Televisão

Porque é que os portugueses estão obcecados com os reality shows australianos?

Da culinária à decoração, as adaptações estão por todo o lado. Falámos sobre o fenómeno com Pedro Boucherie Mendes, diretor dos canais temáticos da SIC.
"MasterChef Austrália" é um sucesso de audiências em Portugal

Matt Preston, Gary Mehigan e George Calombaris tornaram-se estrelas do outro lado do mundo. Nos antípodas de Portugal, os três jurados brilharam na edição australiana do MasterChef. Quem diria que, pouco tempo depois da estreia, seriam figuras de proa na televisão nacional? Pelo menos foi assim até à sua saída do programa.

“Foi o MasterChef [Austrália] que fez um canal normal como a SIC Mulher passar a ser um canal do grande público”, garante à NiT, Pedro Boucherie Mendes, diretor dos canais temáticos da SIC. Basta fazer um zapping curioso para perceber que, na grelha dos canais satélite da SIC, convivem múltiplas edições de programas australianos.

São quase sempre um sucesso de audiências, dos formatos de decoração, como “The Block” ou “House Rules”; às versões de cozinha, como “MasterChef”; de “The Biggest Loser” ou até aos concursos radicais, como “SAS”, que coloca os concorrentes a enfrentarem uma dura recruta nas forças especiais. “Nós papamos tudo o que é australiano”, confirma Boucherie Mendes.

O fenómeno torna-se ainda mais curioso quando se confrontam as versões americanas e australianas. Claramente, a Austrália tem vantagem junto do público português. “MasterChef” é até o exemplo mais paradigmático. O concurso chegou a ter nos seus registos uma vitória nas audiências em horário nobre, quando comparado com a RTP.

Nessa comparação, Boucherie Mendes aponta para diversas justificações. “A televisão na América é feita para preencher os slots horários, com emissões de 45 minutos e intervalos de sete em sete. E fazem um episódio por semana. Os australianos têm uma lógica mais parecida com a nossa”. E acrescenta: “São, desde logo, um país com muito dinheiro e é importante saber isto sobre televisão: é uma indústria que precisa de muito dinheiro. Quanto maior for a economia de um país, maior ou mais grandiosa será a sua televisão.”

Na visão de Boucherie Mendes, é sempre mais proveitoso apostar no formato australiano que, tal como o nosso, transmite episódios cinco dias por semana, com 70 minutos cada. Isso faz “com que os episódios tenham que ser enriquecidos com conteúdo”.

Outro motivo que pode explicar o sucesso da televisão australiana em Portugal tem a ver com o facto de “misturarem tudo o que há de bom no mundo anglo-saxónico”. “Como se costuma dizer, a Austrália é o Brasil que deu certo. Tem sol, gente gira, praia, surf. Isso funciona. No ‘MasterChef’, por exemplo, há uma mistura de concorrentes étnicos, comidas étnicas, dentro de toda a lógica ocidental. Resulta numa coisa prodigiosa que é muito bem filmada.”

Para o diretor de canais temáticos, a escolha dos tais três jurados iniciais ajudou a criar “a melhor versão do ‘MasterChef’”. “O americano é mais seco, aliás, são sempre mais secos. É tudo feito à base de gatilhos, a pensar nos intervalos de sete em sete minutos. Nós aqui vemos tudo de seguida, mas eles têm sempre que dar o suspense para manter as pessoas agarradas. Há uma construção narrativa apropriada ao mercado”.

O facto de os australianos investirem em mais e mais longos episódios encaixa também na estratégia e no gosto do telespectador nacional. “Eu compro a edição americana e tenho 12 episódios de 45 minutos. A australiana são 40 episódios de 70 minutos. É muito melhor para mim, porque estou três ou quatro meses a passar a temporada”.

“SAS” é mais uma bem-sucedida adaptação australiana que faz sucesso em Portugal

“O espetador, na sua generalidade, muda facilmente de canal. Se eu vir que um programa é um sucesso, peço à minha equipa para comprar tudo o que houver porque as pessoas continuam a ver. Se eu passar um durante três semanas e depois trocar por outro, as pessoas vão embora. Convém ter uma programação mais ou menos repetitiva. Se as pessoas estão agarradas ao ‘SAS’, nós vamos dar-lhes isso. Já estamos há seis meses com o programa, da edição americana, depois a inglesa, depois a australiana”, explica à NiT.

Inevitavelmente, o exemplo paradigmático do “MasterChef” surge na conversa sobre este fenómeno australiano. E Boucherie Mendes questiona a improbabilidade do sucesso deste tipo de programas. “Porque é que a cozinha funciona em televisão se não temos o sabor, o cheiro?”, questiona. “Porque o que funciona aqui é a telenovelização, a narrativa… E a edição australiana faz isso muito bem.”

“Não se abusa daquela coisa da senhora que tem um cancro e um filho deficiente, tão característico da televisão contemporânea, da dramatização excessiva. Antigamente, os concorrentes eram só concorrentes. Agora são todas histórias de vida, todos têm um drama — e são escolhidos em função disso”, garante. “Se formos a um casting para o ‘MasterChef’ e formos parecidos com pessoas e cozinheiros, passa à frente quem tiver o melhor cancro na família.”

Sobre os programas britânicos, considera-os “de ritmo mais lento”, por oposição ao “frenético ritmo americano”. “O australiano é uma espécie de meio caminho, eu gosto muito e acho que toda a gente gosta da televisão australiana.”

No caso particular do “MasterChef”, a escolha dos jurados é apontada como o golpe certeiro que permitiu tornar “a edição australiana como um dos melhores programas de televisão não-ficção”.

“São pedagógicos porque não precisam de ser agressivos. Mas ser um jurado pedagógico, se depois não for carismático ou não tiver presença, acaba por ser um jurado como os da RTP, que dão sempre notas nove e dez”, nota, antes de aguçar a ironia. “Em Portugal somos todos ótimos, é natural que tenhamos todos notas nove e dez….”

Pedro Boucherie Mendes foi, ele próprio, um dos jurados de televisão, na terceira e quarta temporada do “Ídolos”, em 2009. “Sei bem do que estou a falar. Se hoje me convidassem outra vez, diria que [os concorrentes] são todos ótimos e fantásticos”, explica. “Temos um País que convive muito mal com a diversidade de opiniões — basta ver o que se passa agora com a polémica do Ronaldo — e isso reflete-se na televisão. Isso faz com que os jurados pensem duas vezes entre dizerem a verdade total ou serem condescendentes.”

Boucherie Mendes foi um dos jurados do “Ídolos”

Para o diretor, o medo das reações das redes sociais condiciona os jurados e, por sua vez, a qualidade televisiva. “Consciente ou inconscientemente, em Portugal, os programas com jurados estão cada vez mais consensuais e assim a televisão perde valor de entretenimento.”

Unânime é a avaliação da qualidade dos programas australianos que, dia sim, dia sim, nos prendem ao ecrã. “O que os une a todos? A qualidade”, frisa. “A televisão anglo-saxónica é sempre boa. Não fazem má televisão. Nunca vi um programa americano mal feito. Pode se não gostar deles, mas nunca os vi serem mal feitos. E já vi programas de outros países muito mal feitos, inclusive em Portugal.”

E se o formato funciona tão bem, porque é que é difícil que as versões portuguesas compitam com as australianas? “Nós não temos quantidade suficiente de pessoas em Portugal para estes programas com aquele aspeto trendy, cool, de que o espectador gosta”, contesta. “Se repararmos nos concorrentes de programas como o ‘MasterChef’, existem sempre duas ou três pessoas da mesma classe social do público que se presume que veja o programa. Depois tens pessoas de outras zonas, e ainda bem que lá estão, mas que não têm aquela versatilidade para provas, se calhar não sabem o que é sushi ou sous vide. Temos em Portugal essa limitação de concorrentes. Eu acho os portugueses magníficos, fantásticos e incríveis, mas nós somos o país que somos. Não somos outro. Aliás, isto que referi acontece noutros países.”

Boucherie conclui de forma clara: “Falta-nos diversidade de concorrentes, cultura de exigência que permita que as pessoas digam o que pensem”, nota. “E depois, falta nos o dinheiro, claro.”

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