Foi no dia 15 de março que chegou à Netflix “Grande Plano: A História do Pornhub”. Rapidamente chegou ao top 10 das tendências de filmes em Portugal, o que não é de estranhar, já que não é todos os dias que a principal plataforma de streaming do mundo estreia um documentário sobre a principal plataforma de pornografia do mundo. Nem é assim tão comum que um tema como este seja abordado nos media mainstream.
O documentário dirigido por Suzanne Hillinger mostra como o Pornhub se tornou na grande referência global do mercado da pornografia — operando como um YouTube para conteúdos para adultos — e de como isso tanto trouxe enormes vantagens como graves problemas.
Por um lado, revolucionou a forma como os atores trabalham nesta indústria. Se o padrão era estarem à mercê das produtoras e dos canais de distribuição — que ficavam com as grandes margens de lucro, enquanto quem tinha o trabalho mais exigente e a exposição ficava com bastante menos — essa dinâmica inverteu-se com as plataformas como o Pornhub.
Tal como aconteceu com as redes sociais ou as plataformas de vídeo como o YouTube, qualquer pessoa pôde tornar-se um criador de conteúdos e profissionalizar-se através de serviços como o Pornhub. Isso deu poder e independência aos atores/criadores de conteúdos pornográficos, que passaram a estar muito mais no controlo — e muitos, como se pode ver pelo documentário, apenas fazem vídeos sozinhos, quando e como querem, em espaços seguros, com a edição que desejam. Não estão à mercê de produtores ou responsáveis hierárquicos — que muitas vezes originavam situações de abuso, sobretudo numa indústria como esta.
Esta mudança de paradigma foi francamente positiva para milhares e milhares de trabalhadores sexuais. No caso do Pornhub, puderam criar contas verificadas, estreitando a relação com o site e contribuindo para a segurança de todos. Era também a única maneira de ganharem dinheiro através do site e rentabilizarem os seus conteúdos.
Por outro lado, plataformas como o Pornhub — sendo que o Pornhub acabou por simbolizar toda uma indústria, já que existem muitos sites do género — continuaram a depender dos conteúdos carregados por utilizadores não verificados, muitos deles anónimos. Isso fez com que inúmeras pessoas, seja por que motivo for, carregassem vídeos ilegais, com comportamentos criminosos — fossem violações ou relações de menores.
Não só era suficientemente grave que estes vídeos estivessem online, disponíveis naquele que, segundo um estudo, é o nono site mais visitado do mundo — sim, o Pornhub é mais usado do que a Netflix — mas os próprios donos da plataforma de vídeos pornográficos lucravam com estes vídeos, já que geravam visualizações e, por conseguinte, receitas publicitárias. Assim, a MindGeek (a empresa canadiana que detém o Pornhub) não tinha propriamente a maior das motivações para resolver este enorme problema.
Num site como este, esperava-se que existissem milhares de moderadores de conteúdo, que pudessem analisar os vídeos que são carregados e responder aos inúmeros pedidos de remoção e denúncias realizadas na plataforma. Como o documentário da Netflix explica, esse departamento era francamente limitado para um site com a dimensão do Pornhub — nem havia uma grande aposta nesta componente essencial.
Passam-se meses entre uma denúncia e uma decisão por parte da empresa. Os trabalhadores, que têm de ver centenas de vídeos por dia — e, por isso, veem-nos sem som e a passar rapidamente para a frente — não conseguem simplesmente controlar com rigor tudo aquilo que está no site. E muitas vezes é impossível determinar se alguém que aparece num vídeo tem, por exemplo, 17 ou 18 anos. Desde que os moderadores de conteúdo considerem que a pessoa parece ser maior de idade, o vídeo pode ficar — mesmo que não o seja.
Este problema levou a que várias organizações se insurgissem. Nomeadamente, foi criado o movimento Trafficking Hub, de diversas pessoas que queriam alertar para este problema legal, e que acusavam mesmo o Pornhub de contribuir ativamente para o tráfico sexual de menores, até porque lucrava com esses vídeos.
A pressão sobre o Pornhub foi crescendo, mas a gota de água aconteceu em dezembro de 2020, quando um jornalista do “The New York Times” escreveu a coluna “The Children of Pornhub”. Relatava casos de menores que viam os seus vídeos explícitos divulgados na maior plataforma de pornografia do mundo — e que, tentativa após tentativa, continuavam a não conseguir tirar os vídeos do site. A MindGeek lucrava com tudo isto, pelo que potencialmente poderia estar, de forma consciente, a olhar para o lado.
Esse artigo teve um enorme impacto na sociedade e opinião pública, sobretudo nos EUA e Canadá. Levou mesmo a que a Visa e Mastercard deixassem de colaborar com o Pornhub — ou seja, os utilizadores com cartões bancários destas empresas deixaram de conseguir fazer pagamentos na plataforma. Eventualmente, por precaução, o Pornhub retirou cerca de 80 por cento dos vídeos não verificados da plataforma — e os responsáveis pelo site tiveram de aparecer em audiências no parlamento canadiano, que se começou a debruçar mais sobre o assunto.
Foi uma boa notícia pelo facto de muitos vídeos ilegais e não consensuais terem sido removidos do Pornhub — mas também não foi uma solução milagrosa. Outros tantos permaneceram online e muitos até podem ter saído do Pornhub, mas outras pessoas carregaram-nos noutras plataformas, muitas delas mais obscuras e menos transparentes, não estando tanto sob o escrutínio dos media e do público.
Além disso, isto prejudicou enormemente todos os atores e criadores de conteúdo que dependiam do Pornhub para obterem rendimento ao fim do mês. Houve uma certa regressão nesse aspeto da indústria, e muitos viraram-se para outras plataformas, como o OnlyFans.
“Grande Plano: A História do Pornhub” é um documentário justo e ponderado que olha para os diferentes lados das várias questões e inclui entrevistas tanto com atores porno como com as pessoas dos movimentos anti-Pornhub — muitos dos quais são, no fundo, anti-pornografia e ligados a setores conservadores e radicais da sociedade. Acima de tudo, tem a virtude de trazer o assunto para cima da mesa. A pornografia ainda é um tabu e isso não ajuda a que os seus problemas sejam resolvidos.