Na noite da 69.ª gala dos Emmy, já todos esperavam que Julia-Louis Dreyfus subisse ao palco para receber a sua oitava consagração como melhor atriz numa série de comédia. Igualava também Cloris Leachman no ranking de atores e atrizes com mais Emmy: um por “Seinfeld”, outro por “The New Adventures of Old Christine” e seis por “Veep”.
Era uma noite de glória e foi isso que pareceu a todos os que na plateia e em casa vibraram com a eleição do júri. Mas Dreyfus escondia um segredo que só haveria de revelar no dia seguinte.
Dois dias antes da cerimónia, a atriz foi finalmente vista pelo seu médico, depois de ter reparado num pequeno alto num dos seios. “Ele fez uma biópsia e disse: ‘Acho que se deve preparar para ouvir más notícias”, recordou à própria à “The New Yorker” em dezembro de 2018.
Ainda a ressacar da vitória estrondosa e com o cinturão de atriz com mais vitórias nos Emmy pelo mesmo papel, regressou ao consultório no dia seguinte. “Na segunda feira de manhã, descobri que era cancro.”
Dreyfus não precisou de tempo para digerir a notícia. Nesse mesmo dia, puxou do telemóvel, abriu o Twitter e contou tudo. “Uma em cada oito mulheres sofre ou irá sofrer com o cancro da mama. Hoje sou uma delas. As boas notícias é que tenho o mais glorioso grupo de carinhosos familiares e amigos e um fantástico seguro de saúde graças ao meu sindicato. A má notícia é que nem todas as mulheres têm essa sorte, por isso vamos combater todos os cancros e tornar o sistema de saúde universal numa realidade”, escreveu a atriz que recuperou e hoje é uma das novas estrelas do mundo cinemático da Marvel.
O cancro, soube-se mais tarde, era apenas outra etapa difícil num par de anos atribulados na vida da eterna Elaine Benes de “Seinfeld”.
Um ano antes do diagnóstico, Dreyfus preparava-se novamente para uma vitória nos Emmy quando, dois dias antes da cerimónia, recebeu uma notícia devastadora: a morte do pai.
Gerard Louis-Dreyfus, também conhecido por William, tinha 84 anos e era um multimilionário, presidente da Louis Dreyfus Energy Services, que negociava nos mercados do petróleo e gás. E foi recordado no discurso da filha, que subiu ao palco para conquistar mais um Emmy graças a “Veep”.
“E finalmente gostava de dedicar isto ao William, que faleceu na sexta-feira”, comentou emocionada. “Estou feliz pelo facto de ele gostar de ‘Veep’, porque a sua opinião era a que realmente contava.”
Com o luto na bagagem, teve que se preparar para uma luta dura contra um cancro já num estádio dois, o que obrigou a tratamentos sucessivos: foram pelo menos seis rondas de quimioterapia e uma dupla mastectomia. “[As mamas] traíram me. E eu a pensar que as conhecia”, atirou com humor em entrevista à “The New Yorker”.
Foi uma luta dura. Os químicos provocavam náuseas debilitantes, diarreia, e raramente conseguia digerir a comida. Desenvolveu uma neuropatia nos pés e nas mãos e pela cara e boca começaram a surgir feridas. Precisou de um ano para recuperar as forças após os tratamentos.
Perante o diagnóstico, a carreira teria que ficar necessariamente em pausa. Com uma nova de temporada de “Veep” já escrita e pronta a gravar, foi necessário repensar todo o processo. Ainda assim, Dreyfus fazia questão de participar nas leituras dos guiões, quando o corpo permitia.
“Eu só queria trabalhar”, revelou. “É um desafio, mas quando entras na onda? É como se estivesses a esquiar ou algo do género — só pensar em chegar ao sopé do monte. De repente olhas para cima e passaram quatro horas.”
Essas eram as horas mais felizes. E as mais negras? “[Se pensava] que amanha poderia estar morta? Nunca me deixei chegar a esse ponto”, revelou. “Não me interpretem mal: eu estava completamente aterrorizada. Mas não deixei, à exceção de um par de momentos, levar-me até esse canto obscuro. Não o permitia.”
Dreyfus documentava cada passo dos tratamentos nas redes sociais, uma janela aberta que, acredita, permitiu travar especulações e atenção desmedida da imprensa. E como havia feito logo na primeira mensagem, aproveitou o mediatismo da doença para abrir uma frente política.
“Eu sabia que era impossível manter tudo privado, porque tinha muita gente a trabalhar comigo e tinha que dizer o que se passava. Acho que acabei por me mentalizar e aceitar isso. Recebi muito feedback positivo e acho que as pessoas acharam piada que eu abordasse a coisa com sentido de humor”, explicou numa ida ao programa de Jimmy Kimmel. “E acho que permitiu ter uma conversa importante sobre os cuidados de saúde [nos EUA].”
A atriz de 60 anos transformou a sua própria batalha contra o cancro numa arma mediática de promoção de mais e melhores seguros e cuidados de saúde no país.
“Consegui imaginar o que seria ter que enfrentar esta doença sem seguro de saúde — que tenho, graças ao meu sindicato — e percebi que seria completamente aterrorizante. Todos deviam ter acesso a cuidados de saúde. Já acreditava nisso antes do cancro e agora tenho a certeza absoluta.”
Foi também nessa entrevista a Jimmy Kimmel, em 2018, que anunciou a vitória sobre o cancro.
“Tenho hoje uma visão diferente da vida, agora que avistei esse limite — que todos iremos ver mais cedo ou mais tarde e que, como um mero mortal, nunca te atreves a considerar, nunca. E por que razão haverias de o fazer? O que vais fazer com isso?”, questionou.
As dificuldades não ficariam por aí. Durante as gravações da temporada final de “Veep”, a sua meia irmã de 44 anos morreu vítima de uma overdose acidental. Emma era uma assistente social que trabalhava junto de crianças em risco.
Um cocktail de álcool e cocaína revelaram-se fatais e, desta vez, não havia como contornar a atenção da imprensa. “Foi um período muito mau”, confessou a atriz, apesar das relações da família Dreyfus serem altamente complexas e complicadas.
Ao fim de três anos de inferno, Dreyfus admite ter caído num cliché. “Sei que soa lamechas, mas há algo que te acontece quando passar por algo deste género, por uma crise destas, e és capaz depois de ajudar alguém que passa pelo mesmo. É reconfortante de uma forma estranha”
Além do apoio que tem dado a outras vítimas de cancro — e de continuar a fazer ativismo político por uma necessária revolução nos cuidados de saúde norte-americanos —, cortinou a fazer aquilo que faz melhor.
Depois de “Veep”, surge um novo, enorme e absolutamente improvável desafio: tornar-se numa vilã da Marvel. A estreia aconteceu em “O Falcão e o Soldado do Inverno”, no papel de Valentina Allegra de Fontaine, a vilã com um pendor para a comédia.
De forma inesperada, reaparece na cena pós-créditos de “A Viúva Negra” e de acordo a mais recente entrevista do presidente da Marvel Studios, os fãs podem esperar mais aparições da atriz. Um papel feito à medida da atriz que ainda hoje é conhecida pelo papel em “Seinfeld”, mas que vai à procura de novas nuances. Ainda assim, o riso tem que estar sempre presente.
“Percebi que aquele velho cliché do riso ser o melhor remédio é mesmo verdade”, atirou durante a longa entrevista à “The New Yorker”. “Lembro-me das terríveis sessões de quimioterapia, em que enfiava uma data de amigos e família na pequena sala de tratamento. Meu Deus, parece que vou chorar enquanto digo isto, mas a verdade é que demos umas valentes gargalhadas.”