Saúde mental, identidade de género, ensino superior, racismo, emergência climática, feminismo, fake news ou gaming. Estes são alguns dos temas que vão ser abordados no programa “Scroll”, que estreia na RTP2 este domingo, 19 de setembro, a partir das 18h35.
Apresentado pelo comediante Diogo Faro e pela influenciadora digital Beatriz Tavares, todas as semanas há um tema distinto em destaque. “Scroll” vai incluir rubricas e pequenos jogos — e um artista convidado por cada episódio —, mas, sobretudo, consiste num debate com diversos jovens que dão a sua perspetiva sobre o tema em questão.
Em conversa com a NiT, Diogo Faro assume que é bastante direcionado para a Geração Z e os Millennial, mas espera que os espectadores possam ter um perfil mais transversal do que esse. As gravações aconteceram em julho e o programa vai estar no ar até ao final do ano. Leia a entrevista com o humorista português de 35 anos, que também tem um novo livro. “Processo de Humanização em Curso” está relacionado com estes temas e está disponível por 13,95€.
Como é que surge este programa “Scroll”, na RTP2?
O programa estava praticamente todo montado, os convidados e os temas definidos, e acho que a última coisa que definiram foram os apresentadores. E abriram um casting, dentro de pessoas que eles escolheram. Eu ganhei e a Bia ganhou o outro cargo. É uma ideia original da RTP2, da Todos, o hub criativo ali em Marvila, e, pronto, fui lá parar assim. Foi uma coisa muito rápida. Chamaram-me para o casting, uma semana depois ligaram-me a dizer que tinha ficado e passado duas ou três semanas começámos a gravar. Depois em duas semanas e pouco tive de gravar 14 episódios de 14 temas diferentes, foi incrível.
Achou logo que tinha a ver consigo?
Achei bastante. Lembro-me de sair do casting, virar-me para a minha agente e dizer “adorava ganhar, adorava ficar a fazer isto”, porque tem muito a ver comigo. Tem um lado leve onde posso fazer piadas na mesma, mas é muito sobre estes assuntos que acho super pertinentes e que devem ser abordados não só na comédia mas enquanto sociedade. E neste caso dar voz a jovens, entre os 17 e os 30 e poucos. E não é só o fator idade. Uma das coisas que acho muito relevantes é que para aí 98 por cento dos convidados não são conhecidos. Aí abriram mesmo um casting ao público no Instagram e o pessoal mandou self-tapes a dizer “Quero ir falar ao ‘Scroll’ de racismo porque”. E depois foi a produção que os escolheu, não foi pelo número de likes, ou porque apareceu num programa qualquer, não. Eram miúdos que queriam mesmo falar sobre estes assuntos. E toda a gente que lá foi foi super eloquente. E vamos dar voz a pessoas que normalmente não têm: jovens transgénero, pessoas não binárias, ativistas ciganos…
Cada programa tem um tema e inclui um debate com várias pessoas que dão a sua perspetiva sobre esse assunto, é isso?
Exatamente. Obviamente, há temas que não vai haver um debate contraditório…
Não será o “Prós e Contras”.
Exato. Podes imaginar que a falar de saúde mental, por exemplo, as pessoas estão todas com opiniões convergentes. Têm é perspetivas diferentes. Houve episódios em que houve mais debate, como o do racismo. E no geral houve testemunhos muito fortes e acho que muitas pessoas em casa, jovens e não jovens, vão-se relacionar e pode até ser uma ajuda importante ouvir aquelas pessoas. E há temas mais leves mas que são interessantes de discutir, a forma como esta geração vê a religião e a espiritualidade, a precariedade laboral, o estado do ensino superior… O único tema onde não me sentia propriamente à vontade e tive de estudar um bocadinho foi gaming, porque já não jogo [risos]. (…) Mas eu acho que no geral o pessoal vai gostar, mesmo aquele pessoal que me odeia e que já está a criticar porque é o Diogo Faro. O programa não é sobre mim. É sobre os convidados e aqueles temas. Eu e a Bia somos veículos para passar a mensagem. Claro que há pessoas que dizem “ah, ele não é isento”. Eu não sou isento, claro que não, mas as pessoas já sabem que tenho opiniões sobre muitas coisas.
Claro, e não é jornalista, não está a fazer esse papel no programa.
Não sou jornalista, estou como apresentador-comediante e não estou sempre a fazer piadas. Não estou ali para brilhar, estou ali para fazer os outros brilhar. O meu papel era ter perguntas interessantes que fizesse que eles tivessem boas respostas. Mesmo quem não gosta de mim, não veja por mim, veja por eles. Não sou eu que estou a dizer “o racismo é mau”, são as pessoas que lá estão, aquele convidado cigano, aquele convidado brasileiro, aquela convidada negra, eles é que vão falar sobre a experiência deles.
E é o papel de usar o seu privilégio para dar voz a pessoas que muitas vezes não a têm.
Sim, é o que tento fazer. Mesmo o “Desta para Melhor”, que não é com pessoas que não têm [voz], porque são pessoas famosas, mas é ouvir os outros, dar o palco aos outros sobre estes assuntos e também é isso que gosto de fazer.
Estava a falar das pessoas que o criticaram quando “Scroll” foi anunciado, e houve uma imediata reação negativa de várias pessoas nas redes sociais. Estava à espera disso?
Claro, eu às vezes digo “pessoal, vou beber um café” e sou criticado, já sabemos como as coisas são. Mas aqui ainda por cima é um canal do estado, e aquele pessoal que quer privatizar a RTP e que no geral é de um espetro político com o qual não concordo e que já não gosta de mim, ficaram logo todos irritados. Mas, pronto, não foi uma coisa assim muito agressiva. Não foi como a Passagem de Ano [risos]. Mas claro que já estava à espera de críticas, e lido bem porque, então neste caso, o programa não é sobre mim, acho que está mesmo bom, e se quiserem criticar critiquem à vontade, mas deem uma oportunidade àquelas pessoas que vão falar sobre fake news, saúde mental, feminismo, emergência climática… Oiçam os jovens, caguem na minha parte.
Fazendo a ponte para o seu novo livro, “Processo de Humanização em Curso”, que também está relacionado com estes temas, foi algo que começou a escrever há quanto tempo?
Foi para aí um mês antes da pandemia que aceitei o convite da editora. Disseram-me que gostavam do meu trabalho, que eu devia transpor estas coisas todas para um livro, eu nunca tinha pensado nisso e assim foi. Demorei um ano e meio a compor as ideias todas.
O Diogo já tinha livros publicados. Nunca tinha pensado em abordar estes temas em livro?
Não, porque é um livro um bocado mais sério, que tem humor, é escrito com leveza, mas é sobre capitalismo, neoliberalismo, trabalho, desigualdade económica, fascismo, racismo, direitos LGBT, feminismo, tudo também de uma perspetiva, lá está, de homem branco cisgénero, etc. Quero ser um aliado na comédia e enquanto cidadão e mostrar como foi o meu crescimento todo, esta minha aprendizagem, como é que eu aprendi com as pessoas negras o que é o racismo, como é que aprendi a ser feminista com as mulheres, e como é que tento usar isso na comédia e não só para, sei lá, tentar contribuir para uma sociedade um bocadinho mais justa. Claro que o meu trabalho, os meus espetáculos e os meus livros não vão mudar o mundo, mas se conseguir ajudar uma ou outra pessoa, um homem a ser um bocado menos macho e perceber que podemos ser feministas, e podemos comportar-nos de outra maneira, se calhar já ajuda alguma coisa.
E sente isso? Tem relatos de pessoas que pelo menos ficaram mais sensíveis a certas causas ou questões que aborda?
Sim, muitas vezes recebo mensagens de coisas muito bonitas que me dizem, mas não vou estar a partilhar no Instagram, não vou estar sempre a armar-me, mas a verdade é que recebo. Mães com filhos a dizerem que os rapazes quiseram pintar as unhas e que foi fixe, homens que começaram a pensar um bocadinho mais sobre masculinidade tóxica e começaram a rever comportamentos que tinham, e foram falar com as namoradas e as mulheres e as amigas para perceber um bocado e também se tornaram mais feministas. Às vezes sei que tenho algum impacto positivo, não são só aquelas ondas de ódio. Isso claro que também é gratificante. Lembro-me de, num espetáculo, e mexeu muito comigo e para mim foi muito bonito, que no fim de um “Lugar Estranho”, que também falo sobre estes assuntos todos — mas pronto, aí é mesmo stand-up, é para rir —, um casal de duas miúdas veio falar comigo no fim, a dizer que tinham gostado imenso e que também impulsionadas por mim e pelas coisas que digo, deixaram de ter vergonha de andar de mão dada na rua. Claro que isto é bonito, sentires que o teu trabalho tem algum impacto direto na vida destas pessoas.
Nos momentos em que as ondas de ódio e de críticas negativas foram maiores, questiona-se sobre se deve continuar a abordar estes temas?
Questiono-me constantemente, não preciso que venham outras pessoas, colegas de profissão, pessoas que não conheço dizer que o Faro é um hipócrita. Porque há sete anos disse aquilo e agora isto. Eu não preciso que as pessoas me digam isso. Eu sou o primeiro, para já a reconhecer piadas más ou coisas estúpidas que fiz ou disse, e depois não é bem hipocrisia. É crescimento. Eu podia, como muita gente, continuar a dizer piadas machistas e racistas, mas optei por outro caminho, de dizer piadas sobre os racistas e os machistas. Hoje em dia lido bem com isso. Sou o primeiro a pôr-me todos os dias em causa, a tentar ser melhor, a aprender com quem tenho de aprender. Lá está, o meu livro… eu não trago nada de novo no livro. É um resumo do que eu aprendi com as outras pessoas. Não sou um filósofo que fiquei a pensar sobre as coisas e agora tenho aqui uma grande novidade para dar às pessoas. Não, estou só a dar a minha perspetiva de tudo o que vou recolhendo das outras pessoas que me ensinam todos os dias a tentar ser um cidadão, sei lá, um bocadinho menos merda [risos].
A aproximação do Diogo a estas causas terá sido gradual, há vários anos não estavam tão presentes no seu trabalho e vida pública. Houve alguma coisa específica que tenha influenciado, algum ponto de viragem? Ou foi só um processo muito gradual e natural de desenvolvimento pessoal?
Na verdade, sempre fui anti-racista, não era machista mas fazia coisas que percebo que pudessem ser vistas como machistas — por exemplo, desvalorizava muito quando as minhas amigas diziam que tinham ouvido piropos, “eh pá, está bem, isso não tem nada de mal, é um homem a ser homem” — mas o que mexeu comigo foram algumas conversas que tive com amigas minhas muito próximas. Eu finalmente consegui pôr-me nos sapatos do que é ser mulher, do que é estar constantemente a ser assediada, do que é ser apalpada nas discotecas, do que é ser assediada no trabalho de formas horríveis, tentativas de violação, de violência doméstica, e depois é perceber que estas coisas estão todas ligadas. E daí começar sempre a pôr-me no lugar do outro e perceber como deve ser horrível seres discriminado só porque tens um tom de pele específico ou uma orientação sexual específica. Mas não houve assim nenhum clique a não ser isto que acho que mexeu sempre comigo, de várias conversas que me fizeram perceber “isto está errado, está completamente errado”. Mas depois é preciso estudar e perceber, porque nós, homens brancos e etc., estamos num sítio privilegiado em que não nos acontece nada, praticamente. Não quer dizer que a vida seja fácil para todos…
Há diferentes classes sociais…
Exatamente, há pobreza, etc. Mas há uma data de coisas pelas quais nós não passamos. Eu continuo a não passar, não consigo imaginar o que é ser discriminado, o que as pessoas sentem, mas deve ser horrível. Mas estou mais consciente do que é o meu privilégio. E às vezes as pessoas acham que o privilégio é ter uma data de benesses. E o privilégio, na maior parte das vezes, é não teres uma data de barreiras à partida. Pode não ser ter muito mais coisas, pode ser só não ter ainda mais barreiras do que muitas pessoas têm. E foi a perceber isso que o meu crescimento foi maior, e fui estudando e lendo livros e falando com pessoas, vais percebendo como está tudo ligado, e é muito isso que é o meu livro: esse meu “Processo de Humanização em Curso”.
Como disse, é um livro com um registo um pouco mais sério, apesar de ter alguma leveza. Sente que estes temas, por serem mais sérios e os abordar de forma mais séria, o têm afastado do humor?
Às vezes. Mas não vejo isso como um problema. Problema é se eu enganar as pessoas. Se eu disser: está aqui um espetáculo de stand-up comedy. E as pessoas vão ao teatro e eu estou lá a dar uma palestra em vez de fazer rir. Isso é grave, acho errado. Mas como comediante não tenho obrigação de estar sempre a dizer imensas piadas. No meu Instagram às vezes escrevo coisas que são super irónicas e com piada e não sei quê, noutras vezes não, é um desabafo ou um texto qualquer. O próximo espetáculo, que já tenho algumas ideias, será para rir, mas também passando por estes assuntos, ou não… Mas não tenho essa pressão. Eu sou maioritariamente comediante, mas também sou cidadão normal.
Nem quer separar as coisas.
Nem consigo separar. Por isso não quero estar sempre a fazer rir, nem sei fazer isso.
O Diogo assumiu as unhas pintadas quase como bandeira. É também uma questão de se colocar no lugar dos outros, neste caso por ser algo associado às mulheres?
Neste caso é mais fácil: é mesmo quebrar estereótipos. Nós começámos isto através do #NãoéNormal e de mais pessoas, era uma campanha para os homens do nosso movimento fazerem um post com qualquer coisa associada às mulheres, e as mulheres associada aos homens, e depois curti, teve impacto, comecei a gostar do ponto de vista estético, já havia mais pessoas a pintar e muito rapidamente para os meus amigos, para a minha família, foi completamente normal. E enquanto cada vez mais pessoas pensarem nisto e perceberem que é um bocado de tinta e que é um estereótipo, assim como tudo é um estereótipo de género, seja usar saia, as mulheres não serem boas pilotos de Fórmula 1 ou não poderem jogar à bola, como tudo isso são estereótipos, se isto fizer as pessoas pensarem outra vez… Mas agora uso porque gosto. E é só um bocado de tinta. Se começarmos a pensar numa data de coisas que nos rodeiam e pensarmos qual é o sentido delas, às vezes as coisas não têm sentido, são só coisas que estamos habituados há décadas ou séculos a ver ou a fazer. E depois paramos um bocadinho para pensar e “ah, realmente, porque é que?” Então maquilhagem e não sei quê… Há imensos povos em que os homens vestem saias.
Em relação ao solo que está a preparar, o que pode contar?
Estou a preparar mas numa fase muito… já escrevi o título, tenho as ideias todas na cabeça, sei o que vai ser, por onde quero passar, não será tão diretamente por estes temas como abordei no “Lugar Estranho”, deve ser algo mais pessoal, mas vai sempre passar por aqui porque faz parte da nossa vida. Estou a pensar nisso agora, mas de resto não tenho mais projetos. Agora estou com tempo, estou a ler montes de livros descansado. Não gosto muito de trabalhar. Adoro a minha profissão, mas não vivo para trabalhar. E sei que há pessoal na comédia e noutros tipos de arte que são obcecados e que estão sempre a trabalhar, eh pá, não, eu gosto muito de fazer espetáculos e de escrever, mas gosto muito de ter tempo livre para estar a ler livros e ir para a esplanada e jantar com os meus amigos. E isso alimenta-me imenso. Eu li imenso para escrever o meu espetáculo ou para escrever o meu livro. Para pensar da forma como penso, tive de falar com montes de pessoas, saber as perspetivas delas, ler montes de livros, ver uma data de documentários, e preciso de tempo para isso. Não posso estar sempre obcecado a tentar produzir. Assim que puder, quero viajar outra vez, quero absorver e pensar. E, depois, começar a criar outra vez. Espero que o espetáculo estreie em 2022. Que já seja com casas cheias, pessoal sem máscaras, que possa ser muito parecido com 2019.