Organizado a bem mais de um ano da estreia de “Rabo de Peixe”, David Medeiros acabou por se sentar à mesa de um restaurante em São Miguel, totalmente rodeado de conterrâneos. Era um encontro de gentes das artes, açorianos de sangue. Entre eles estava Augusto Fraga, homem que conseguiu levar Rabo de Peixe à Netflix — e ao mundo.
“Tinha ouvido falar no projeto do Augusto pouco tempo antes de surgir o nome da Netflix. Alguns amigos açorianos já me tinham falado dele e quando fui pesquisar, fiquei espantado, porque é um tipo de nível mundial na publicidade”, conta à NiT o ator de 31 anos nascido em Ponta Delgada.
Assim que o argumento sobre o drama vivido na vila piscatória de São Miguel foi escolhido pela Netflix para produção, David ficou “atento”. É um tema que lhe é caro, apesar de ter vaga memória dos acontecimentos. Mas todos os açorianos cresceram a ouvir essa história.
“Eu quando era puto, ainda antes do YouTube, fazia vídeos sobre isso”, recorda, antes de regressar ao tal jantar que mudou tudo. “Foi para nos conhecermos a todos, os pessoal da ilha que trabalha na área, alguns não se conheciam.”
Ao mesmo tempo, Medeiros partilhava o palco com Miguel Damião — outro açoriano que viria a entrar no elenco, no papel de padre — numa peça sobre o imaginário açoriano. “Foi quando recebi um telefonema do diretor de casting da série para mandar um vídeo.”
Acabou por ficar com o papel de Lavrador, o braço direito e “cão de fila” de Arruda (Albano Jerónimo). Feitas as contas, o tal jantar serviu como uma espécie de pré-casting para o criador da série. “Algumas das pessoas que foram ao jantar acabaram por entrar na série”, confirma. “Pareceu-me que o Augusto Fraga tinha interesse em ter açorianos na série.”

Chegado ao ser de filmagens, foi-lhe dito que a pronúncia açoriana deveria ser atenuada. “Quando soube que não era para fazer com sotaque, fiquei triste”, confessa. “E depois tornou-se mais difícil para mim, porque quando estou na ilha, falo com muito sotaque de forma natural. Disseram-me que podia fazer um bocadinho, mas fazer um bocadinho é mais difícil para mim: ou não faço, ou faço-o naturalmente.”
David carrega um apelido com peso no arquipélago e no País. É filho do realizador, músico e ator Zeca Medeiros, autor de vários filmes e séries gravados precisamente nos Açores. E desde bebé que David participa neles.
“Comecei ainda era bebé. Depois aos oito ou nove anos fiz de uma personagem em ‘Gente Feliz com Lágrimas’. Acho que ele me reconhecia qualidades, mas eu não queria. Achava que ser ator era uma coisa estúpida. Queria ser realizador, fazer cinema.”
Filho da classe média micaelense, aos 18 anos teve a possibilidade que poucos têm de ir para Lisboa estudar. Não entrou em cinema, formou-se em Letras. Fez “um pouco de tudo”, até um dia perceber que talvez ser ator não fosse assim tão estúpido. Formou-se, fez teatro e acabou a cumprir os incentivos do pai.
Chegado a “Rabo de Peixe”, a segunda produção original portuguesa para a Netflix e que se está a revelar um sucesso mundialmente, confessa que é um orgulho poder trabalhar com Augusto Fraga. “Percebi logo que a série ia ter uma personalidade estética muito própria, apesar de ser uma coisa da Netflix, um blockbuster de verão. Tem muita cultura açoriana, americana também, porque as duas estão ligadas.”
“Grande parte da cultura açoriana do século XX passa pelo desejo de ir para a América, fugir daqui. O próprio Eduardo (José Condessa) é o típico gajo micaelense com esse desejo de ir embora”, explica. Sobre as críticas à falta de pronúncia açoriana, entende-as, mas defende a produção.
“Se fosse feita só para o mercado nacional, fazia-me mais comichão. Mas é algo para o mundo inteiro”, atira.
Na mente mantém o desejo de ser realizador. Nos últimos dias juntou-se ao colega de elenco e músico Romeu Bairos para passarem juntos uns dias em Rabo de Peixe. O objetivo? Coordenar a filmagem do videoclipe para o tema acústico de “Eu Não Vou Chorar” — original de Sandro G, o icónico rapper de Rabo de Peixe, interpretado por Bairos na série (leia a entrevista da NiT).
Pela pequena vila piscatória, por esta altura há dois temas de conversa, confirma David Medeiros: as festas que ali decorriam; e as reações a “Rabo de Peixe”, a série que colocou a comunidade nas bocas do mundo.
David não alinha nas críticas de que a série romantiza e desrespeita a pobreza e a vida dura daquele povo tantas vezes esquecido. “O Scorsese fartou-se de sensacionalizar a cultura italiana na América, explorou artisticamente pobreza e a criminalidade. Há sempre qualquer coisa de vampiresco na criação artística”, conclui.
Críticas especializadas à parte, é na voz do povo que se ausculta o sucesso da série, mais concretamente na dos habitantes de Rabo de Peixe.
“A maioria estava muito orgulhosa da série. As únicas críticas? Uma senhora veio ter comigo e disse-me que gostava, mas que não podia ver com os miúdos por perto. ‘Pois, com a violência e as drogas…’, disse eu. E ela respondeu: ‘Nada disso, são os palavrões. Sabe, há uma coisa importante que é o respeito [risos]”, conta, antes de rematar com algo que provocou a ira de um orgulhoso morador de Rabo de Peixe.
A certa altura na série, Sílvia (Helena Caldeira) reclama: “Não há um homem que faça um minete de jeito nesta terra”. “Ele ficou chateadíssimo”, relembra David. “Elas que venham para cá, que vão ver.”
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