Natascha McElhone estava do outro lado do mundo, com os dois filhos de cinco e oito anos — e um terceiro a caminho, ainda na barriga —, a aproveitar a oportunidade de uma vida. Tinha sido convidada para ser uma das protagonistas de “Californication”, uma série televisiva onde iria contracenar com David Duchovny.
Em Londres, na sua casa, ficara Martin Kelly, o marido de longa data e estrela da cirurgia plástica. Celebraram o 10.º aniversário de casamento à distância. No dia seguinte, ao sair de casa, Kelly colapsou na porta da entrada. Foi levado para o hospital mas não resistiu a um problema cardíaco.
A notícia chegou rapidamente a Los Angeles e à atriz que, ainda assim, regressou mais tarde para brilhar naquele que seria um dos destaques do seu currículo — ela que não era propriamente uma desconhecida, depois de ter contracenado com Anthony Hopkins em “Surviving Picasso”, de 1996, e ter participado em filmes como “The Truman Show”, “Ronin” ou “Solaris”.
Ainda assim, o papel de Karen — que lhe foi dado depois de um curto casting de 20 minutos ao telefone — tornou-se na sua obsessão durante os anos que se seguiram. Mas nem por isso atenuaram o luto que a fez virar-se para a escrita.
A primeira página escreveu-a imediatamente após a morte. Um jornal britânico estava a preparar o obituário do adorado cirurgião — ele que criou uma organização de beneficiência que operava crianças com deformações, oriundas de países pobres — e McElhone soube que seria a esposa de um colega de Kelly que iria assinar o texto.
“Ela não o conhecia na intimidade”, explicou a atriz ao “The Guardian”. Pediu que fosse o melhor amigo do ex-marido a escrevê-la. Do outro lado da linha, a resposta foi curta e grossa: “Nao posso. Tens que ser tu a fazê-lo.”
Por esta altura, McElhone estava assoberbada com burocracias, a resolver os problemas da inexistência de um testamento, enquanto lutava com os efeitos nefastos do luto e da perda. “Não durmo, estou grávida, estou cheia de hormonas, estou enlutada. Estás louco?”, respondeu.
O editor o jornal deu-lhe apenas 40 minutos. McElhone cedeu e apressou-se a escrever o obituário. Afinal, era quem melhor o conhecia. Antes de enviar, pediu ao padrasto, antigo jornalista, que fizesse uma revisão para evitar que não escrevia nada “embaraçoso”. Assim que o texto chegou, foi imediatamente reencaminhado.
McElhone não gostou, tinha medo de que, naquele estado, o texto parecesse pateta. O padrasto respondeu-lhe: “Se, no teu estado, te sentiste impelida a escrever algo, só pode estar bem.”
O texto foi elogiado e assim ficaram as coisas. Natascha regressou a Los Angeles para voltar à sua “Californication” e levou os miúdos e o luto consigo.
Mais de um ano depois, deu por si a ler os diários onde se refugiou depois da morte de Kelly. As páginas começaram a ser escritas imediatamente após o obituário, uma forma de exorcizar os diferentes graus e fases do luto. E também para deixar a dor nas páginas, longe dos filhos.
Eram textos íntimos, privados, que a atriz britânica nunca ponderou sequer partilhar. Neles, percorre os caminhos negros da dor e da saudade, dos estados depressivos recorrentes e dos pensamentos ora felizes, ora tristes.
Recorda, por exemplo, a primeira vez que voltou a entrar na sua casa de Londres, onde confessou sentir ainda a presença de Martin Kelly. “Há um período de tempo em que pensas que ainda sentes a pessoa, uma vibração dela à tua volta que quase consegues agarrar, na esperança que se materialize numa coisa que vá alem de uma mera vibração”, escreveu.
“Claro que isso nunca acontece. É apenas a esperança. É algo irracional e tu sabes que é. Mas ainda assim, dá-te uma sensação de conforto e de alívio.”
Entre textos mais contemplativos, há também registos das pequenas coisas que tantos vivem mas cujas experiências tão mundanas ficam perdidas, como as listas de coisas a fazer, entre contactos a advogados e um lembrete para escrever a carta que seria colocada no interior do caixão.
Regressou aos textos meses mais tarde e decidiu que não deveriam ficar guardados e escondidos numa gaveta. “As pessoas perguntavam-me porque raio é que quereria partilhar isso? E de uma forma perversa, não queria. O que queria era que ficassem disponíveis para alguém os ler, caso precisassem.”
Resistiu à tentação de reescrever alguns dos textos antes de publicar. Temia que muitos pudessem tornar-se aborrecidos, mas recebeu uma resposta negativa dos editores, que quiseram manter tudo tal e qual foi escrito na raiva e na dor do momento. Em 2010, publicou “After You: Letters of Love, and Loss, to a Husband and Father”.
Anos depois do choque, o luto ainda se mantinha bem vivo, apesar de McElhone ter aprendido a viver com ele e a estar atenta aos pequenos sinais que podem desencadear reações mais fortes.
“As insónias são complicadas”, confessa ao “The Guardian”, antes de revelar que as noites são sempre difíceis. “Tenho menos controlo sobre os meus pensamentos. Ganham vida e arrastam-me com eles. Acabamos por embarcar nestas bizarras jornadas noturnas que, graças a Deus, acalmam durante o dia.”
Do fundo ao alívio, os diários relatam a luta pela fuga ao luto, até o ponto em que chega a uma conclusão: “O meu luto por ti é também o meu amor a lutar por um último fôlego.”
O momento trágico teve um impacto na carreira como atriz. Percebeu, afinal, que não precisava de sofrer à procura de papéis de protagonista em grandes filmes. “O trabalho é que serve o nosso estilo de vida”, e não o contrário, concluiu.