“É um dos episódios mais vulneráveis e comoventes que chegaram à televisão nos últimos tempos”, diz a “GQ” britânica. “Baby Reindeer” está há vários dias no top das séries mais vistas da Netflix. Tem recebido muitos elogios como um todo, mas há um capítulo que se destaca: o quarto.
A obra acompanha Donny (Richard Gadd), um homem cuja carreira como comediante está a afundar-se. A sua vida pessoal torna-se igualmente caótica quando começa a ser perseguido por Martha (Jessica Gunning), uma mulher que o protagonista atendeu no seu local de trabalho diurno num bar.
Nos primeiros episódios percebemos que o humorista não está feliz com a sua vida atual. Muito menos o facto de Martha estar em todo o lado. Estranhamente, o protagonista mantém-se impávido e sereno — uma passividade bizarra que deixou os telespectadores desconfiados. E por bons motivos.
A explicação é dada no quarto capítulo, quando se revela que além de todos estes dramas, Donny lida ainda com a memória de uma violação.
Tudo começa quando conhece Darrien, um dos seus ídolos, que o leva no caminho do consumo de drogas. Da cocaína ao crack, depois à heroína. Cada vez mais vulnerável, sobressai o comportamento predatório do argumentista, cujo modus operandi consistia em drogar os assistentes para se aproveitar deles.
Donny achou que se tratava apenas de uma piada. Mas era verdade. Quando acorda com a perna do guionista em cima da sua, percebe que não é apenas uma brincadeira. Com medo de perder tudo o que alcançou, o bartender mantém a amizade com o mentor. Eventualmente, toma uma dose demasiado elevada de ácidos, perde os sentidos e, quando acorda, percebe que foi violado. “Gostava de dizer que me fui embora, mas fiquei durante muitos dias depois disso”, ouve-se uma voz dizer.
A série da Netflix é inspirada na própria vida de Gadd. Escrever o argumento foi uma forma de terapia para o ator que, no passado e tal como a sua personagem, foi violado por um guionista de televisão britânico. O homem convidou-o para o seu apartamento e drogou-o. Só no dia seguinte é que Gadd entendeu o que tinha acontecido.
“Não quero falar por todas as pessoas que já foram abusadas sexualmente, mas uma das ramificações mais comuns é o facto de nos culparmos a nós próprios. Porque é que eu fui lá? Porque é que eu fiz isto? Vivi numa prisão de ódio e autopunição durante muito tempo. Mas escrever de forma cronológica e processar o meu trauma fez com que aprendesse a ter um pouco mais de empatia comigo mesmo”, conclui.
Richard, de 34 anos, foi ele próprio vítima de uma perseguição de uma fã obcecada. Adormecia com as mensagens de voz da stalker na cabeça e com as mensagens a passarem-lhe à frente dos olhos. “Com o passar do tempo, percebi que ela era uma pessoa muito vulnerável que precisava de ajuda. Era essa a verdade que eu queria trazer para o ecrã”, explica.
Richard começou a ser perseguido por Martha (um nome falso) após lhe ter oferecido uma chávena de chá num bar em que trabalhava. Este rápido encontro deu início a uma obsessão doentia. Ao longo de cinco anos, o ator recebeu 40 mil emails, 350 horas de voicemails e 100 páginas de cartas.
Soube imediatamente que isso daria uma boa história. Em 2019 criou a peça “Baby Reindeer” (“Rena Bebé”, em português), a alcunha que Martha lhe tinha dado. Naquele mesmo ano ganhou um Scotsman Fringe First Award e um Stage Award para Melhor Interpretação.
Tal como as suas apresentações no palco, a série da Netflix é muito pessoal. Quando questionado se havia algo que ele gostaria de ter deixado de fora da obra para se proteger, foi honesto: “Houve esses momentos, mas acho que assim que me começasse a diluir, o público ia perceber logo que algo estava errado. Quando não somos sinceros no que escrevemos, isso percebe-se. Às vezes sentia-me desconfortável, mas contei tudo o que tinha de contar.”
Carregue na galeria e conheça outras novidades de abril. Leia também o artigo sobre a série que está em número um no top da Netflix.