Com “Dark”, Jantje Friese e Baran bo Odar criaram uma das primeiras produções da Netflix não faladas em inglês a tornar-se um sucesso internacional. Abriram caminho, certamente, para que muitas outras séries conseguissem ter oportunidades na plataforma de streaming.
Em novembro, os dois criativos alemães apresentaram o seu novo projeto na Netflix. “1899” é uma série de oito episódios que se passa precisamente nesse ano e que acompanha uma viagem de imigrantes europeus com destino à América. Quando encontram outra embarcação de migrantes à deriva em alto mar, um acontecimento inesperado torna a sua viagem num autêntico pesadelo.
Do elenco internacional faz parte um português, José Pimentão, que interpreta Ramiro, uma personagem espanhola. O ator já tinha trabalhado em produções como “Al Berto”, “Eva”, “Valor da Vida” e “Teorias da Conspiração”, mas nunca num projeto com esta dimensão. A NiT falou com ele sobre “1899”, que tem sido um sucesso de audiências — neste momento ocupa o segundo lugar do top 10 das tendências televisivas do catálogo nacional. Leia a entrevista.
Como é que conseguiu este papel?
Foi através de um casting que teve três etapas. Eles estavam à procura de um ator português para esta personagem do Ramiro, especificamente. E vieram cá a uma série de agências. Foram à minha, fiz o casting e acabei por ficar na produção.
E qual foi a sua primeira impressão da personagem, e da série no geral?
Esta personagem é muito desenhada. Houve algo que sempre me cativou, que foi o facto de o percurso dela ao longo da série ser uma espécie de caminho de superação. Ou seja, o Ramiro ao longo dos episódios vai encontrando as forças necessárias para enfrentar os obstáculos com os quais se depara. E acaba por tentar — começar a tentar — resolver algumas das questões da vida dele. Nomeadamente as que tem com o Ángel. Portanto, há toda uma espécie de momento de afirmação do Ramiro. Isto talvez tenha sido a principal coisa que me cativou na personagem. Relativamente à série, a primeira vez que me falaram do conceito e em que li o guião, pensei: “para onde é que viaja a cabeça desta malta para inventar uma coisa destas?” [risos]. O Bo e a Jantje são duas mentes brilhantes, verdadeiramente, e toda a forma como escrevem os guiões, além de intrincada, no final acaba por fazer sentido e acabas por retirar um significado daquilo que eles te pretendem transmitir. Acho que a primeira coisa que senti quando li o guião foi mesmo “que empreitada que para aqui está” [risos], “como é que vamos descalçar esta bota?” Mas conseguimos e ao longo do processo fomos sempre aprimorando aquilo que fomos fazendo. Neste momento estamos todos satisfeitos com o resultado.
Já conhecia o trabalho deles? Já tinha visto, por exemplo, “Dark”?
Sim, conhecia do “Dark”.
Que também é uma série complexa, com um conceito bastante sólido.
Sim, eu diria que esta aqui é um patamar acima, é ainda mais ambiciosa. Quem viu as duas séries sabe disso: há uma identidade da Jantje e do Bo que vês no trabalho, embora, por outro lado, seja uma série completamente diferente daquilo que era o “Dark”. Tenho tentado dizer às pessoas: esqueçam aquilo que é o “Dark”, não procurem o mesmo tipo de pistas, o mesmo tipo de lógica, porque aqui é um bocadinho diferente. Mas, sim, sente-se muito a identidade e a forma como eles criam tensão, como revelam informação. A forma como te fazem ficar preso à história e a querer ver o próximo episódio está muito presente naquilo que é a identidade deles enquanto criadores.
Para si foi desafiante, ao início, compreender o conceito de “1899”? Ou agarrou-se de imediato a ele?
Teve dois lados. Por um lado, a teoria das simulações é mesmo uma teoria desenvolvida por um professor com três hipóteses — e esta foi uma das coisas nas quais eles se basearam para desenhar o conceito da série. Embora tenha havido muita coisa que nós próprios não compreendemos porque até nem sabemos. O Bo e a Jantje muitas vezes nem nos dizem muita coisa. Fazem-nos, tal como às personagens, estar no desconhecido. E muita coisa do desenvolvimento da história fomos descobrindo ao longo do processo. Relativamente ao futuro daquilo que pode ser a história daqui para a frente, havendo mais temporadas, nós não fazemos a mínima ideia do que se vai passar [risos]. Portanto, há uma zona de algum conhecimento perante a informação que temos, mas também há uma zona de um profundo desconhecimento sobre o que se está a passar na narrativa.
E sente que esse desconhecimento realmente é útil, enquanto ator?
Sim, acho que, de alguma forma, pode ajudar. Porque muito daquilo que estas personagens vivem nesta história é confusão, não é? A confusão de o que é que se está a passar. “Eu não consigo compreender, isto não pode ser real.” E, para nós, muitas vezes esse desconhecimento também ajudava porque nós próprios ficávamos nessa confusão.
Que tipo de preparação é que teve de fazer para esta personagem?
Tive de praticar bastante o espanhol. O Miguel Bernardeau, o meu colega que contracena comigo na série, também me ajudou muito — foi incrível nesse aspeto. Tínhamos também uma language supervisor que estava sempre connosco. Portanto, se alguma coisa porventura corresse mal ela estaria lá para ajudar. Depois, claro, há todo o trabalho de construção da personagem que existe por trás: tentar compreender as motivações daquela pessoa, de onde é que ela vem, para onde é que vai, mas isso é o trabalho normal que fazemos sempre. E chegámos a Berlim uns dois meses antes de começarmos a gravar, por isso tivemos todo um processo de ensaios e leituras do guião que nos ajudou muito a compreender aquilo que a Jantje e o Bo queriam para aquelas personagens — as dinâmicas, as temperaturas, as relações entre as personagens.
Como é que descreveria o processo de gravações? Suponho que tenha sido intenso, mas pelo facto de ser uma produção da Netflix acredito que tenha sido uma experiência diferente em relação a outros projetos em que participou.
Sim, claro. A nível de meios de produção, naturalmente que a coisa é outra. Claro que isso te permite que depois tenhas um resultado final diferente. Eu diria que a principal diferença, ou vantagem que vejo, é teres mais tempo. Permite que filmes mais e melhor. Que tenhas mais planos para montagem. Quando estávamos a gravar, percebias perfeitamente que o Bo sabia quando é que ele tinha todo o material de que precisava para montar aquilo que, na ótica dele, era a cena perfeita. Se não tivesse, ele continuava. Pedia mais takes e queria mais planos, decidia muita coisa no set. Há uma cena que tem um tiro com uma paragem no tempo, e há todo um slow motion, e essa cena levou dois dias e meio a filmar. Teve 105 setups de câmara. Quando tens tempo, permite-te fazer tudo melhor. Tivemos vários longos dias de filmagens, como em Portugal. Mas se em Portugal se calhar gravavas umas oito ou nove cenas por dia, lá filmavas uma ou duas. Essa é a principal diferença: o tempo. É um desafogo completamente diferente.
Qual é que diria que foi o maior desafio em fazer este projeto?
Bem, diria que foi a pressão que coloquei em mim próprio relativamente à dimensão do projeto e a bagagem que o Bo e a Jantje traziam para este trabalho — que tornava o nível de exigência muito alto a todos os níveis. E estar a trabalhar fora do País, com pessoas de outros países que te podem alimentar e inspirar de uma forma diferente, não diria que é um desafio, é uma coisa boa… Aprendi muito com todos os colegas. Mas, no início, ao ir sozinho para Berlim, e apanhámos vários confinamentos lá, o cuidado que tínhamos de ter com a Covid-19 estava muito presente, porque era uma equipa de 400 pessoas. E no início confesso que foi um bocadinho duro. Cheguei sozinho, fui morar sozinho, toda a gente estava em casa. Mesmo entre nós tínhamos algumas regras porque não podíamos estar mais do que cinco pessoas numa casa. Mas contribuiu para criarmos uma relação entre nós, elenco, que nos ajudou muito no trabalho. Ficámos mesmo muito próximos. Estávamos todos no mesmo barco, muitos de nós deslocados das famílias, sem ir a casa. Isso ajudou a criar um sentido de missão em família. Apesar das dores da altura, acabou por ser benéfico para o projeto.
Agora que a série está cá fora há duas semanas, como tem sido lidar com o feedback e as reações de pessoas de todo o mundo?
O feedback tem sido muito positivo. Nós estávamos muito ansiosos por podermos partilhar isto com o mundo, porque foi um esforço coletivo muito grande, de muitas centenas de pessoas — um processo no qual toda a gente teve uma importância enorme. E estávamos ansiosos de poder ver o bebé nascer e ver quais seriam as reações. Têm sido muito positivas, temos conseguido que as pessoas vejam os episódios com vontade. Tenho tido malta que me tem dito “hoje papei quatro”, “nós fizemos maratona”… É uma série que realmente agarra as pessoas e que te faz ficar com sede do próximo episódio. E a forma como acaba abre muito o espetro daquilo que pode vir a ser a narrativa daqui para a frente e isso tem entusiasmado muito as pessoas. Felizmente, temos recebido muito carinho.
E imagino que gostasse que houvessem mais temporadas de “1899”.
Claro que sim, claro que sim. Estamos ainda à espera, a fazer figas por essa notícia, porque gostávamos muito que chegasse. Mas todos nós, tendo iniciado isto e tendo realmente criado esta família, acho que é vontade de todos nós continuarmos a contar esta história juntos.
Está a trabalhar noutros projetos agora de que possa falar?
Sim, vou integrar o próximo projeto do realizador Ivo M. Ferreira. Vamos começar a filmar no início do ano que vem. Estamos já há alguns meses em preparação — em ensaios, etc. De momento é isso que estou a preparar. De futuro tenho alguns trabalhos que vão estrear — o “Amadeu”, do Vicente Alves do Ó; e o “Histórias da Montanha”, do Luís Galvão Teles. Estou também na série “Santiago”, que está agora a ser transmitida.