Televisão

A noite de terror que matou 242 jovens numa discoteca brasileira

Uma série de atos negligentes provocou uma das maiores tragédias do país. A Netflix revisita-a através de uma minissérie.
A fachada da Kiss é hoje um memorial intacto

Quando os bombeiros acalmaram as chamas e conseguiram entrar pelas portas da discoteca, encontraram um cenário impensável. No interior do bar, para lá das portas das casas de banho, tudo se tornou pior.

O amontoado de corpos imóveis gerou a estupefação dos que tentavam ainda salvar vidas. Encontraram silêncio, apenas quebrado pelo som ininterrupto das chamadas dos telemóveis dos jovens. Eram os seus familiares, a tentarem saber se estavam em segurança.

Horas antes, na noite de 26 de janeiro de 2013, quase um milhar de estudantes universitários reuniram-se à entrada da discoteca Kiss, no estado de Rio Grande do Sul. A ocasião era de festa. Uma celebração conjunta de diversos cursos da universidade local teve lugar na discoteca mais procurada da cidade. Prometia-se diversão pela noite dentro com atuação de duas bandas, mas o desfecho seria trágico. Feitas as contas, morreram nessa noite 242 pessoas.

Precisamente no dia em que se marcam os dez anos do incêndio, a 26 de janeiro, a Netflix estreou uma minissérie que revisita o incidente. “Todo o Dia a Mesma Noite” recria ao detalhe os acontecimentos dessa noite trágica, mas não só.

Ao longo de uma década, as famílias das vítimas pediram justiça, mas nunca viram qualquer tipo de condenação em tribunal. Ninguém foi responsabilizado pelas mais de duas centenas de mortos e pelos mais de seiscentos feridos, alguns com marcas para a vida.

Apesar de voltar a centrar as atenções do mundo no desastre fatal, as famílias não parecem satisfeitas com a produção da Netflix. “Fomos apanhados de surpresa. Ninguém nos avisou, ninguém nos pediu permissão”, explicou um dos pais, coordenador de um grupo de familiares dos sobreviventes.

“Não admitimos que ninguém ganhe dinheiro à conta da nossa dor e da morte dos nossos filhos.” O grupo de pais pretende ainda recorrer à justiça para tentar chegar a um acordo com a Netflix. Pedem que parte dos lucros da minissérie seja entregue aos sobreviventes e à construção de um memorial.

Uma noite de terror

Pouco passava das duas da madrugada e em palco estava já a segunda banda da noite. No meio de toda a animação, um dos membros do grupo Gurizada Fandangueira puxou de uma tocha, um engenho pirotécnico usado para sinalização — e que, haveria de se saber mais tarde, só poderia ser usado em espaços abertos; os de uso interior eram mais caros e foram descartados — e acendeu-a. Terão sido as faíscas provocadas pelo sinalizador que chegaram ao teto relativamente baixo do bar e que, em contacto com a espuma de isolamento acústico, terão ateado o fogo.

O momento em que a banda e os espectadores se apercebem de que o teto da discoteca está em chamas foi inclusivamente captado em vídeo. No meio da azáfama, houve quem tentasse usar extintores para apagar o fogo. Sem sucesso.

Por essa altura, a discoteca estava completamente sobrelotada. “De repente, um rapaz que estava na copa começou a gritar ‘fogo'”, recorda Delvani Rosso, um dos sobreviventes, em declarações ao “Correio do Povo”. Dirigiu-se lentamente com os amigos para a saída, mas o pânico falou mais alto. “As luzes apagaram-se. Estava um breu. Não dava para ver nada”, recorda.

Na porta, os seguranças não tinham recebido qualquer informação sobre o incêndio e, ao verem dezenas de pessoas a tentarem sair, acharam que poderiam estar a tentar fugir ao pagamento. Instintivamente, bloquearam a única porta de entrada e saída da discoteca. No interior, entre o fumo e o pânico, centenas de jovens precipitaram-se para as primeiras portas que encontraram: as das casas de banho. Foi precisamente nas casas de banho que foram encontrados 90 por cento das vítimas mortais do incêndio.

Delvani foi um dos jovens que acabaram por perder os sentidos por causa do fumo. “Senti que não tinha como me salvar. Na minha cabeça, despedi-me da minha família, de Deus. Pouco depois desmaiei. Os meus amigos morreram”, conta. “O Cássio [amigo] morreu na casa de banho. Foi em direção a uma luz que havia no local e que acreditava ser a saída.”

Inconsciente, acabou por ser salvo pelo irmão, que ao sair e perceber que Delvani não estava consigo, voltou para trás e, num ato heróico, o resgatou. Foram muitos os que se aventuraram naquele inferno dentro da Kiss.

No exterior, quando todos se aperceberam do drama que decorria dentro do bar, recorreram-se a medidas extremas. Grupos juntaram-se para tentar abrir um buraco nas paredes da fachada, de forma a fornecer às vítimas mais uma forma de escapar. Quem passava, dava uma mão aos bombeiros, a puxar corpos inconscientes da entrada para a rua. Presente no local, Leonardo Lacerda, um militar que conseguiu escapar da Kiss, decidiu voltar para o interior e ajudar as vítimas, conta a “G1”. Acabaria por não resistir ao calor e ao fumo.

Os relatos dos sobreviventes são chocantes. Gustavo Cadore tinha na altura 21 anos e foi apanhado no meio da multidão em pânico. Caiu, mas conseguiu levantar-se. Mentalizou-se de que precisava de se “manter calmo” e conseguiu chegar à saída. “Era impossível respirar. Parecia que respirava fogo. Até hoje não me esqueço dos gritos de desespero. Nunca vão sair da minha cabeça”, contou à “BBC”.

Já no exterior, desmaiou. Quando acordou, ouviu alguém a dizer-lhe: “A tua pele está a cair.” Gustavo não acreditava. “Isso é a minha camisa. Deve ter-se rasgado”, respondeu. Perante a insistência do desconhecido, percebeu que estava sem pele. A que restava, estava apenas presa por um fio. Sobreviveu, mas não sem marcas para a vida: queimou 40 por cento do corpo.

Dez anos sem culpados

O dia 10 de dezembro de 2021 prometia ser histórico para as famílias das vítimas do incêndio. Oito longos anos após o incidente, um tribunal dava o veredito sobre a culpa do incêndio e sobre o futuro dos quatro acusados. Ao fim de dez dias, o tribunal condenou dois sócios da discoteca, o vocalista e o assistente da banda, todos por homicídio simples com dolo eventual — e com penas que iam dos 18 aos 22 anos de prisão.

Apesar da condenação, não foram imediatamente presos. Aliada a essa frustração, oito meses depois, um tribunal superior viria a anular o júri que decretou a condenação, efetivamente anulando o julgamento, o que colocou o processo na estaca zero.

A defesa apontou o dedo à forma como foi sorteado o júri, a menos de 15 dias do julgamento. Acusou também o Ministério Público de ter tido acesso a um banco de dados do governo para analisar o historial dos jurados. Os magistrados deram-lhes razão e anularam a composição do júri e, por consequência, a decisão.

A lista de culpados, criticaram os familiares, deveria ser tão grande quanto a longa lista de fatores que contribuíram para a tragédia. Além da sobrelotação da discoteca na noite do incêndio, era local de práticas pouco usuais. Os donos chegaram a ser condenados por terem barrado e detido uma jovem à saída que não pretendia pagar a conta. Relatos de funcionários revelaram também que ninguém recebia formação sobre planos de segurança ou de emergência.

As autoridades também não escaparam às críticas. As vistorias dos planos de prevenção e combate a incêndios foram por várias vezes omitidas ou feitas de forma deficiente. A discoteca começou, aliás, a funcionar sem alvará, que só poderia ser emitido pela autarquia. Da parte da administração local, a fiscalização foi reduzida ou quase nula. Quando as notificações de encerramento foram enviadas, a Kiss continuou a funcionar. Ninguém forçou o encerramento.

A espuma isolante usada no teto da discoteca — e que acabaria por se incendiar por causa das faíscas lançadas pelo engenho pirotécnico — era também inadequada. Sobre as poucas vistorias que foram feitas, nota-se que os bombeiros apenas verificavam as saída e os extintores. Pouco mais.

Apesar de o processo estar aparentemente em suspenso, a data que marca os dez anos da tragédia foi aproveitada para que vários senadores brasileiros tomassem uma posição pública sobre o tema. Pedem que a justiça finalmente encontre e condene os culpados pela morte de 242 jovens. “Como é possível que depois de todo esse tempo, absolutamente ninguém tenha sido responsabilizado? A morosidade da justiça só amplia a dor das famílias”, explicou o senador Luís Carlos Heinze.

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