É, até hoje, o único português a ter vencido um Prémio Nobel da Medicina. Falamos de António Egas Moniz, nome conhecido em Portugal e no mundo, mas do qual não sabemos assim tanto. A maior parte das pessoas saberá apenas que criou o procedimento que deu origem à famosa lobotomia — que hoje é um método bastante criticado. Na altura, foi uma revolução na medicina, que teve um enorme impacto internacional.
Foi precisamente para revelar mais pormenores sobre a vida fascinante de Egas Moniz que a RTP2 e a argumentista Filipa Martins se juntaram para criar um telefilme, que estreia esta quinta-feira, 31 de dezembro, o último dia do ano. Ligue a televisão a partir das 20h45 para conhecer a história de “O Ego de Egas”, com um guião adaptado da sua biografia, numa produção realizada por José Carlos Santos.
O ator João Lagarto interpreta o protagonista, ao lado de personagens recriadas por Ana Nave, João Jesus, Virgílio Castelo e Guilherme Filipe.
Até lá, leia a entrevista da NiT com a argumentista Filipa Martins sobre este filme mas também acerca da série “Três Mulheres” — que vai ter uma segunda temporada na RTP e na HBO — e do filme biográfico “Bem Bom”, sobre as Doce, que deverá chegar no próximo ano.
Como é que surgiu a ideia de criar um filme biográfico sobre Egas Moniz?
Este projeto surge depois do interesse por parte da RTP2 de começar a apostar em produção nacional própria — revelando dados pouco conhecidos de figuras importantes na história e sociedade portuguesa. A figura do Egas Moniz tem em si alguns mitos, uns mais próximos da verdade, outros menos, que faz com que genericamente as pessoas tenham pouca curiosidade sobre ele, ou de alguma maneira o rejeitem à partida. É uma figura controversa, polémica e normalmente essas figuras tendem a dar boas histórias. E, por isso, bons filmes e bons guiões. Neste caso específico, o que a maioria das pessoas sabe sobre o Egas Moniz, além do facto de ter vencido o Nobel da Medicina, é que foi o precursor ou o antecessor de uma técnica bastante invasiva, de cirurgia cerebral, que numa fase posterior foi vulgarmente conhecida como lobotomia. Isso remete-nos para o nosso imaginário fílmico, nomeadamente para o “Voando Sobre um Ninho de Cucos”, e associamos consequências bastante negativas a esse procedimento clínico. Egas Moniz criou uma nova especialidade, a cirurgia cerebral, e inventou também um instrumento, que o que fazia era um corte de parte do cérebro — e como consequência os pacientes tornar-se-iam mais calmos, numa das versões; mais apáticos e despersonalizados, noutra das versões. O que é fascinante nesta figura não passa apenas pelos detalhes da sua biografia que são mais conhecidos, mas por todos os outros recantos que são mais obscuros, e que me surpreenderam. Ele dedica-se ao trabalho científico numa fase muito tardia da vida, a partir dos 50 anos. Antes disso teve uma carreira como político, foi deputado durante vários anos, e sofreu um atentado. Levou sete tiros — o oitavo falhou por pouco o abdómen. E foi este detalhe, de ter sobrevivido de uma forma quase miraculosa, que fez com que a RTP quisesse contar esta história. E eu acabei por encontrar uma figura que tem quase um lado luminoso e um obscuro.
Em que sentido?
Apesar de ele ser mais conhecido pela leucotomia, que depois deu origem à conhecida lobotomia, que se disseminou de uma forma, podemos dizer que bárbara, nos Estados Unidos, quase como uma prescrição à carte para situações de crianças um pouco mais rebeldes ou que eram avessas à disciplina — e doentes psiquiátricos… A verdade é que ele inventou um procedimento que hoje ainda se utiliza, a angiografia cerebral – com que ele esteve nomeado para o Nobel, não tendo chegado a vencer. Por isso é que eu falo de um Egas bom e de um Egas mau, neste sentido muito simplista. O procedimento da angiografia cerebral é permitir através de um raio-X — algo banal hoje em dia — vermos os caminhos do cérebro. Como uma espécie de Google Maps do cérebro humano, com as veias, as artérias — e, a partir daí, detetarmos a localização de tumores. Esta invenção foi extraordinária e fundamental para o avanço da cirurgia cerebral. Porque até ao momento qualquer cirurgião que abrisse uma cabeça para procurar um tumor era um cego com um bisturi na mão. E esta invenção de Egas Moniz permitiu que o cirurgião soubesse onde existia o problema. Este avanço científico foi feito em Portugal, um pouco às escondidas da restante classe médica, com um grande nível de secretismo, em que Egas Moniz praticou primeiro em animais e depois em cadáveres, e só depois, com a aprovação dos pacientes, foi para o ser humano vivo. Uma das coisas que as pessoas não sabem é que ele foi várias vezes nomeado para o Nobel da Medicina, e só uma vez venceu. E venceu talvez pelo procedimento mais polémico hoje em dia. É aí que eu falo do lado mau do Egas. Em 2020 esse procedimento é bárbaro, felizmente a ciência evoluiu. Mas o que foi interessante e difícil foi colocar-me naquela época e, com os conhecimentos que Egas Moniz tinha à sua disposição, perceber aquela forma de pensar. E fazer um retrato justo, que não fosse nem laudatório nem incriminatório. Por exemplo, a maior parte dos pacientes que foram sujeitos a este tipo de intervenção eram conhecidos como os incuráveis. No fundo, a ciência dizia que não tinha nada à sua disposição que permitisse que aquelas pessoas se tornassem sãs novamente — nem dava para condicionar o seu comportamento. Aí entramos num túnel de horrores, vamos buscar à nossa imaginação todo aquele tipo de torturas que eram aplicadas em manicómios dos anos 40 e 50, com os coletes de força, os duches frios, criar dor física com injeções para que se preocupassem mais com essas do que com as dores psicológicas, celas, etc.. Portanto, este tipo de intervenção que o Egas Moniz criou foi para ir ao encontro desses casos.
E o lado controverso que falava sobre esta figura tem a ver precisamente com isto.
Sim, ainda hoje circulam abaixo-assinados, mundialmente, para ser retirado a Egas Moniz o Prémio Nobel da Medicina, porque consideram que este procedimento não é válido. Na verdade, é uma barbárie. E a forma como depois foi feita nos Estados Unidos assemelhou-se a isso. A lobotomia, que foi a americanização desta prática, foi feita quase em série. Havia um médico famoso, que tinha um carro adaptado para fazer estes procedimentos, que era o lobotomóvel, e eles faziam estas intervenções nas salas de estar das pessoas. Ou seja, se tivesses um filho um pouco mais rebelde ligavas a este médico, que tinha anúncios no jornal e na televisão, para que ele fosse à tua sala e cortasse parte do cérebro do teu filho. E isto foi feito aos milhares. Portanto, esta intervenção teve consequências graves na vida de muita gente.
E também é esse trauma que fica e mancha a imagem de Egas Moniz.
Naturalmente, esta figura ficou coberta de um anátema muito grande. O esforço que fiz foi de perceber a sua invenção no seu contexto específico. Não que seja defensável — ele era uma figura de trato difícil. Era uma pessoa com um ego muito grande, daí o filme também se chamar “O Ego de Egas”. E muitas vezes ficamos na dúvida se a sua obstinação por esta prática e pela descoberta científica se devia mais ao avanço médico e científico ou ao facto de ele querer pôr o seu nome na história e de querer vencer um prémio Nobel. E a razão invocada pelo comité para ele ter vencido é que permitiu tirar de manicómios cerca de dois terços dos incuráveis, fazendo com que passassem para enfermarias comuns ou voltassem ao seu domicílio, libertando assim os cofres do estado desde peso que alegadamente era muito grande, e poupando o dinheiro aos contribuintes, mundialmente. Foi uma razão económica e não científica. Na minha opinião, ele venceu pela invenção errada e pelas razões erradas.
O filme tem partes fictícias?
Transversalmente, é baseado em factos reais. Naturalmente, o encontro com determinados pacientes, o seu nome, tende a ser ficcionado. Mas por norma o desfecho é real, Egas Moniz perdeu vários pacientes no bloco operatório durante estes procedimentos e isso é retratado com crueza no filme.
Foi fácil de perceber o que era mais interessante de contar num filme, tendo em conta toda a informação que existia?
Ele chegou a estar preso, era profundamente anti-salazarista. Tanto que, quando venceu o prémio Nobel, enquanto noutros países faziam feriados nacionais ou cerimónias oficiais — e era uma conquista enorme, foi a primeira vez que Portugal ganhou um prémio Nobel — Salazar apenas lhe escreveu uma nota a parabenizá-lo. Nada mais, nem sequer o recebeu. Portanto, a relação de Egas Moniz com o regime era extremamente tensa. Mas ainda assim julguei que a parte mais interessante e que faz com que ele seja uma figura mundial foi o seu percurso académico e a forma como fez avanços científicos num contexto quer político, quer científico, muito controverso e complicado, com muita oposição interna.
Sei que também está a trabalhar na segunda temporada de “Três Mulheres”. Há alguma previsão para a estreia ou para o início das gravações?
Vai começar a ser filmada no próximo ano, a produtora é a David e Golias, o realizador será o Fernando Vendrell. Passa-se no pós-25 de abril e a segunda temporada já foi adquirida pela HBO também, além de ir para a RTP. Começa na revolução e vai até ao momento em que é discutido na Assembleia da República o primeiro projeto apresentado pelo Partido Comunista de liberalização da interrupção voluntária da gravidez. Que, à época, foi chumbado. Natália Correia, que era deputada da AD – estamos a falar de PSD e CDS – foi a única deputada de direita a levantar-se e a votar a favor, e a fazer um discurso no hemiciclo. Passamos obviamente pelo acidente de Camarate, pela morte de Snu Abecassis e Sá Carneiro — antes disso, pela separação da Snu —, e pela transformação de Maria Armanda em Vera Lagoa. Acho que esta segunda temporada é mais interessante pela mesma razão que Egas Moniz é uma figura interessante.
Em que sentido?
Porque gosto de contar histórias em que não seja fácil percebermos quem é o “bom” e quem é o “mau”. Tolstoi tem uma frase que é uma espécie de bíblia para mim, que é “o melhor conflito não é entre o bom e o mau, é entre dois bons”, que têm as suas razões para agirem de forma diferente. Enquanto na primeira temporada era muito fácil perceber, de uma forma simplista, quem eram os “bons” e os “maus” — estamos a falar de uma temporada que aconteceu durante o Estado Novo, havia um regime ditatorial, as pessoas eram presas, torturadas, os bons defendiam a liberdade, os maus defendiam um regime totalitário. No pós-25 de abril, as nossas protagonistas — a Snu Abecassis, a Maria Armanda Falcão (que se tornou Vera Lagoa) e a Natália Correia —, que eram acérrimas defensoras da liberdade durante a ditadura, tornaram-se extremamente críticas do processo revolucionário em curso. E foram apelidadas de fascistas. E Vera Lagoa criou “O Diabo”, que sofreu, nomeadamente, um atentado à bomba. E a Snu várias vezes teve confrontos com tipografias, entidades sindicais que de alguma maneira paralisavam a sua editora. Estamos a ver três mulheres que foram bastiões de liberdade na ditadura, mas no pós-25 de abril foram extremamente críticas de quem estava à frente do processo revolucionário, num clima de liberdade. E por apontarem o dedo a essas imperfeições, eram apelidadas de reacionárias. Isso faz com que tenhamos de contar esta história com pinças muito finas, para que consigamos perceber as razões delas e as razões do contexto — e chegarmos às nossas próprias conclusões: quem é que tinha razão naquele momento? Todos? Nenhum? Ou eram todos bons, com as suas verdades? E eu acho que estas são histórias mais complexas de contar, mas são as mais interessantes. É como o Egas Moniz. Ele era bom ou mau? Não podemos caracterizá-lo de uma forma tão fechada. Fez coisas extraordinárias para a sua época, mas também fez coisas controversas, extremamente dolosas para muita gente.

Filipa Martins é argumentista e escritora.
E o interessante também é explorar essas várias facetas.
Exatamente — essas são as boas histórias de contar. Não é preto e branco, há muitos tons de cinzento. E no caso do Egas causa a quem vê o filme, espero eu, uma luta interior: de ao mesmo tempo percebê-lo e condená-lo. De admirá-lo e de considerar que ele foi demasiado além. Ele diz várias vezes nos diários que “podíamos estar a fazer experiências que alguns consideravam injustificadas, mas se essa doutrina fosse avante, nunca haveria progresso científico”. Podemos concordar com isto ou não e são essas interrogações que são interessantes e que fiz durante a escrita.
É importante o reconhecimento de plataformas internacionais como a HBO, ao quererem ter uma série como “Três Mulheres” no catálogo?
Neste momento o audiovisual português está a atravessar um momento muito interessante. Pela primeira vez, estamos a conseguir chegar a plataformas internacionais e ao mesmo tempo é uma enorme responsabilidade. É começar a competir num aquário bastante maior e acho que isto tem de ser encarado como um desafio quase transversal de todo um setor. Acho que, mais do que nunca, argumentistas, produtores, estações de televisão, têm de saber trabalhar em conjunto e perceber que aqui está uma grande oportunidade para começarmos a deixar marca internacional, na forma como nós contamos as nossas histórias. É que eles não estão à procura da série policial, que toda a gente faz, que os Estados Unidos fazem muito melhor do que nós. Estão à procura de histórias profundamente portuguesas. E foi por isso que se interessaram por um produto como “Três Mulheres” e outros que também estão na HBO. Essa marca portuguesa de contar a nossa história, com um foco global e qualidade internacional. Acho que é o grande desafio.
Também participou na escrita do guião de “Bem Bom”, o filme sobre as Doce, que ia estrear este ano mas foi adiado. Obviamente é um tema muito diferente destes de que já falámos. O que é que a atraiu para este projeto?
A história das Doce vai ter, no fundo, duas versões: a série, que será transmitida na RTP, que faz o arco desde a criação do grupo até ao seu final; e o filme, que termina quando elas vencem o Festival da Canção.
E o que vem primeiro, de ambos os formatos?
Provavelmente será o filme, e alguns meses depois estreia a série. O que é que foi mais interessante? Mais uma vez temos de contextualizar. As Doce surgiram quando Portugal ainda tinha na memória um regime de 40 anos de ditadura, em que as mulheres usavam as saias por debaixo do joelho. Esse lastro, do ponto de vista de valores na sociedade, ainda estava muito presente — porque os valores sociais não se mudam por decreto. Foram muitos anos a pensar de uma forma conservadora, a ver os papéis das mulheres e dos homens de uma forma conservadora. As mulheres estavam a chegar paulatinamente ao mercado de trabalho e de repente surge um fenómeno de quatro mulheres ousadas, com uma forma de estar e de vestir completamente diferente do que os portugueses estavam habituados, a falar de sexo de uma forma desabrida e descontraída. Portanto elas tiveram reações viscerais. Ninguém esteve indiferente ao fenómeno das Doce. Por um lado, tinham hordas de fãs, esgotavam concertos. Ao mesmo tempo eram quase vistas como prostitutas. E foi este papel das Doce, que tiveram na libertação das mulheres e também na celebração da alegria — porque Portugal era um país fechado, tristonho, recatado, não se falava alto, não se dançava daquela forma — e elas foram para cima do palco e disseram que era possível. Uma das coisas que me fascinaram foi este choque entre o que elas eram e o país que existia.
E que suscitou as tais reações e que fez com que tivessem o impacto que tiveram.
Exatamente. E ver isto do ponto de vista sociológico foi extremamente interessante. Elas foram vítimas de variadíssimos boatos, nós chegámos a falar com elas e relataram-nos situações penosas. Há uns mais conhecidos do que outros, mas desde boatos que diziam que consumiam drogas, ou que tinham sido presas, hospitalizadas, foram alvo dos tablóides que surgiram nos anos 80. A sua vida privada era explorada, e tudo isso era novo em Portugal. Depois, eram encaradas com muita desconfiança por aqueles que viam as suas músicas e a sua forma de estar como música de segunda, popularucha. Os eruditos da música que olhavam para elas como umas miúdas giras que cantavam e pouco mais. E uma das coisas que explorámos, bastante mais na série do que no filme, foi uma visão a 360 graus da vida delas. Não só em cima do palco, mas aquilo que se passava nos bastidores. A luta entre a vida pessoal e aquilo com que tiveram de lidar no dia a dia, os boatos, as agressões… Muitas delas ouviram a frase “um homem honrado não casa com uma Doce”. Porque elas de facto eram vistas quase como prostitutas por uma certa faixa social. Mas quando subiam para cima do palco tinham de estar irrepreensíveis, no seu melhor. E tiveram invasões de palco, elas eram apalpadas, apupadas, tiveram invasões de hotéis… de homens que lhes entraram pelos quartos adentro. Foram anos em que foram extremamente violadas nas suas mais diferentes formas. E foi muito interessante conseguir trabalhá-las na sua individualidade. Porque elas apresentavam-se como as Doce, mas eram quatro e totalmente diferentes, tinham personalidades antagónicas. As conversas de bastidores, as discussões, as amizades e as inimizades, tudo isso acho que dá muita riqueza à série.
O ano passado estreou “Variações”, um filme biográfico sobre uma figura importante da música popular portuguesa também dos anos 80, e tornou-se num dos filmes nacionais mais vistos de sempre nos cinemas. As Doce e o “Bem Bom” podem ir pelo mesmo caminho, no sentido de também serem ícones musicais que marcaram aquela época?
Acho que o Variações, além de ter sido um artista extraordinário, multifacetado e com uma história muito singular, também se tornou uma espécie de bandeira para muita gente. E ele próprio era, só pela sua presença, um bastião de liberdade. Só o facto de, naquela altura, alguém se mostrar diferente e de se assumir como tal, tinha e teve um impacto que ainda se vive nos dias de hoje. Acho que não faz sentido fazermos comparações, mas as Doce também têm essa mensagem — de que podemos ser quem somos. E com as represálias que o Variações também teve — isto sem compararmos a qualidade artística de ambos. Estamos a falar de fenómenos e de simbolismo. Acho que as Doce disseram às mulheres que elas podiam ser quem quisessem. E isso, naquela época, e ainda hoje, é extremamente importante. E além disso é alegria. É difícil não trautear aquelas músicas quando as ouvimos durante algum tempo, e acho que todos estamos necessitados de alguma alegria no próximo ano.