As investigações
A polícia começou a tratar aquele caso como um rapto. Só que não encontrou pistas nem vestígios que apontassem nesse sentido ou que levassem à possibilidade de descobrir o paradeiro de Maddie. O primeiro suspeito do caso foi Robert Murat, um cidadão britânico que vivia com a mãe a poucos metros do Ocean Club.
Murat foi uma figura bastante presente nos primeiros dias do desaparecimento. Tinha ajudado a fazer algumas traduções de testemunhas inglesas e ia explicando à quantidade cada vez maior de repórteres o que ia sabendo — quase como se funcionasse como uma ponte entre os McCann e a polícia e os jornalistas.
A polícia, e alguns jornalistas britânicos que estavam a cobrir o caso, começaram a suspeitar da presença de Robert Murat — todos já ouvimos falar daqueles criminosos que gostam de descobrir mais sobre a investigação do próprio crime, fazendo-se passar por quem não são. E havia um caso famoso e semelhante que tinha acontecido no Reino Unido há relativamente pouco tempo.
O pior é que não existiam quaisquer provas contra Robert Murat. A sua casa — que tinha, realmente, uma vista privilegiada para o apartamento 5A, onde estavam hospedados os McCann — foi revistada três vezes. Nada. Simplesmente suspeitavam do homem de meia idade pelo seu comportamento bastante amigável, como se precisasse de atenção, e pela sua “aparência estranha”. Além disso, havia uma chamada telefónica que Murat tinha feito naquela noite, não muito tempo depois do desaparecimento de Maddie.
Isso leva-nos ao segundo suspeito, Sergey Malinka, um russo que residia na Praia da Luz. Tinha 22 anos e era um informático — estava a construir um site para Robert Murat, que era seu cliente. Segundo os dois, não mantinham qualquer relação sem ser essa. A chamada de Murat foi feita para Malinka depois das 23 horas naquela noite. O pormenor mais curioso é que ambos não se recordam da chamada. Dizem que não houve qualquer conversa. Murat diz que pode ter sido uma chamada acidental.

Sergey Malinka estava a fazer um site para Murat.
Tal como fizeram a Murat, a polícia revistou a casa de Sergey Malinka. Não encontraram nada. Levaram computadores e discos rígidos que poderiam ter provas — não demorou muito até que surgissem nos jornais os rumores de que teriam sido encontrados conteúdos comprometedores, como pornografia, e ao mesmo tempo havia a especulação de que os discos teriam sido formatados. Sergey Malinka alegou que, em primeiro lugar, a maior parte dos discos rígidos eram de clientes — e não dele. Depois, explicou que ter algum tipo de conteúdo pornográfico num computador era algo normal e que não teria nada a ver com qualquer desaparecimento.
Ambos os suspeitos — Murat chegou mesmo a ser constituído arguido — foram seguidos pela polícia, levados para a esquadra (no caso de Malinka, os agentes nem se identificaram e ele diz que chegou a temer pela vida) e pressionados a confessar. Os interrogatórios duraram horas e horas.
Sem chegar a lado nenhum com os suspeitos e as provas que tinham, a investigação liderada por Gonçalo Amaral tomou um novo rumo passadas algumas semanas. A polícia deixou de tratar o caso como um rapto — e, por causa disso, diminuiu bastante as buscas pela criança — e virou-se para os pais.
A PJ acreditava que havia demasiadas inconsistências nos testemunhos dos McCann e dos amigos — e os pais (ou quem tem a guarda parental) têm de ser encarados como suspeitos quando desaparece uma criança. Os McCann foram interrogados e dizem que a polícia queria responsabilizá-los pelo desaparecimento. Foi por volta desta altura que vários agentes e especialistas britânicos começaram a ajudar na investigação.
Um deles era o responsável por uma unidade de cães que detetavam provas forenses. Dois cães ingleses foram levados para a Praia da Luz. Um deles detetava sangue, o outro era especializado no odor a cadáveres. Ambos deram o alerta quando ladraram e sinalizaram que havia vestígios no interior do apartamento, no carro que os McCann tinham alugado (só 25 dias depois do desaparecimento) e em algumas roupas de Kate McCann — que era o principal alvo da investigação. O ADN foi recolhido de todos estes locais e parecia uma prova de fogo — os jornais noticiaram que era um grande avanço no caso.
As análises ao ADN chegaram faseadamente ao longo dos meses seguintes, mas só com uma resposta: eram totalmente inconclusivas. Podia pertencer a Maddie mas o ADN dos pais é bastante semelhante ao dos filhos (e irmãos) e nem sequer tinha sido encontrado sangue. O fluido também podia ser saliva ou sémen. A perseguição ao casal McCann continuou mas, eventualmente, Gonçalo Amaral foi demitido da investigação.
A hipótese que a polícia colocava era a de que tinha havido algum tipo de acidente doméstico e que o casal tinha ocultado o corpo para não sofrer consequências — disse-se que os McCann poderiam dar medicamentos às crianças para elas adormecerem e que poderia ter existido algum tipo de overdose. Afinal, os irmãos gémeos não tinham acordado a noite inteira quando Maddie desapareceu e meia Praia da Luz estava à sua procura. De qualquer forma, isso nunca foi provado.
Um argumento dado por aqueles que acreditam na inocência de Gerry e Kate McCann é que os pais sempre lutaram para que o caso, mesmo nos momentos em que esteve arquivado, nunca desaparecesse. Pelo contrário: contrataram especialistas de relações públicas para que o nome Maddie fosse conhecido em todo o mundo, com a esperança de que um dia a voltariam a encontrar. Foram gastos 12 milhões de euros (a maior parte de doações) nos últimos 12 anos.
E isso tem muito a ver com os detetives privados que os McCann contrataram. Primeiro foi a agência espanhola Metodo 3. Investigaram Murat e Malinka, mas não chegaram a quaisquer indícios. E começaram a tentar pesquisar por uma potencial rede de tráfico humano, ligada à pedofilia, que poderia operar no Algarve. Várias pessoas foram investigadas mas nunca se chegou a nenhum resultado concreto. As relações entre os espanhóis e os McCann — financiadas pelo empresário Brian Kennedy, milionário que tem sempre apoiado a família — terminaram quando o diretor do Metodo 3 disse à imprensa que estavam prestes a descobrir a identidade do raptor e a desvendar o caso. Era mentira. Tinha sido tudo dito para ter publicidade gratuita para a agência de detetives privados.

Robert Murat foi indemnizado.
Depois, os McCann voltaram a não ter sorte. Contrataram a Oakley International, uma empresa americana que teria ex-agentes do FBI, CIA e MI6 a trabalhar como detetives privados. Foram gastos milhares e milhares de euros mas com ainda menos resultados. As promessas que tinham sido feitas de descobrir pistas não foram cumpridas. E percebeu-se que o líder dessa empresa, Kevin Halligen, era um burlão que nunca tinha sido agente secreto — pelo contrário, já tinha estado na prisão por ter cometido fraude. Era tudo um esquema para ficar com o dinheiro da família britânica.
Os McCann viraram-se depois para dois britânicos que tinham sido polícias, que seguiram algumas pistas mas que não tiraram também grandes conclusões. Não durou muito até chegarmos a 2011, quatro anos depois do desaparecimento, quando o primeiro-ministro britânico, David Cameron, ordenou que a polícia britânica reabrisse o caso — as autoridades portuguesas fizeram o mesmo. A investigação, sob o nome Operação Grange, continua desde então.
Os avistamentos (e possíveis suspeitos)
Num caso sem provas físicas, todas as investigações, tanto conduzidas pela polícia como por detetives privados, basearam-se inevitavelmente nos depoimentos dados pelas testemunhas. O desaparecimento de Madeleine McCann tornou-se o mais famoso do mundo — a máquina de relações públicas da família trabalhou para isso mesmo. E criou uma linha de informações para que as pessoas que pudessem saber de algo telefonassem a contar.
Milhares e milhares de pessoas ligaram durante meses a dizer que tinham avistado uma criança parecida com Maddie — fosse na Austrália, na Bósnia ou em Marrocos. Só que há milhões de raparigas loiras semelhantes à menina inglesa que desapareceu. E isso levou a que a investigação fosse difícil e confusa.
Os primeiros avistamentos, porém, aconteceram na própria noite de 3 de maio de 2007. Foi Jane Tanner, uma amiga que estava com os McCann que, quando fez a sua ronda para espreitar os miúdos, viu um homem a carregar nos braços uma criança de pijama. Só depois do desaparecimento é que percebeu que ela poderia ser Madeleine. Um homem com a mesma descrição foi visto na rua por um casal irlandês, alguns minutos depois.
Nada é certo sobre este avistamento: o casal irlandês disse, meses mais tarde, que poderia muito bem ser Gerry McCann a levar a filha nos braços (depois de terem visto Gerry a carregar um dos gémeos ao colo a sair do avião numa chegada a Inglaterra). Por outro lado, havia a hipótese de que aquele homem fosse simplesmente outro turista, que tinha ido buscar a filha à creche do Ocean Club (serviço que os McCann e os amigos não usavam). Chegou mesmo a ser encontrado um homem que correspondia à descrição e que teria as roupas que Jane Tanner tinha visto. Era um turista que passava férias no mesmo local e foi, por isso, descartado.
Mas houve mais, bem mais potenciais suspeitos que foram vistos por testemunhas. O Metodo 3 descobriu que existia um predador sexual à solta no Algarve, que tinha sido responsável por vários casos de abuso sexual de menores — e sobretudo em casas de turistas britânicos. Nunca foi encontrado.
Poucos dias depois do desaparecimento, um casal de turistas avistou uma menina loira numa bomba de gasolina em Marrocos — dizem que se parecia exatamente com Maddie. Mas só quando chegaram a Espanha é que souberam do desaparecimento.
Acima do apartamento 5A, onde estavam hospedados os McCann, existia outra casa. Uma das pessoas dessa habitação testemunhou que, na tarde antes do desaparecimento da criança, viu um homem com um comportamento suspeito, a agir sub-repticiamente, junto do quintal da casa dos McCann. A forma como se mexeu chamou-lhe a atenção — mas este suspeito nunca foi encontrado.

Os pais foram arguidos, mas nunca houve provas conclusivas contra eles.
Outras duas hóspedes do Ocean Club viram naquele dia dois homens altos e louros, com aspeto suspeito, perto de um apartamento que não parecia estar a ser alugado por ninguém — também nunca se soube quem eles eram. Um homem que foi descrito como tendo a cara severamente marcada por acne foi visto por duas testemunhas como estando ao pé da casa dos McCann nos dias antes do desaparecimento — como se estivesse a estudar o local. Mas não houve mais pistas.
E existiram também avistamentos de casais que poderiam querer roubar uma criança. Um dono de uma pizzaria na Praia da Luz estava a voltar do trabalho para casa quando apanhou de surpresa, na estrada, um casal a segurar uma criança. Pareciam querer escondê-la e estavam perturbados por estarem a ser vistos.
Já um executivo britânico, que estava em Barcelona, em Espanha, foi abordado por uma mulher na rua na madrugada da noite em que Maddie desapareceu. “Tem a minha nova filha? É você que vai entregar-ma?”, perguntou a mulher com um sotaque inglês. Quando percebeu que não era aquele homem que procurava, foi-se embora. Ele nunca mais a viu. Mas foi mais uma pista relevante que não teve seguimento.
E existiu ainda uma residente da Praia da Luz que viu uma mulher de um casal que conhecia — sabia, diz ela, que há vários anos eles queriam ter um filho e não conseguiam — a conduzir o carro naquela noite, com alguém no banco de trás.
De qualquer forma, não seria difícil descobrir a rotina dos McCann e dos amigos. Jantavam todos os dias naquele restaurante à mesma hora e deixavam os miúdos em casa a dormir. Aliás, estava afixado no restaurante a pré-reserva dos turistas britânicos — com a indicação específica de que assim era porque as crianças iam ficar sempre a dormir nos apartamentos.
E talvez o caso mais gritante tenha a ver com uma alegada rede de — no mínimo — burlões, que tentavam angariar fundos porta a porta, junto dos turistas, para doarem dinheiro a um orfanato na zona da Praia da Luz. A questão é que, segundo a série documental, não existe qualquer tipo de orfanato naquela área.
Seriam pelo menos quatro homens a fazer parte deste esquema. Segundo uma turista britânica, que abriu a porta a um deles, o homem estava a falar consigo sobre a angariação de fundos mas parecia mais interessado em olhar para dentro de casa, onde estava a filha da turista, que tinha precisamente três anos, a mesma idade de Maddie. No dia seguinte, quando estava a tratar de uma tarefa doméstica no piso de cima da casa, ouviu um barulho lá em baixo. Desceu e viu o mesmo homem ao pé da sua filha. Quando ele viu a mãe, fugiu e nunca mais foi encontrado.
Tudo isto poderá estar relacionado com redes de tráfico humano, ligadas ou não a casos de abuso sexual de menores. Neste mercado ilegal, Maddie seria valiosa pelas suas características físicas. Os investigadores disseram que, de qualquer forma, era altamente raro que uma criança de classe média alta fosse raptada para estas redes.
A influência da comunicação social
Os media foram importantes no caso de Maddie McCann. Foram eles que a tornaram a criança desaparecida mais famosa do mundo, mas também houve várias notícias com informações falsas — muitas de fugas de informação dentro da PJ. Tanto que Robert Murat recebeu indemnizações no valor de cerca de 700 mil euros por vários jornais britânicos lhe terem chamado pedófilo e terem insinuado que ele estava envolvido num possível rapto.
Os amigos dos McCann também venceram em tribunal um caso de difamação contra vários órgãos de comunicação social. De qualquer forma, foram determinantes para influenciar a opinião pública sobre quem seriam os culpados — e havia dezenas de repórteres permanentemente estacionados à porta da família britânica, fosse no Algarve ou no Reino Unido.

Hoje Madeleine tem, ou teria, 15 anos.
Os outros casos em Portugal
De forma a contextualizar, “The Disappearance of Madeleine McCann” aborda ligeiramente a investigação da Casa Pia, mas fala sobretudo do desaparecimento de Rui Pedro — o rapaz português que desapareceu em 1998 e nunca foi encontrado, apesar de uma foto sua ter aparecido na investigação de uma rede de pedófilos.
A comparação com o caso de Maddie é feita especialmente porque nunca uma investigação destas tinha tido tantos meios em Portugal. A mãe de Rui Pedro aparece na série da Netflix (numa declaração antiga, de arquivo) a dizer que, quando o seu filho desapareceu, não tinha tido toda aquela preocupação e autoridades à sua procura.
O caso em que se focam mais é o de Joana Cipriano, a rapariga de oito anos que desapareceu numa aldeia algarvia em 2004. Era de uma família pobre e vivia com a mãe e o tio. Ambos foram condenados por terem assassinado a criança — mas a série documental da Netflix mostra um testemunho com o antigo colega de cela do tio, que diz que ele lhe tinha explicado que tinha muito dinheiro por ter vendido Joana a uma família rica.
A mãe de Joana, Leonor Cipriano, terá confessado o crime de terem espancado a criança até à morte — e o tio admitiu que a tinham esquartejado para se livrarem do corpo. Na altura da confissão, Leonor Cipriano apareceu espancada depois do interrogatório. Quem estava a liderar a investigação? Gonçalo Amaral, que se tornou arguido nesse caso justamente no mesmo dia em que começou a investigação de Maddie McCann. Quem também participou em ambos os casos foi o ex-inspetor da PJ, Paulo Pereira Cristóvão, que é um dos entrevistados em “The Disappearance of Madeleine McCann” e que está a ser julgado por vários assaltos violentos a residências na zona da Grande Lisboa.
No caso de Maddie, Gonçalo Amaral, que sempre acreditou que os pais eram os culpados, disse que os McCann tinham ocultado o corpo da criança depois da sua morte acidental. Foi o que disse, aliás, no livro “A Verdade da Mentira”, um bestseller em que contava a sua versão sobre o caso e que o levou a enfrentar a família britânica em tribunal — e a perder. Amaral dizia que os McCann tinham escondido o corpo nalgum tipo de arca frigorífica antes de moverem o cadáver mas sem qualquer razão aparente que apontasse para essa hipótese — a não ser por ter sido precisamente o que tinha acontecido no caso de Joana Cipriano.
As conclusões gerais
Depois de vermos os oito episódios de “The Disappearance of Maddie McCann” e analisarmos exaustivamente todos os detalhes, torna-se óbvio que o caso seria sempre muito difícil de resolver. Nunca houve provas físicas conclusivas sobre o que teria acontecido à criança depois do seu desaparecimento.
Além disso, nunca houve provas sustentadas contra nenhum suspeito em particular — apenas isso mesmo, suspeições baseadas em poucos dados, mesmo que os McCann e Robert Murat tenham sido constituídos arguidos por um período de tempo. Ficamos com a sensação de que a polícia não agiu bem e poderia ter feito mais. E com a ideia de que pode haver uma perigosa e organizada rede de tráfico humano que possa ter raptado Madeleine McCann. Atualmente, a menina inglesa tem, ou teria, 15 anos. Esta série documental parece ter explorado grande parte daquilo que era possível saber. Os pais de Maddie recusaram-se a ter qualquer papel no documentário, alegando que a investigação policial da Operação Grange ainda está em curso. As organizações especializadas em encontrar crianças desaparecidas há vários anos — e sabemos através do documentário que existem cada vez mais casos de sucesso — explicam que com os avanços da tecnologia, sobretudo o ADN e o reconhecimento facial, será cada vez mais fácil encontrar estas crianças.