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O polémico documentário que desvenda o mistério dos corpos deixados no Evereste

É um dos lados mais negros e pouco falados das escaladas ao topo do mundo. A controvérsia obrigou à censura do filme.
Michael subiu à montanha que matou o irmão

Spencer Matthews tinha apenas 11 anos quando recebeu a notícia de que o irmão mais velho, Michael, dificilmente regressaria a casa. Michael tornou-se, nesse ano, o mais jovem britânico a chegar ao cume do Evereste. A alegria foi curta. Três horas após a conquista do grande objetivo, desapareceu sem deixar rasto.

Durante duas décadas, a família chorou a morte do jovem, até que em 2017, receberam uma fotografia que aparentava mostrar o corpo do alpinista enterrado na neve. Michael trabalhava na banca londrina e era filho de David Matthews, célebre milionário e pai de James Matthews, marido de Pippa Middleton.

O irmão mais novo, Spencer, tornou-se numa figura televisiva de reality shows e foi um dos mais inconformados. Decidiu então lançar-se numa expedição para recuperar o corpo do irmão. “Nunca tivemos um corpo para fazer o luto”, revelou numa das muitas entrevistas que deu sobre o projeto que deu origem a um documentário, “À Procura de Michael”, que estreou na Disney+ a 7 de março.

Nenhum esforço foi poupado para concretizar a expedição. Michael viajou para o Nepal e recrutou Nirmal Purja, o nepalês que bate recordes atrás de recordes e que foi, aliás, estrela do documentário “14 Montanhas”, que estreou na Netflix em 2021.

Foi criada uma equipa de resgate composta por dez homens, equipados com drones e todo o equipamento necessário para a recuperação do corpo. Um dos muitos deixados para trás na neve e no gelo do maior pico do mundo. Porquê? Porque se subir e descer já é difícil, mais complicado se torna fazer o percurso com um cadáver — e ninguém quer arriscar a vida numa missão tão inglória.

Michael quis também aconselhar-se com os mais experientes em cenários adversos e o documentário conta também com a participação de Bear Grylls, a estrela televisiva. Grylls tem outra particularidade: conheceu pessoalmente Michael, um mês antes da sua escalada ao Evereste.

“Ele pediu-me conselhos porque eu tinha chegado ao cume no ano anterior. E quando soube que ele nunca tinha regressado e acabou por ser dado como morto, foi horrível. Durante muito tempo senti-me culpado, senti que não o devia ter encorajado”, contou. “Se alguém quer arriscar, tudo bem, mas nunca mais apoiei incondicionalmente alguém que quisesse fazê-lo. Aquela montanha mata-te num instante e não há quaisquer garantias quando entras na zona da morte, acima dos oito mil metros.”

O desafio que testou essa promessa chegou quando Spencer o contactou a pedir conselhos. “Sempre temi o dia em que ele me diria que queria liderar uma expedição para encontrar o irmão. Quando o fez, o que é que eu podia dizer? Aconselhei-o apenas a ser inteligente e, acima de tudo, voltar com vida.”

Para Michael, deixar o irmão no frio do Evereste nunca foi uma possibilidade. “Sempre tive essa ideia de o trazer para casa. Nunca gostámos do facto de ele ter ficado lá sozinho. Sempre o imaginei só, gelado na neve.”

Ao fim de um mês, revelou-se impossível recuperar o corpo de Michael. Mas outro corpo foi encontrado, o de Wong Dorchi, um dos muitos sherpas que ao longo das décadas têm subido ao cume. Michael decidiu que a coisa correta a fazer seria aproveitar todos os seus recursos e ajudar pelo menos uma família a fazer o seu luto.

Atribulada foi também a estreia do documentário, inicialmente prevista para 3 de março. Só que no dia estipulado, não havia sinal do filme na Disney+. A razão só foi revelada dias mais tarde: a plataforma não gostou do facto de as imagens mostrarem muitos dos corpos de alpinistas que morreram na dita zona da morte e decidiu censurá-los. Spencer ficou furioso.

A verdade é que o trilho de corpos congelados e irrecuperáveis é um dos lados mais negros e pouco falados das escaladas ao Evereste, hoje procurado por especialistas e amadores, que recorrem a empresas de expedições para concretizarem o sonho. Estima-se dos mais de 300 mortos registados, cerca de 200 permaneçam ainda congelados em locais inacessíveis. São, aliás, uma vista comum para quem sobe ao cume — e muitos servem até de marco. Recuperá-los é sempre uma missão arriscada e, também por isso, permanecem inviolados.

Um dos mais famosos corpos é o de George Mallory, o alpinista britânico que desapareceu durante a tentativa de atingir o cume do Evereste em 1924. Só em 1999 é que o seu corpo foi finalmente encontrado por acaso por outro alpinista. O corpo permanece conservado graças ao clima frio e seco. Até hoje, ninguém sabe se Mallory chegou ou não ao topo da montanha.

O corpo de Tsewang Paljor

Outro corpo, que recebeu o nome de Bela Adormecida, é o de Francys Arsentiev, alpinista americana que em 1998 tentou a subida ao cume com o marido Sergei. Em dificuldades, pararam para descansar e acabaram por se separar. Ele sobreviveu e foi resgatado, ela caiu numa fenda e morreu. O corpo foi encontrado mais tarde, deitado na neve.

Tsewang Paljor, que morreu em 1996, não resistiu ao terrível acidente que matou oito alpinistas nesse ano. A tempestade apanhou a equipa na ascensão e só Paljor conseguiu o objetivo. No regresso, o mau tempo voltou a atacar e nenhum resistiu.

O seu corpo foi encontrado numa caverna onde se terá tentado abrigar. As suas botas verde fluorescente são hoje um marco para todos os que procuram subir o Evereste pela rota nordeste. É conhecido como o Botas Verdes ou o Buda Adormecido.

A dificuldade na recuperação dos corpos não é o único motivo pelo qual muitos permanecem intactos nas escarpas. Muitos alpinistas acreditam que deixar os corpos na montanha é um sinal de respeito pelo poder e imponência destes marcos da natureza.

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