu, que meteu qualquer coisa, e eu meti também, e depois o João acabou por fazer a mesma coisa. Não foi nada organizado, não há uma estratégia de comunicação [risos]. É só imitação. Parece mesmo que foi combinado, que tivemos uma reunião, mas foi mero acaso e, se calhar, preguiça, por nos estarmos a copiar uns aos outros.
Certo, mas que projeto é este?
É uma coisa para a RTP, está num processo muito inicial. Já foi aprovada pela RTP há algum tempo e está agora a arrancar. Porque, como muitos outros projetos no nosso País — e, enfim, no mundo inteiro — teve de ser colocado em pausa durante a pandemia. Neste momento está-se a perceber como é que se volta à produção, neste caso à pré-produção. Agora retomámos o projeto, estamos numa fase de escrita, de propostas de elenco, estamos a trabalhar com a Caos Calmo e a Coyote Vadio, do Sérgio Graciano e do Manuel Pureza, que será o realizador. Estamos com metade dos episódios escritos. Vai ser filmada em setembro ou outubro, isto agora é um bocado difícil de dizer com exatidão. Estamos entusiasmados.
É para ter quantos episódios?
Oito.
O que é que pode dizer sobre a história ou o género de “Até Que a Vida Nos Separe”?
É uma espécie de uma comédia com momentos muito dramáticos, que tentamos que seja mais espirituosa… É sobre uma família que se dedica ao negócio dos casamentos. Esse núcleo familiar tem uma quinta onde organiza casamentos, e cada episódio vai ter um casamento diferente. Mas obviamente vamos seguindo o percurso desta família, porque aquilo que é o gancho — e acho que isto não é spoiler — é que os pais da família, enquanto estão a organizar casamentos, estão eles próprios a passar por um processo de divórcio. Tem essa ironia dramática, é um bocadinho esse o gancho da coisa. Mas o que é bom é que é uma oportunidade para falarmos de relações, sobre o mundo que está à nossa volta, sobre o que faz as pessoas aproximarem-se ou afastarem-se, será que há uma fórmula para uma relação funcionar? É muito sobre relações humanas, inseguranças, certezas — e o que acontece quando essas certezas colapsam? Isto tem pano para mangas. Tem sido muito divertido escrever isto.
Como é que surgiu a ideia inicial para a história?
Eu, o João e o Hugo já trabalhámos juntos várias vezes, inclusive no “País Irmão”. E quando acabou o “País Irmão”… estamos sempre a pensar em novas ideias sobre o que é que vamos fazer a seguir. Gostamos muito de trabalhar juntos, gostamos de escrever ficção, inventar histórias e personagens. Começámos logo a trocar ideias e esta é uma das muitas que nós temos para projetos de séries de televisão. Esta foi a que o [José] Fragoso [diretor de programação da RTP] pegou. Olhou e pensou: OK, está aqui uma boa ideia. Gostaram do episódio piloto e a partir daí as coisas arrancaram. Agora, de onde é que nasceu a ideia em particular… nem te sei dizer bem, estamos sempre a pensar “o que é que dava uma boa série de televisão?” Acho que esta em particular até veio mais do João Tordo. Falar sobre relações, sobre a experiência humana de estarmos juntos, ou o que é que nos faz estarmos juntos, o que é que nos faz separar. Falar sobre amor, empatia, que são temas cada vez mais importantes. E aqui é o cenário perfeito para o fazermos, porque podemos explorar vários tipos de relações, é uma premissa que tem essa capacidade de podermos falar de várias histórias enquanto estamos a falar de uma história. Essas possibilidades dramáticas são muito atraentes.
Enquanto guionista, qual é a grande vantagem de escrever com outras pessoas, em vez de fazer o processo de forma mais solitária?
Nas séries de televisão faz-me muito sentido estar acompanhado. São processos longos, muitas páginas, bastantes episódios. Eu poderia ter a capacidade de me concentrar e escrever uma série de oito ou dez episódios, mas aí teria de ter um tempo que na maior parte das vezes não tenho. O que aqui permite é criar uma espécie de equipa escrita, os americanos chamam-lhe o “writer’s room”. Eles têm literalmente o espaço físico, nós não temos, vamos ali para o Jardim da Estrela trocar ideias, ler os guiões uns dos outros e discutir um caminho e facilitar a descoberta desse caminho através da discussão. Com um filme acho que é um processo mais solitário, é quase como um romance. Estás ali dentro daquela história e quando estás a escrever é difícil ires recebendo feedback. Mas aqui, como fazemos episódio a episódio, podemos parar, refletir. Há uma discussão que acho que é muito útil. Por isso prefiro ter esse debate de ideias, ainda para mais quando são pessoas que, além de belos escritores, são bons amigos. Em “O Mundo Não Acaba Assim”, que fizemos na quarentena com pessoal que é amigo e que eu admiro enquanto criadores, houve muito esse debate de ideias. “Olha lá, e se fizeres isto e fizeres aquilo”. É fantástico, é muito bom. Porque escrever tem um lado muito solitário, e o processo de escrita de uma série é muito longo. Se fores só tu a fazer, não sei se não acaba por ser contraproducente. Mas acima de tudo é estares rodeado das pessoas certas. Se estiveres a trabalhar com alguém que não for bom, só te vai atrapalhar.
É importante haver uma ligação entre pessoas para se compreenderem mutuamente.
Sim, têm de se dar bem, e acima de tudo têm de ser pessoas que estão a olhar para o projeto da mesma forma que tu. Sabemos o que estamos a fazer, qual é o tom, quais são os nossos objetivos. Por exemplo, nós temos a nossa noção de comédia. Se estivéssemos a trabalhar com alguém que dizia “Não, nós queríamos uma coisa mais ‘Malucos do Riso’”, aí havia um problema. Tinham de ir buscar outras pessoas para escrever.
Apesar de o Tiago escrever e assinar um episódio, tal como o João Tordo e o Hugo Gonçalves, esse debate de ideias é constante e é sempre um trabalho de todos.
Sim, sempre. Os guiões passam por todos. Eu agora estou a escrever o episódio seis. Antes de começar, já tínhamos estado a falar do episódio seis, “é importante que isto aconteça e tal”. “O João vai escrever o quinto, não te esqueças que tens de meter aquilo”. É uma teia que vamos tecendo em conjunto. Depois, cada um vai para casa e escreve o próprio episódio — no sentido em que tens liberdade para encontrar novas soluções e ter novas ideias, porque qualquer pessoa que já tenha feito isto sabe que uma coisa é discutir teoricamente uma ideia, mas quando estás a escrever e só estás concentrado no episódio há imensas soluções que de repente surgem. Apesar de termos as coisas mais ou menos definidas, também temos a liberdade criativa de encontrar uma nova solução, que possa depois dar origem a novas soluções no futuro. Mas escrevemos todos, temos de ter a certeza de que as personagens falam sempre da mesma maneira, que o tom é sempre o mesmo. Que não há nenhuma incongruência dramática ou narrativa. Fazemos esse trabalho em conjunto e a própria produção também o faz depois. Mas quando estás mesmo, mesmo, mesmo a escrever para mim é muito complicado escrever a quatro mãos. Há pessoas que dividem o episódio por personagens, depois juntam as cenas todas, isso para mim é um bocado estranho, os episódios ficam um bocado desconexos, quase que notas a diferença de linguagem. Porque ninguém escreve igual a ninguém. E por isso gostamos de escrever o nosso próprio episódio para encontrar a coerência narrativa individual de cada episódio. E ninguém é completamente protecionista do seu trabalho, nós queremos é que a série seja boa — o melhor possível.
Estava a falar de “O Mundo Não Acaba Assim”, também escrito por várias pessoas, que tem tudo a ver com a pandemia. Como apareceu esse projeto?
Foi uma espécie de exercício de improvisação com o Artur Ribeiro, o Luís Filipe Borges, o Filipe Homem Fonseca e o Nuno Duarte. A determinada altura estávamos todos em casa isolados e todos nós com projetos colocados em suspenso. Começámos a trocar algumas mensagens, no fundo a tentar descobrir como conseguíamos manter algum tipo de sanidade mental num momento tão estranho. E lembro-me de que a primeira ideia foi: vamos escrever alguma coisa. Está bem, nós somos argumentistas, eu publiquei um livro, o Filipe Homem Fonseca também, mas a questão é: vamos tentar fazer uma coisa mais ligada àquilo que costumamos fazer, e tentar arranjar uma maneira de tentar escrever e gravar num momento em que isso parece impossível. Começámos a escrever umas curtas-metragens e até foi o Artur Ribeiro que descobriu uma forma de as filmar, através das chamadas de Skype. A mim ajudou-me imenso a atravessar esse período mais complicado da quarentena e do estado de emergência. Foi sentir que, apesar de tudo, ainda havia alguma coisa que me prendia à realidade dos dias anteriores e dos futuros. Para perceber que o estado que ainda estamos a atravessar não é uma coisa permanente, mas sim provisória — por muito que pareça que é permanente agora. E às vezes é um bocado assustador pensar e ver nas notícias que se calhar vai ser um ou dois anos disto. Vem a segunda vaga e tal. Apesar de tudo aquilo permitiu relativizar: OK, mas dois anos no grande contexto da tua vida se calhar não vai ser assim tanto. Obviamente que é um período muito complicado, mas a gente vai conseguir ultrapassá-lo. E fazer esse trabalho de escrever e trocar guiões e depois procurar os atores necessários, que estivessem na mesma disposição, tentar simular a normalidade dos dias a fazer esta coisinha que inventámos, foi um processo que nos ajudou imenso. Foi um escape criativo numa altura em que parecia que não havia a possibilidade de criatividade, sequer. A RTP percebeu que aquilo tinha alguma potencialidade e deu-nos os meios para conseguirmos fazer aqueles seis episódios e aquelas… foram para aí 30 histórias. Foi do caraças, muito porreiro mesmo.
“‘O Mundo Não Acaba Assim’ foi muito recompensador, uma grande experiência”
E acaba por ser um retrato deste tempo.
Sobretudo isso. Acho que deixámos ali um documento… Cinco pessoas a escrever, cinco olhares sobre a realidade. Não tínhamos limites, não tinha de ser tudo comédia nem drama, tivemos animação, fizemos uma cena de ação, comédia pura, drama puro, histórias românticas, fizemos de tudo um bocado. E acho que tivemos essa capacidade quase em tempo real de deixar ali pequenos momentos do que foi estar vivo nesta altura. Não é olhando para trás, não é fazendo futurologia, é agora. O que é estar vivo agora em Portugal neste preciso momento? Não é uma visão global, é particular, mas ao mesmo tempo também é pessoal. Acho que foi muito recompensador, uma grande experiência. E acima de tudo a agilidade que nós encontrámos para fazer aquilo. Escrevíamos uma ou duas curtas, passado uma semana estávamos a filmar remotamente com atores que podias nem conhecer pessoalmente, depois estavas a dirigi-los. Foi de uma agilidade tremenda, foi uma coisa admirável e única. Por um lado, ainda bem que será irrepetível, espero, porque não acho que seja assim que as coisas devam ser feitas. Acho que as pessoas devem estar juntas, acredito no trabalho de equipa, nas sinergias criativas, acredito que quando as pessoas discutem ideias as coisas melhoram.
Mas foi uma adaptação necessária.
Sim, absolutamente. E neste processo também escrevi uma coisa para o Gerador, uma peça de teatro remotamente e acompanhei a Carla Chambel, que esteve a dirigir, e estive ali a trabalhar com pessoas que nunca vi, nunca tive com elas pessoalmente, com uma exceção ou duas. Em termos criativos permite fazer coisas interessantes, gostei muito do resultado do “Espero-te Bem”. E não me desagrada fazer projetos semelhantes, porque a utilização da tecnologia… Cada vez mais comunicamos com os aparelhos, com as câmaras, o Zoom, FaceTime e essas coisas todas. É uma coisa que não vai desaparecer quando a Covid se tornar menos perigosa. Mas acho que esse tipo de mecanismo, em determinados projetos, pode continuar a ser usado de forma interessante. E acho que isso é porreiro. Mas também gosto de contar histórias clássicas e estou a preparar projetos. Por exemplo, não há Covid no “Até Que a Vida Nos Separe”.
Não tem qualquer tipo de ligação?
Não tem porque também não queremos condicionar toda a nossa realidade e todas as nossas histórias. É uma coisa terrível que está a acontecer e vamos ultrapassar, mas também não podemos condicionar todas as histórias nem a maneira como as filmamos. De vez em quando podemos lá voltar porque fez parte — e faz parte — da nossa memória e terá consequências para o futuro. Mas temos de ter a capacidade, de acordo com o projeto, de: vamos lá voltar ao período em que se falava de outra coisa.
Neste caso de “Até Que a Vida Nos Separe” foi fácil distanciarem-se de todo este contexto da pandemia?
Foi, foi uma decisão criativa. O que é que vamos fazer com a Covid? A série passa-se em 2019? Em 2020, numa realidade em que não houve Covid? Pronto, passa-se em 2019. Nem é preciso estar a marcar o tempo, também tenho muitas dúvidas que as pessoas estejam a ver nova ficção a tentar decifrar onde é que está a Covid. Se foi antes, se foi depois. As pessoas querem é boas narrativas, boas histórias, personagens divertidas, momentos que as façam rir ou que as deixem mais comovidas, a pensar na pessoa que têm ao lado, seja o que for. Acho que as pessoas estão um bocado desejosas desses escapes, que também são espelhos, porque a realidade das pessoas é mais do que Covid.
Estava a dizer, antes de “O Mundo Não Acaba Assim”, que o isolamento não estava a ser particularmente criativo, é isso?
Não… Para a nossa área cultural isto tem sido um desastre. As políticas de apoio têm sido um desastre. O Ministério tem sido um desastre. Há pessoas que estão a passar por grandes dificuldades porque as produções foram suspensas, e as reações do governo, do Estado, do Ministério foram francamente catastróficas. Isso tem que ser reconhecido. Mas eu tenho uma vantagem. Eu escrevo. Se há alguma coisa que não parou — ou que não precisava de ser parada na minha área — é a escrita. Eu continuei sempre a escrever, tive essa vantagem, até porque tinha um filme para escrever que tinha o apoio do ICA e esse dinheiro não foi a lado nenhum. Tive coisas que não avançaram já e tiveram de ser paradas, mas o meu trabalho não acabou por causa disso. Quando digo que o confinamento provocou quase um colapso criativo, é precisamente com sentires… Podes estar em casa a escrever, mas podem ser coisas que nunca vão ser feitas. E isso é uma coisa completamente devastadora para quem está a tentar escrever um guião. Se não acreditares que o que estás a escrever vai ser feito é quase um vazio existencial. É como estares a contar uma história num bar que está vazio [risos].
“Acho que vai haver um arranque muito forte da produção cinematográfica e audiovisual em Portugal”
Essa motivação é essencial.
Sim, mesmo sabendo as dificuldades que há em conseguir financiamento para um filme, ou para uma série, e sei o tempo que as coisas demoram, as condicionantes, nunca temos dinheiro para nada, eu sei isso tudo. Mas há duas coisas em que preciso de acreditar: que o que estou a escrever é bom — porque se não acreditar vai ser uma merda — e que aquilo vai ser feito. Caso contrário, é um bloqueio total. Apesar de eu estar a escrever e escrevi muito durante o confinamento, houve ali um momento — e ainda continua a ser — de “isto vai ser uma onda e ninguém sabe quando é que esta onda acaba”. E tu pensas: bem, isto chega a um momento em que as coisas colapsam, as pessoas perdem o fôlego e torna-se impossível de sobreviver. “O Mundo Não Acaba Assim” permitiu-me contrariar esse negativismo.
Foi fácil manter essa rotina de escrita em casa? Sempre trabalhou muito em casa?
Sim, sempre trabalhei muito em casa. É uma coisa um bocadinho diferente, porque acabei de ter uma filha, permitiu-me passar mais tempo com ela, é muito tranquila, fartou-se de dormir durante este período e acho que não reparou que se passava algo de errado [risos]. Apesar de tudo, se calhar há menos distrações. Acho que o segredo foi: a certa altura, como toda a gente, estava um bocadinho obcecado com a informação, as notícias e os números. E para a minha própria sanidade mental ouvi menos notícias e quis concentrar-me neste mundo de faz de conta. Vou antes contar as minhas histórias, estar aqui a trabalhar. E felizmente estou com alguém que percebeu que eu tinha muitas coisas para fazer e me ajudou. Acabei por conseguir escrever tranquilamente em casa. O meu trabalho é solitário por definição. Se não estiver em casa vou para um café, mas estou com os fones e é um bocado a mesma coisa. Fez-me mais confusão foi a falta do lado social, o convívio com os amigos, mas às vezes é esse convívio que faz com que fiques atrasado em relação a determinadas coisas que precisas de escrever [risos]. Havia um texto que eu gostava muito, já não me lembro de quem, sobre o processo de escrita. Chamava-se “O Talento do Quarto” e essa teoria é que a principal qualidade que tens de ter como escritor é a capacidade de estares sozinho num quarto. Há gajos com ótimas ideias que até seriam grandes escritores, mas se não tiveres esse talento de: vou ficar sozinho neste quarto enquanto no mundo lá fora as pessoas estão entretidas a fazer outras coisas, e eu vou ficar sozinho em frente do computador com pessoas que não existem… Se não tiveres esse talento nunca hás-de conseguir concretizar grande coisa. E eu, felizmente, acho que tenho esse talento. Por isso a maior preocupação foi com pessoas que conheço que estão a passar por grandes dificuldades, e perante o abandono das instituições que nos deviam apoiar. Essa preocupação inata, até porque também dependo deles para os meus projetos serem concretizados. Um gajo para conseguir montar um filme já demora um ou dois anos, só de pensar que isto vai demorar mais ainda… porque as histórias têm o seu momento para ser contadas, uma certa urgência. “O Mundo Não Acaba Assim” só fazia sentido naquela altura, por exemplo.
Claro que é preciso esse talento para se ficar sozinho num quarto, mas não sentiu falta de todas as outras vivências que, imagino, também alimentem a inspiração? Tudo isso foi-lhe retirado naqueles meses.
Por exemplo, esta questão do “Até Que a Vida nos Separe” já começou a ser pensada pré-Covid, parte mais da nossa vivência pessoal, que não muda. Acho que em termos criativos não é a suspensão da realidade — se pensarmos na Covid como isso… a realidade esteve suspensa durante três meses. Bem, eu tenho 44 anos, se deixasse de ter ideias porque durante três meses a realidade foi suspensa estava fodido. Felizmente, tenho histórias que quero contar, tenho muita coisa na gaveta, bastantes ideias por explorar. Não quer dizer que não fique com essa ânsia. Gosto de andar na rua, ouvir pessoas a falar no metro, gosto dessas coisas todas. Apesar de a suspensão não me bloquear, começas a sentir falta de estar com pessoas. Mas é mais social do que criativo. Quer dizer, se eu ficasse um ano fechado em casa certamente ia afetar o meu trabalho — ou até seis meses. Mas apesar de tudo estou rodeado de pessoas, falo com os meus amigos no Zoom, no Skype e essas merdas todas que toda a gente está a fazer. Acho que não foi tempo suficiente para afetar, se são três meses que te bloqueiam, se calhar estás na profissão errada. Eu percebo a ansiedade de não saberes o que vai acontecer a seguir, e percebo como isso pode colocar em causa a tua vontade de encontrar uma forma de expressão. Por isso é que achei necessário não ler tantas notícias, tentar não ver aquele vídeo que te enviam não sei de onde. Tentei reduzir o ruído, porque se tu te concentras só nisso, numa coisa que é a coisa neste momento, torna-se sufocante. É literalmente como estar debaixo de uma onda, não vês nada à volta, não sabes se estás de pé ou não. Eu tentei respirar fundo e “isto vai passar”. Como tive a bebé, o que eu penso é: ela nem sequer vai reparar. Vou ter de lhe explicar, “olha, quando tu nasceste, aconteceu isto ao mundo”. Não vai ter idade para se lembrar, e isso a mim dá-me muita tranquilidade. Claro que o que me preocupa mais é no que é que o mundo se vai tornar, mas isso aí também é outra longa conversa. Sobre todas as coisas perigosas que estão a acontecer neste momento. Mas o mundo sempre foi um lugar perigoso, na verdade.
Há outros projetos que tenha entre mãos?
Há uma coisa que me entusiasma bastante mas de que ainda não posso falar. Mas se acontecer vai ser, francamente, do caralho. E depois tenho outros projetos que estão agora à espera do momento para serem retomados, são coisas que já escrevi. Outras que ainda preciso de escrever. Às vezes até tenho medo de dizer isto em voz alta, porque, mais uma vez, tenho toda a empatia pelas pessoas que estão a passar por grandes dificuldades, mas o meu ano de 2020 está a ser bastante positivo. Em termos de promessa de trabalho, das coisas que podem acontecer e que podem estar mesmo quase a acontecer… Quer em cinema quer em televisão haverá mais projetos a surgir.
O “Até Que a Vida Nos Separe” será o próximo, suponho?
Não sei se é o próximo, curiosamente [risos]. Não sei se é o próximo a ser filmado, talvez seja o próximo a estrear, não sei. Há aí dois projetos que vão estar quase lado a lado. Mas, sim, estou entusiasmado e com vontade de fazer coisas. Eu não sou nada como aqueles gajos de “vamos olhar para as coisas pelo lado positivo”, sabes? Há coisas em que tens de olhar pelo lado negativo, é importante que o reconheças, se não nada vai mudar. E acho que há justa causa para indignação para muitas coisas. Mas também acho que isto provocou uma ânsia de as pessoas trabalharem. As produtoras querem fazer isto enquanto é tempo, estão com essa urgência criativa, que acho que é o melhor tipo de urgência, quando estás com muita vontade de contar uma história. E acho que vai haver um arranque muito forte da produção cinematográfica e audiovisual em Portugal. E, quem sabe, às vezes das grandes dificuldades nasce algo de bom. Sinto que este período de crise, de dificuldade, de abandono, tem essa criatividade. Estão cheios de vontade de fazer coisas. Esta revolta às vezes traz um fogozinho.