“É um salto assustador, mas acho que estava na altura de eu o dar”, confessou Zendaya Coleman dias antes da estreia de “Euphoria”, a série da HBO que assinalou o adeus definitivo aos tempos de menina da Disney. Hoje, é tratada apenas pelo primeiro nome, ao bom estilo das grandes estrelas do cinema e da televisão. E desde domingo que tem uma estatueta para o provar.
Numa cerimónia ímpar de domingo, 21 de setembro — com os candidatos a aguardarem o veredito do envelope desde casa, cada um com a sua janela de videoconferência ligada em direto —, a atriz de 24 fez história: tornou-se na mais jovem a conquistar o prémio de Melhor Atriz num Papel Dramático. “É mais nova do que o Bebé Yoda e já ganhou um Emmy”, gracejou o apresentador Jimmy Kimmel.
A concorrência era feroz: Olivia Colman, Jennifer Aniston, Laura Linney, Sandra Oh e Jodie Comer, esta última a detentora do recorde batido por Zendaya. “Sei que é uma altura estranha para estar a celebrar”, explicou entre a euforia da família que a rodeava no momento da conquista.
Pandemia e formato peculiar à parte, os discursos mantiveram-se incólumes e o da atriz norte-americana trouxe também ele uma mensagem: “Quero dizer que há muita esperança nos jovens que estão por aí — sei que a nossa série [“Euphoria”] nem sempre dá um belo exemplo — mas há esperança e quero dizer aos meus pares que estão aí pelas ruas, ‘Eu vejo-vos, admiro-vos, um obrigado”.
A série dramática juvenil retrata a vida de vários adolescentes, à medida que se debatem com problemas de violência, drogas e sexo. A vida de Zendaya é, provavelmente, o exato oposto: um talento promissor desde muito nova, tornou-se numa estrela em ascensão nos programas infantis da Disney.
Confrontada com o sempre delicado momento de transição de estrela infantil que tantos talentos arruinou, a californiana chegou vitoriosa à linha da meta. Hoje é um ícone de moda nas passadeiras vermelhas e um nome que já figura nos elencos dos grandes blockbusters. O salto assustador compensou — e de que maneira.
A fábrica de talentos da Disney
A beleza exótica de Zendaya fê-la destacar-se ainda em criança. Após várias experiências como modelo de moda infantil, aplicou as muitas horas de treino de aulas de dança de hip-hop num anúncio onde serviu de figurante a Selena Gomez, um talento formado na Disney. Brevemente, seria a sua vez.
Brilhou em “Shake It Up” e em “Frenemies”, até ter a sua primeira grande oportunidade, como personagem secundária em “O Grande Showman”, ao lado de nomes como Hugh Jackman e Michelle Williams. Não foi a única proposta que recebeu para dar o salto, mas a atriz sublinha que é muito criteriosa. “Chegaram até mim muitas oportunidades, mas não teriam sido a melhor escolha — podia optar pelo caminho mais fácil, fazer coisas só porque sim”, explicou.
Ainda ensaiou uma carreira na música, mas acabou por preteri-la em favor da interpretação. “Acho que a indústria da música te rouba alguma da paixão. Suga-te lentamente até ao tutano. O que eu queria já não é o que eu quero, especialmente quando penso pelo que tive que passar na indústria”, explica à “Paper”, numa entrevista onde sublinha os perigos escondidos a cada cláusula contratual e que podem arruinar uma carreira.
Já com as portas de Hollywood abertas, haveria de voltar para terminar o trabalho na série “K.C. Undercover” — o último capítulo da sua passagem pela fábrica de talentos da Disney.
“O único motivo pelo qual decidi voltar ao Disney Channel foi a falta de diversidade naquela época. Não havia papéis principais ou famílias de cor, e senti que [protagonizar essa série] era algo que teria que acontecer. E pensei que era uma ideia gira uma miúda fazer um ‘papel de homem’ era importante. As mais jovens podem olhar para o ecrã e perceber que podem ser qualquer coisa, que podem fazer tudo. Um rapaz pode olhar para esta miúda e dizer ‘Eu quero ser como ela’. E isso é fantástico”, revelou em 2017, em entrevista ao “Seattle Times”.
Enquanto isso acontecia, a própria olhava para papéis mais ambiciosos e decidia que também era capaz de ser igual às estrelas que admirava. Após uma breve aparição em “The OA”, da Netflix, foi escolhida para ser a co-protagonista de “Homem-Aranha: Longe de Casa”, ao lado de outro novo talento, Tom Holland.
O papel trouxe consigo os primeiros prémios: três distinções nos Teen Choice Awards. O melhor estaria para vir e embora não saibamos quais os projetos que Zendaya recusou, conhecemos aqueles nos quais embarcou. E como a própria sublinha, acertar nas escolhas e sobretudo nas rejeições, é meio caminho andado: “Eu queria projetos de qualidade, coisas cool que me excitassem, mesmo que só tivesse uma frase para dizer durante todo o filme. Dizer não é tão importante quanto dizer sim”.
No mundo explícito dos adultos
“Acho que nenhum dos meus fãs de oito anos sabe [que a “Euphoria” existe]. E se sabem, duvido muito que os pais os deixem ver”, disse ainda em 2019. Este era o projeto que ela queria mesmo fazer, um projeto excitante e que, para sua felicidade, não lhe dava apenas uma deixa. Zendaya era protagonista. “Sabia que se não fizesse parte desta série, sentir-me-ia miserável”, confessou.
Atuar para um público infantil não é bem a mesma coisa que fazê-lo para adultos. A atriz estava ciente disso: “Ter um passado na Disney torna mais complicado que te levem a sério”.
No papel de Rue Bennet, encarna uma jovem com graves crises de ansiedade que tenta atenuar entre bebidas e drogas, mesmo depois da passagem por uma clínica de reabilitação. “Euphoria” era o novíssimo e ambicioso projeto da sempre prestigiada HBO que pretendia retratar o mundo real dos adolescentes, cru e sem tabus. Naturalmente, gerou polémica.
As cenas sexuais explícitas e o ambiente de degradação que rodeia as personagens, quase todas menores, incomodaram muitos espetadores e críticos. Nem isso impediu que se tornasse numa das apostas vencedoras da HBO, que renovou a série para uma segunda temporada, cujas gravações foram adiadas devido à pandemia.
Foi o próprio canal que revelou o sucesso de “Euphoria” e as estatísticas que provam que é um dos preferidos entre a faixa etária dourada, a dos 18 aos 49. “’Euphoria’ é uma série para adolescentes como ‘Sopranos’ é uma série para mafiosos”, explicou com ironia Casey Bloys, responsável pela programação do canal.
“Tem mais a ver com observar um mundo que porventura desconheces ou que nem compreendes muito bem. É uma visão sobre o mundo dos adolescentes”, revelou sobre a série que juntou mais de cinco milhões de espetadores no episódio de estreia.
Pouco incomodada com a polémica e aparentemente indiferente à boa receção por parte de fãs e críticos, Zendaya explica que escolheu o papel “com o coração”. “Não foi uma escolha estratégica. Apaixonei-me pelo que li, pelas personagens e não tive nenhuma dúvida de que queria fazer isto, simplesmente porque senti que houve uma ligação.”
Embora a sua vida esteja muito longe daquela da dos jovens retratados na série, a atriz sempre admitiu publicamente a dificuldade em lidar com as crises de ansiedade de que sofre. “Senti-a quando tive que fazer o primeiro teste na escola e voltou a aparecer mais em força aos 16, quando já trabalhava e tive que rejeitar um projeto. Foi a primeira vez que tive que lidar com as reações na Internet e nauseou-me. Apaguei tudo e fechei-me no quarto”, recorda à “InStyle”.
Atuar ao vivo era todo um outro problema. “Acho que tem origem na pressão que coloco em mim própria (…) Ainda não consigo controlar a ansiedade. Mas sinto que falar sobre o assunto ajuda e isso por vezes consiste em gritar pela minha mãe a meio da noite.”
Uma questão racial
Consagrar-se como a mais jovem atriz a vencer um Emmy para Melhor Atriz é uma digna menção honrosa, mas não é a única. Zendaya foi também apenas a segunda atriz negra a conquistar a estatueta nessa categoria — feito apenas igualado por Viola Davis, a primeira a consegui-lo nos 72 anos de história da gala.
Apesar da maioria das reações ter sido positiva, surgiu nas redes sociais uma frente crítica que recusou ver na vitória um simbolismo para a comunidade negra, tudo porque Zendaya é ‘biracial’, filha de pai negro e de mãe branca. Faria ela parte do grupo privilegiado durante anos por Hollywood e pelas academias? Ou seria ela um símbolo de perseverança e de orgulho para a comunidade negra?
A resposta foi dada pela própria quatro anos antes de toda a polémica. “Infelizmente, fui um pouco privilegiada quando comparada com as minhas irmãs e irmãos negros. Será que posso dizer honestamente que enfrentei o mesmo racismo e as mesmas lutas que as mulheres com um tom de pele mais escuro do que o meu? Não, não posso”, confessou em 2016 numa entrevista à “Cosmopolitan”.
Apesar de jovem, a atriz nunca se esquivou do delicado tema da raça. “Sou a versão aceitável de uma rapariga negra [para a indústria]”, atirou em 2018, tinha apenas 21 anos. “Como mulher negra de pele clara, é importante que esteja a usar o meu privilégio e a minha plataforma para mostrar a beleza que existe na comunidade afro-americana”, concluiu durante uma declaração no Beautycon Festival.
As recentes críticas pós-Emmy são algo a que Zendaya deverá prestar atenção, a julgar pelas suas declarações depois do sucesso de “Euphoria” e mais concretamente da sua interpretação.
“Sinto-me agradecida [pelo sucesso] porque há muita coisa boa que posso fazer e sei quem está a observar-me. Agora, mais do que nunca, com tudo isto que rodeia o movimento Black Lives Matter, sinto a obrigação de estar atenta, de transmitir as coisas certas e estar em sintonia com os organizadores e as pessoas que estão no terreno”, explicou à “The Hollywood Reporter”. “Ser uma jovem atriz da Disney, isso é uma coisa. Ser uma jovem atriz negra é outra. E ser tão exigente comigo própria é todo um outro nível. É também um receio e um medo muito pessoal”, concluiu.
A It Girl
Ela sabe interpretar. Ela sabe dançar. Ela sabe cantar. O talento triplo não é uma condição para o sucesso, mas ajuda. Só que Zendaya tem ainda outro trunfo (pouco) escondido: é quase sempre uma referência em cada passadeira vermelha que percorre. Não é por acaso que já foi convidada para ser a face de diversas campanhas de marcas de renome.
A jovem de 24 anos foi a escolhida para a mais recente campanha da francesa Lâncome. Também em 2019 foi convidada para criar uma coleção cápsula em colaboração com a Tommy Hilfiger, a TommyXZendaya.
É também a cara da linha de roupa de Madonna e das marcas de cosméticos X-Out, CoverGirl e Chi Hair Care — certamente atraídos pela força da atriz que já conta com um bom rol de looks icónicos.
É quase sempre destaque pela positiva na imprensa de moda, que sublinha a mestria com que exibe looks mais arrojados e que constantemente alternam entre o clássico e o moderno: do vestido Fausto Puglisi que usou em 2015 na Met Gala, ao de assinatura Vivienne Westwood dos Óscares do mesmo ano.
“Não acho que haja muitas mulheres que façam o que ela faz na passadeira vermelha. Podiam vestir-lhe um saco do lixo e não só iria ter um aspeto deslumbrante, como ela iria sentir-se lindamente — e iria vender esse saco como se ele se tratasse de um vestido de alta-costura. Está tudo na confiança”, revela o amigo e estilista pessoal Law Roach.
A estrela do futuro
Apesar do ano atribulado para o cinema, o mundo cinéfilo tinha duas datas marcadas na agenda de 2020: a estreia de “Tenet”, o aguardado novo filme de Christopher Nolan; e “Dune”, a épica adaptação do clássico de ficção-científica de Frank Herbert, deixada às mãos de Dennis Villeneuve, que sucede à tentativa de David Lynch. Zendaya pode gabar-se de fazer parte do elenco de pelo menos um deles.
Ao lado de Timothée Chalamet, a atriz assume o papel de Chani, membro da tribo nativa do planeta Arrakis e mulher que assombra as visões do protagonista Paul Atreides. Será o maior projeto da sua carreira.
“Tudo isto tem sido uma experiência mágica. Sempre fui fã de ficção-científica e sempre quis fazer parte de algo tão grande, algo que parece ser literalmente de outro mundo. Só estar presente já foi incrível”, confessou.
Enquanto aguarda pacientemente pela sua estreia no mais falado filme do ano, prepara silenciosamente outra passagem pela Netflix, desta vez como protagonista ao lado de John David Washington — filho de Denzel e protagonista de “Tenet” — numa produção assinada pelo argumentista de “Euphoria”.
Mais uma vez, a pandemia foi simpática com Zendaya. Terminadas as gravações da série da HBO, foi a própria quem contactou o argumentista Sam Levinson, a pedir que avançassem com um projeto durante a quarentena.
Em poucos dias, Levinson finalizou um guião. Ao primeiro contacto, Washington aceitou e Zendaya embarcou. A estreia de “Malcolm & Marie” aconteceu no Toronto Film Festival Market, onde a Netflix comprou os direitos de exibição por cerca de 30 milhões de euros — ultrapassando, assim, a concorrência da HBO, Apple, MGM e Searchlight, entre outras.
Sem grandes pormenores divulgados quanto ao argumento, sabe-se que a história se trata de um drama romântico focado na relação de um casal. Washington é um cineasta que regressa a casa com a namorada, que é Zendaya, depois da sessão de estreia de um seu trabalho que, espera, seja um enorme sucesso.
Anunciado está também o regresso aos blockbusters do mundo da banda-desenhada, onde irá reinterpretar o papel de MJ na sequela do Homem-Aranha de Tom Holland. E porque há sempre espaço para mais um projeto, Zendaya já tem uns quantos nomes de estrelas de Hollywood para juntar ao seu caderno de conquistas.
Em “Finest Hour”, um thriller que está já em pré-produção, vai contracenar com Jake Gyllenhaal e Ansel Elgort, sob a realização de Brian Helgeland. Um filme que conta a história de dois irmãos (Gyllenhaal e Elgort) que se envolvem numa ligação perigosa com uma associação criminosa do submundo de Boston.
Se num ano de pandemia, Zendaya apresenta este currículo, será difícil imaginar o que poderão trazer os próximos anos da miúda que, ainda há pouco, dançava e cantava para crianças no Disney Channel. E se a sua ambição pode servir de guia para a própria carreira — assim parece —, o próximo passo pode levá-la para longe das câmaras.
“Quero produzir e criar espetáculos e filmes, seja eu a estrela ou não. Quero criar algo que as pessoas vejam e digam ‘É tão bom, quem me dera ter sido eu a fazê-lo.’. Porque não? É uma ideia louca, eu sei”, confessou em 2017. Pode não ser tão louca quanto julgava.